28 de junho de 2007

dúvida


Num universo exclusivamente dominado por detestáveis estafermos, ser-se pacífico não seria sinónimo de cobardia?


Albert Cossery, Uma ambição no deserto (tradução de Sarah Adamopoulos), Lisboa: Antígona, 2002.

25 de junho de 2007

nogueiras

JAO, Walnut tree, 1990, watercolor, 9'' x 15''


Agora é só deixar passar o verão para começar a apanhar as nozes.

23 de junho de 2007

02.

Seis meses a darem-me conta da novidade, depois passou, e eu para aqui com o cubículo

- um luxo, hã?

e a caravela que me mata, quieta, a provocar-me todos os dias, eu cheia de vontade de ir lá arrancar-lhe as pedras uma a uma, desfazê-la aos poucos, devagar para doer mais, e depois levar as pedras para uma ponte e atirá-las aos carros, ficar a vê-los despedaçarem-se uns contra os outros, contra as guardas das auto-estrada, contra o pilar do viaduto, provocar acidentes como deu no telejornal ou então

- Tão bonita, já viu?

amarfanhá-la comigo num saco de batatas e afundarmo-nos as duas no rio, um naufrágio anónimo, não seria o primeiro, quantas não ficaram logo ali, à saída do cais, nem áfricas nem índias nem brasis, nada, logo ali as cascas de noz, e um velho a rir-se

- Eu bem te avisei.

21 de junho de 2007

f)

- Faz favor?

Quando eu farto de saber, bem sabes que adivinho, só pelas caras e adivinho, uma cerveja, um galão directo, uma tosta mista, dois vinhos do porto se turistas inglesas escaldadas do sol e tu a rires-te

(És tão bonita)

quando te contava estas histórias, tu a rires-te e a fingir que acreditavas, mesmo antes do abraço, do beijo, da declaração de amor

- És tão bonita.

19 de junho de 2007

01.

Há dias em que estas pedras me sufocam. Imagino-me entre elas

(não debaixo, entre)

só com a cabeça de fora a apreciar o meu próprio sofrimento, a sentir cada aperto nas costelas, a suportar cada vez menos a contracção dos pulmões e eu presa, eu só com a cabeça de fora a ver as pessoas passarem. Eu invisível ali no meio da caravela, não, à popa da caravela que mandaram espalmar aqui na praça

- Tão bonita, já viu?

Eu que sim, pois é, sempre alegre para quem passa e afinal isto, a saber desde o início que aquela mancha azul não uma caravela, uma máquina de tortura que me martiriza, que às vezes quando chove e fica meio disforme por causa das folhas das árvores, e às vezes quando o sol a faz brilhar de tal forma que eu cega, e às vezes mesmo quando na tenda da feira uma alcatifa por cima mas eu sabendo que ela lá, só à espera que a destapem para voltar a provocar-me

- Assim, sim. Até dá gosto vir à praça.

Eu que sim, pois é, sempre razão o cliente, tem sempre razão o cliente e afinal com a caravela veio também a casa nova, não foi, a casa nova, este cubículo de zinco a que chamam, simpáticos

- uma casinha que é um luxo, hã?

18 de junho de 2007

ver




Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:

- Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?



Sophia de Mello Breyner Andresen, "Os Três Reis do Oriente", Contos Exemplares. Porto: Figueirinhas, 2004 (35ª edição).

revolta



Era dia de orquestra. A orquestra vinha duas vezes por semana de uma praia vizinha. Os músicos eram magros e novos e tinham smokings velhos, ligeiramente esverdeados pelo uso e pela humidade das invernias marítimas. Eram músicos falhados: sem grande arte, com pouco dinheiro e sem fama. Deviam ser ou resignados ou revoltados. Espero que fossem revoltados: é menos triste. Um homem revoltado, mesmo ingloriamente, nunca está completamente vencido. Mas a resignação passiva, a resignação por ensurdecimento progressivo do ser, é o falhar completo e sem remédio. Mas os revoltados, mesmo aqueles a quem tudo - a luz do candeeiro e a luz da Primavera - dói como uma faca, aqueles que se cortam no ar e nos seus próprios gestos, são a honra da condição humana. Eles são aqueles que não aceitaram a imperfeição. E por isso a sua alma é como um grande deserto sem sombra e sem frescura onde o fogo arde sem se consumir.



Sophia de Mello Breyner Andresen, "A Praia", Contos Exemplares. Porto: Figueirinhas, 2004 (35ª edição).

significado


E levantou-se depois o irmão de Amer, que disse:

- Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema é ele próprio o seu sentido. Assim o sentido de uma rosa é apenas essa própria rosa. Um poema é um justo acordo de palavras, um equlíbrio de sílabas, um peso denso, o esplendor da linguagem, um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si próprio e, como um círculo, define o seu próprio espaço e nele nenhuma coisa mais pode habitar. O poema não significa, o poema cria.



Sophia de Mello Breyner Andresen, "Os Três Reis do Oriente", Contos Exemplares. Porto: Figueirinhas, 2004 (35ª edição).

16 de junho de 2007

estratégia

Peter Robinson, World Domination - Strategic Plan
1996. Técnica mista. Instalação na XXIII Bienal Internacional de São Paulo.
Foto: Fernando Chaves



O plano estratégico - pensou - é um assunto demasiado importante para ser controlado por políticos.
Sobretudo - foi forçado a concluir - quando não concordamos com eles.

e)

- Estou?

