23 de outubro de 2010

humanizar



O Bolaño anda há meses a matar mulheres na minha mesa de cabeceira. A coisa percebe-se melhor lendo as reportagens da Alexandra Lucas Coelho que saíram no Público no verão passado, mas ainda assim. Ele e eu somos um deserto demasiado árido e foi preciso dar umas escapadelas para descobrir outros sentidos.
Por altura do Santo António, fiz com que me chegasse às mãos o mais novo livro do Abel Neves. A capa, divertida, engana. O primeiro conto prega-nos uma partida e percebemos só depois que é afinal um aviso.
Entramos em "Aliança" como quem está de férias. Por várias páginas nos deixamos ficar na praia, ora invejando a iniciativa de Beatriz, ora partilhando a surpresa de Tiago. É muito lentamente que o mar se encrespa e que, com ele, nos vamos acinzentando.
Poucas vezes li o Abel assim. Sempre tão optimista e luminoso, tão valorativo das pequenas coisas e dos pêssegos e dos pássaros e das cores, deixa-nos desta vez sozinhos com uma tília que já nem abrigo é capaz de dar.
Culpa dele? Culpa nossa, habituados a encontrar no cinema e na literatura a dose diária recomendada de desgosto que nos faz sentir ligados ao mundo.
Esta história desestabiliza-nos e faz-nos perder o pé. Pela forma como discretamente se insinua e se vai adensando, pelo confronto de escalas que ambas amplifica, pela serenidade do ambiente em que as coisas acontecem, pela familiaridade de tudo aquilo - o país, a cidade, as personagens, as conversas -, pelo medo e pelo silêncio de que somos feitos cúmplices. Pela demonstração do perto que estamos dos maiores horrores de que somos capazes, pela maneira como afronta estes leitores que, como eu, se permitem achar entediante um inventário de cadáveres mutilados encontrados no deserto.
Eu que desci à Avenida para tranquilamente ver as marchas passar dei por mim a cheirar cactos mexicanos em lugar de mangericos. Fiquei com as mãos em sangue, é verdade, mas já posso voltar ao Bolaño.

10 de outubro de 2010

ifigénia

Ifigénia na Táurida, Teatro da Cornucópia, 2010


Fui ao lado do cu do cristo-rei e alegrei-me com a diversidade dos sotaques. Almada pareceu-me, nessa noite, o local ideal para conhecer uma comovente Ifigénia, que se recusa a matar estrangeiros e acredita até ao fim na força da palavra contra a brutalidade das espadas e a injustiça das leis.
Estranho poder da arte, este que nos faz lembrar de Berlusconi e Sarkozy quando afinal um texto de Goethe e a história na Grécia Antiga. Estranha arte o teatro, capaz ainda de encher salas – novas e grandes e boas – e de ajudar a fazer cidade onde se esperava um subúrbio.
“Ifigénia na Táurida”, agora recriado em português por Frederico Lourenço, será sempre um texto belíssimo. Mas é impossível lê-lo hoje sem que nos detenhamos numa das circunstâncias que anima o seu enredo. Por vontade dos deuses (interpretada pelos homens), os estrangeiros que apareciam na Táurida deviam ser mortos no altar de Diana. Durante uns tempos, Ifigénia (ela própria estrangeira e outrora sacrificada) consegue evitar a chacina, convencendo o rei a poupar-lhes a vida e a limitar-se a deportá-los.
Sabe a pouco, claro, mas Ifigénia tinha apenas compaixão, não se lhe exija grandeza de estadista. Além disso, a Táurida era uma terra de bárbaros e progressos mais ambiciosos na cabeça do rei viriam colocar em causa o seu estatuto, contra os interesses da história do teatro.
O final quase feliz causa, talvez por isso, um ligeiro desconforto. Se a fingir custou tanto o que era óbvio, como consegui-lo cá fora, depois dos aplausos e com Ifigénia recolhida aos camarins? Como consegui-lo se continuamos a descarregar sobre os estrangeiros os males da cidade, imaginando gente “de leste” atrás do disfarce de um assaltante, pondo a mão no bolso se nos cruzamos com um preto, exigindo da escola uma turma diferente para os alunos ciganos? Como consegui-lo se continuamos a agarrar-nos às fronteiras e a achar que temos o direito de decidir quem pode e não pode viver connosco? Como consegui-lo se prosseguimos sem aprender nada com a história?
A resposta surgiu-me já no cacilheiro de regresso, num primeiro andar apinhado de diferenças. Cheio de gente que insiste em exercer o seu direito à cidade e que em breve se misturaria com os faróis vermelhos que, do rio, víamos subir a Rua do Alecrim.
Ingenuidade minha, talvez. Ou um optimismo exagerado, porventura alimentado pelos fumos que deixei que partilhassem comigo nessa viagem. Mas é um princípio de resposta esta vontade que se sente ainda de querer viver em conjunto. Que é melhor aproveitarmos, antes que seja demasiado tarde.