16 de julho de 2006

democracia

“A reunião tinha assunto sério para ser discutido. Era em casa do Carvalhosa com alguns notáveis de S. Ponces: Almiro, com certidão de nascimento datada ainda do século dezanove, veterano da Primeira Grande Guerra, artilheiro na Bélgica, e com uma t-shirt onde podia ler-se “leite é juventude”; Gonçalves, o barbeiro; Rebimbas, o do açougue; e Peixoto, lavrador como os restantes, os do grupo da sueca, menos Timóteo que não podia largar a loja mas que tinha dito que fossem quais fossem as decisões estaria de acordo. Voto sempre positivo, dissera ele. O clero não tinha representação. Na ordem do dia estava a construção do pedestal do monumento ao emigrante. Tratava-se da base de sustentação de uma figura de bronze, em tamanho um pouco mais que o natural, com uma mala na mão e uma espécie de boné na cabeça, representando o Emigrante Desconhecido. A estátua estava pronta, mas faltava escolher o lugar onde ganharia interesse público. Tinha sido concebida e realizada por um artista da região, mas faltava também o patamar florido onde assentaria. A iniciativa dos de S. Ponces destinava-se, claro, a homenagear os muitos que tinham partido e ainda operavam no estrangeiro, e também a provar aos da vila, capital do concelho, que ali se fazia obra que os olhos podiam ver.
- Continuo na minha, o padeiro fica bem é no adro da igreja – disse o Jasmim.
- Mas qual padeiro! – insurgiu-se o presidente –, de tanto lhe chamarem padeiro, quando a estátua for inaugurada, já vai baptizada.
- O que é que querem?, com aquele chapéu ou lá o que é, aquilo faz-me lembrar um padeiro!
- É… a mim também me faz lembrar um padeiro – reforçou o Peixoto.
- Alguém está contra a que se faça o sustento ao pé do pelourinho?, levante-se quem vota contra, Julieta, bota aí umas taliscas de presunto, ninguém?!, mas tu não querias a homenagem no adro da igreja?!
- Queria – replicou o Jasmim –, mas no fundo tanto me faz, no adro ou no pelourinho, vai-me parecer sempre um padeiro.
- E o sustento é de quê afinal? – perguntou o Malaquias –, tijolos?
- Cimento armado – informou o presidente –, a coisa tem de ficar bem plantada, é isso que lhe dá altura, e enverniza-se aquilo, já falei com o artista.
- Mas… a estátua ao lado do pelourinho?! – estranhou Julieta indo ao presunto –, não é exagero?
- Mas qual exagero!, alguém te perguntou alguma coisa?, não cortes o presunto muito grosso, fininho sabe melhor.
- Com o mesmo dinheiro com que fizeram esta, faziam uma mais pequena ao soldado desconhecido – lançou o Almiro –, duas pelo preço duma e respeitava-se o sacrifício dos que já cá não andam, ou vocês pensam que andam cá à custa de quem?
- Podemos fazer um minuto de silêncio, Ti Almiro – propôs o Malaquias –, mas mais uma estátua agora não dá jeito, e onde a iríamos pôr?
- Pois é, Ti Almiro, somos uma aldeia pequena, é preciso ver – avançou o presidente Carvalhosa –, e para mais já temos a estátua pronta, voltar à conversa do que podia ter sido só atrasa a reunião, Julieta, bota aí aquele salpicão também… o pequeno, sim, é o mais gostoso.
- Está bem, eu calo-me, não sei para que hei-de falar – disse o Almiro –, nunca me fizeram a vontade em coisa nenhuma, nem sei porque hei-de vir aqui.
- Porque a sua presença é importante, Ti Almiro – confortou o Peixoto –, gostamos sempre de saber o que o Ti Almiro acha das coisas.
- Isso é bom de dizer, diga eu o que disser, vocês fazem sempre as coisas à vossa maneira.
- Agora estamos em democracia – acrescentou o Rebimbas –, até é pecado se não falarmos.
- Fica então no pelourinho? – atacou o presidente.
- Estou-me a levantar, mas é para ir dar uma mija – disse o Peixoto, levantando-se.
- Fica aprovado – anunciou o Carvalhosa –, temos é de apresentar depois uma cópia da acta ao presidente da Junta para que as coisas avancem depressa e bem, sem isso, as coisas atrasam-se de certeza.
- Mas tu és o presidente da Junta – disse o velho artilheiro.
- Pois sou, mas há regras, aqui, quem é o presidente da Comissão de Festas é o Gonçalves Barbeiro.
- Está bem que seja, mas não tenho nada que estar a escrever cópias das actas! – avisou o Barbeiro, pousando “O Giestal” sobre a mesa.
- As cópias fazem-se com papel químico debaixo da folha principal, só escreves uma vez.
- A minha letra não é boa, toda a gente diz.
- E está decidida também a data da inauguração? – perguntou o Rebimbas.
- Tens a certeza de que não entrou mosca aqui no animal? – gracejou o Malaquias mordendo uma talisca de presunto.
- Não cortes mais, Julieta!
- Falei com o padre e ele disse que por ele podia ser – disse o Jasmim.
- Mas quem tinha de falar com o padre era o Barbeiro, ele é que é o presidente, não és tu – criticou o Carvalhosa –, e o que foi que ele disse?