Um telefonema que ainda não

- Graças a Deus Deus nos livre Deus nos guarde rezo a Deus por ti por nós por mim

De maneira que eu por agora só entre os clientes e o relógio por cima da porta, a aviá-los distraído, a distrair-me, a contar as bicas que faltam para a hora da visita, é só mais esta.
Mas sempre alguém a entrar pela porta como se eu não tivesse mais nada para fazer, como se eu aqui só para os servir, muitos cafés bebe esta gente.
Eu o dia todo para trás e para a frente, não apagado numa cama de hospital

- cama quatro, ao fundo do corredor

mas aqui, de bandeja na mão a fazer gincanas entre as mesas e a amassar a farda que tu, que agora eu, uma vergonha, duas horas para passar um colete a ferro e mesmo assim sempre com vincos, não quando tu

- Parece novo!

te mostravas a mulher mais feliz do mundo só porque te sorria e te agradecia. Tu sem te importares de me servir, não egoísta como eu a fingir-me simpático para o da mesa dois, ali ao canto

- Faz favor?

15 de junho de 2007

obras



- Como diz?
- Digo que as grandes obras públicas, aquelas de que tanto se fala, estão para Portugal como a guerra para os Estados Unidos: alimentam os empresários, disfarçam o desemprego, distraem os jornais e entretêm as massas.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- Quem se não entusiasma com elas é um refractário.
- Como diz?

14 de junho de 2007

xxii

- Um café e um bolo de arroz.

Não pela fome, apenas para tirar o sabor da massa cinzenta com que o dentista me encheu a boca no início da tarde, esse dentista que me veio falar de espaços canibalizados e que ao fazê-lo me deixou assim, a pensar na cárie em que se transformou a minha vida, um buraco que não podemos chumbar

- Vamos desvitalizar
- Como diz?
- desvitalizar o maroto?

E eu tentado a aceitar, porque eu todo uma dor constante, eu todo um sabor a podre que nenhuma sobremesa, nenhuma pasta dentífrica me consegue retirar.
Entretanto o telemóvel com um número estrangeiro que não identifico à primeira e a vontade de o atirar fora, deitá-lo ao lixo como ao dente estragado ou então pô-lo à venda no quiosque lá de baixo, numa caixa de cortiça com um galo de barcelos a dizer recordação de portugal.

- Sim?

d)

- É para ti.

Com aquele sotaque arrevesado que confesso ao princípio me fazia confusão, umas bocas lá na associação entre os ases de trunfo

- Quem é a partir?

Mais para me fazer homem do que na verdade, porque passados uns tempos até

- O rapaz é atinado, deixem-no lá.

Longe de imaginar que depois um dia atrás do balcão com o sotaque arrevesado

- É para ti.

E eu antes de atender ainda

- Três canecas para a quatro

apontando no bloco ao pé da caixa registadora e só depois

- Estou?

7 de junho de 2007

outro

John Kirby, Another Day 1999
Oil on canvas, 100 x 75 cm / 39½ x 29½ in, AFG 30355

6 de junho de 2007

to overcome

"Over there all the woman wear silk
and satin to their knees
And children dear, the sweets, I hear,
are growing on the trees
Gold comes rushing out the rivers
straight into your hands
When you make your home
in the American Land"

American Land, Bruce Springsteen
© 2006 Bruce Springsteen (ASCAP)



A gente ouve e constata como é injusto pensar no Bush quando se fala da América.
We shall enjoy the music (quanto mais não seja).

2 de junho de 2007

cultura

- Como diz?
- Digo que ter amigos cultos é muito mais útil do que utilizar dicionários antiquados:

"Não sei se não sabes mesmo ou se estás só na brincadeira, mas de toda a forma passo a explicar aquilo que, imagino eu, querem os senhores dizer com o sistema completamente redundante. Presumo que se estarão a referir à segurança, ou seja, será um sistema em que há multiplos servidores a fazer a mesma coisa, pelo que, se um deles (ou vários deles) forem abaixo, o sistema continua a funcionar e não se perde informação. O sistema de segurança por redundância (e assim é que se chama à coisa) mais conhecido de todos é, nada mais nada menos, que a própria World Wide Web, que é mantida a funcionar por alguns (não muitos) servidores espalhados pelo mundo (ocidentalizado), alguns deles sem grandes preocupações de segurança física."

- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- Quem os não tem nunca há-de perceber nada das novas tecnologias.
- Como diz?

1 de junho de 2007

redundante

Vamelo, série "redundante" #1, 1996,
tintas personalizadas, realizadas a partir da dispersão de pigmentos metálicos (óxidos) naturais em emulsão de resina sintética (PVA) e areia, sobre aglomerado fibroso de média densidade (MDF), 200 x 200 cm


"A xxxxxxxx vai proceder à migração da actual plataforma de email, para um novo sistema completamente
redundante, de alta disponibilidade e performance, que permitirá um acesso ao email, mais rápido, mais funcional e mais seguro."

Pergunto-me a qual dos seguintes significados de "redundante" se estará a referir a empresa que me serve o e-mail diariamente:

1. superabundante; excessivo; demasiado;
2. supérfluo;
3. palavroso; prolixo;
4. que repete informação que já foi dada; pleonástico;

Seja como for, deve ser caso para pedir um desconto.