- Disse que achava bem que a Comissão de Festas fizesse o inauguramento antes da procissão.
- Antes?!, mas nós tínhamos combinado que seria depois.
- Mas ele falou-me assim… antes.
- Antes!, então, eu vou puxar a corda lá do cetim que tapa a estátua, no pelourinho, e corro para a igreja a pegar no andor do Baptista?!, tínhamos combinado que seria depois, uma pessoa acaba a procissão, descansa, bebe um copo, e só depois é que mostramos a estátua ao povo, calmamente, assim é que deve ser, inauguração, mais um copito, almoço e festa; a propósito, Julieta, trataste do cetim?, verde e vermelho, mais vermelho do que verde, não te esqueças.
- E não é preciso tapar a estátua toda, basta a cabeça – sugeriu o Barbeiro.
- Mas o padre falou que seria melhor antes, o que é que querem?
- Pois por isso é que devia ter sido o Barbeiro a falar com o padre.
- Porquê?
- Sempre é o presidente, e os padres entendem-se melhor com os presidentes, só isso.
- Mas posso ser eu a puxar o cetim da estátua – propôs o Barbeiro.
- Isso compete ao presidente da Junta.
- E o presidente da Comissão de Festas não faz nada de vistoso? – irritou-se o Barbeiro.
- Lês o jornal.
- Bardamerda!
- E o cetim, em que ficamos? – perguntou a Julieta. – Arranjo só a contar com a cabeça ou o corpo todo?
- Cabeça – disse o Gonçalves Barbeiro.
- Isso não tem jeito! – protestou o Carvalhosa com uma tira de presunto nos lábios –, até parece que queremos atabafar o homem!
- Mas é uma estátua… - defendeu o Barbeiro. – E sempre poupamos no tecido.
- Onde foi que já se viu inaugurar uma estátua em que só a cabeça é que está tapada?!
- Quem diz a cabeça, diz um bocadinho mais… até aos ombros, acho que chega muito bem, é só uma estátua, e eu sou o presidente da Comissão de Festas, não sou?
- És, mas isso não quer dizer nada, tu fazes o que a gente decidir.
- Mas também sou tesoureiro, e as continhas dizem que só há cetim para a cabeça.
- Isso é um bocado estúpido – retornou o Carvalhosa –, porque sempre poderíamos usar o cetim noutras inaugurações.
- Não é inauguramento que se diz? – perguntou o Jasmim.
- Não, é inauguração.
- Meio metro de cetim chega muito bem.
- Um metro é melhor – falou a Julieta.
- Um metro, pronto! – concordou o presidente da Comissão de Festas.
- Um metro, pronto, calma aí!, não há dinheiro na Comissão para comprar dois metros de cetim?! – quis saber o Carvalhosa.
- Haver, há, mas podemos poupar, não?
- Isso é truque à Salazar, ó Barbeiro!
- Deixa ser, o homem não era tão mau como o pintam.
- Se é para discutir política, o melhor é partir mais um pedaço de presunto – disse o Rebimbas.
- Pronto, fica no pelourinho! – quase gritou o Peixoto voltando do quarto de banho –, e já trataram do inauguramento propriamente dito?
- Inauguração – corrigiu o Jasmim.
- Não se tinha pensado em cobrir o padeiro com cetim, ou fui eu que percebi mal? – continuou o Peixoto.
- Vá, vamos então votar: quem está a favor de se comprar cetim só para a cabeça da estátua, fica sentado – disse o Carvalhosa.
- Espera aí, que eu ainda estou em pé… explica lá – pediu o Peixoto, já sentado.
- Vai-se votar quem concorda com a compra de um metro ou dois metros de cetim para a inauguração da estátua.
- Para o caso de ser para a estátua toda, é melhor pensar-se em dois metros e meio, acho eu – disse a Julieta.
- Quem está de acordo com um metro de cetim, fica sentado.
- Espera aí! – pediu o Peixoto, fazendo o movimento para se levantar –, levanto-me se estiver de acordo com dois metros?, é isso?
- Continuo a dizer que dois metros e meio é melhor.
- Já sabemos, Julieta, valha-me Deus! – incomodou-se o Barbeiro.
- Diz lá outra vez para isto ficar certo – retomou o Peixoto.
- Quem está de acordo com um metro de cetim, fica sentado – repetiu, enfastiado, o Carvalhosa.
- Mas agora pergunto – interrompeu o Malaquias –, não se pode comprar doutro tecido mais barato e tapar a estátua toda na mesma?
- Lustroso igual ao cetim? – perguntou a Julieta.
- Não sei, qualquer coisa.
- É cetim!, falámos na outra reunião que era cetim e é cetim!, quem vota a favor?
- Faz lá a pergunta à séria.
- Quem está de acordo com um metro de cetim, fica sentado – disse o Carvalhosa, levantando-se. E levantaram-se também o Peixoto e o Rebimbas. Julieta estava em pé mas como não pertencia à Comissão de Festas o estar em pé não era voto. O Almiro levantou o braço.
- E eu?
- E você o quê? – enervou-se o Carvalhosa, já a pensar no resultado.
- Eu abstenho-me.
O empate no assunto do cetim lançou-os a todos ao presunto.
- Calma aí porque ainda tem de haver bicho no dia da festa – disse o Carvalhosa.”



Abel Neves, “Precioso”, Lisboa: Dom Quixote, 2006.

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