27 de agosto de 2008

ouvir

sede do BPC vista do Espaço Cultural Elinga, Largo Tristão da Cunha, em Luanda
(maio de 2008)


Em Maio passado estive 10 dias em Luanda. Saí de lá com a sensação de que sei hoje muito menos sobre Angola do que sabia antes. Talvez seja por isso que só agora me veio a vontade de escrever alguma coisa sobre o assunto, numa espécie de reacção antecipada a muito do que por cá se vai dizer a pretexto das eleições de Setembro.

Embarquei ainda sob os efeitos de uma micro-polémica, iniciada pelas declarações de Bob Geldof sobre os “criminosos” que gerem Angola. Feitas sobre a corrupção praticada por membros do Governo, estas afirmações rapidamente deram azo a extrapolações sobre a falta de democracia em Angola, o despotismo do seu presidente e a inexistência de liberdade de expressão e de imprensa. Juntando a isto o que me diziam sobre a criminalidade nas ruas de Luanda, cheguei preparadíssimo para ver confirmadas, com os meus próprios olhos, as impressões sobre um país condenado, cuja população se dividia em dois: os coitados (pobres - criminosos - amordaçados) e os sacanas (ricos - corruptos - ditadores).

Sabendo que não ia ter oportunidade para sair de Luanda e que as pessoas com quem poderia falar pertenciam a um grupo restrito, decidi ouvir, sobretudo para além das respostas às perguntas que levava para fazer. Tenho hoje a sensação de que em Portugal se ouve pouco o que os angolanos têm para dizer sobre o seu próprio país, como se fossem um povo menor, incapaz de se pensar e de decidir sobre o seu rumo. Não sei se se trata de um resquício do passado colonial directo ou se isso apenas reflecte o tradicional euro-centrismo em que tantas vezes alinhamos na nossa forma de ver o mundo, independentemente de estarmos a falar de ex-colónias ou não. Mas não deixa de ser interessante constatar a facilidade com que se simplifica e se generaliza sobre os países africanos (quando não sobre todo o continente), por oposição aos cuidados e ao rigor que nos exigimos quando falamos dos “nossos”.

Foi a ouvir luandenses, por exemplo, que me apercebi como a classe média está a sofrer com o afastamento do centro da cidade, forçado pelos preços das novas casas, e se aglomera em gigantescos e crescentes subúrbios, tendo que se levantar às quatro da manhã para ir trabalhar. Foi a ouvi-los que percebi como são afectados pelo trânsito caótico, pela falta de estacionamento e pela inexistência de transportes públicos. Foi assim que descobri muita gente indignada pela destruição de alguns dos mais simbólicos edifícios da baixa e que não aceita passivamente a sua substituição pelas torres espelhadas. Foi assim que comecei a entender que o pó que se me agarrava à roupa não era afinal nenhum poético pó de terra africana mas antes um pó de cimento e lucro fácil, nascido no imenso estaleiro que é Luanda por estes dias mas igualzinho a tantos outros que já conhecia de Portugal e que há anos me irritam pele e garganta.

Foi também a ouvir luandenses que conheci algumas das mais absurdas idiossincrasias dos governantes angolanos, contadas com a ligeireza de uma anedota por quem sabe que não é aí que se joga o essencial. Assim ouvi críticas contra o desprezo votado ao interior do país, cuja população não cessa de engrossar os musseques e os subúrbios da capital. A ouvi-los me dei conta de uma conferência de imprensa da UNITA, que reclamava contra a retirada dos cartazes que havia afixado na avenida, e da resposta da administração provincial, que alegava não ter emitido a licença necessária. Foi a ouvir luandenses, no círculo anfitrião e apregoando nas ruas, que me dei conta de que o Jornal de Angola está longe de ser o único e que boa parte dos semanários publicados está longe de ser amigável para com o Presidente. Foi a ouvi-los que me esqueci do que por cá se dizia sobre a liberdade de expressão e de imprensa em Angola.

Foi a ouvir o director da escola que soube da política de abrir os liceus aos sábados para actividades desportivas e culturais, foi a ouvir a conversa das adolescentes de caderno na mão a caminho de casa que confirmei que podia andar sozinho na baixa. Foi por ouvir vários luandenses que me pareceram sérios os esforços para um recenseamento eleitoral bem feito e para uma ampla participação nas eleições. Foi ouvindo luandenses que me apercebi quão fartas de guerra podem ficar as pessoas e quão estimulante pode ser a força e a alegria de quem recuperou a esperança.

Angola é um país numa situação delicada e repleto de contradições. É estranho é que, em Portugal, seja preciso ouvir luandenses para o constatar. Não pelo passado, mas pelo presente, pelo país que vamos sendo, devíamos estar na primeira linha dos que melhor compreendem esta situação.

Há uns tempos, numa série de televisão, duas personagens conversavam sobre o estado pré-depressivo e angustiado em que ambas se encontravam. Uma delas remata a conversa: “Eu estou assim porque tenho cancro. E tu, qual é a tua desculpa?”.

Angola teve séculos de colonização, ajustes de contas, duas guerras civis e os abutres do petróleo e dos diamantes. Qual será a nossa desculpa?



(texto originalmente publicado no 100 lugares)

20 de agosto de 2008

chupistas



O discurso da subsidio-dependência entrou de rompante no desporto, a pretexto dos “decepcionantes” resultados dos portugueses nos Jogos Olímpicos.

Calejado com as discussões a propósito da criação artística, pensava que o desporto estaria a salvo, dada a sua capacidade de gerar mobilizações e emoções colectivas. Se o facto de a questão se levantar num cenário de supostos “maus resultados” parece, por um lado, confirmar essa impressão (tivesse havido mais medalhas e nem se falava no assunto), por outro, esta preocupação com o dinheiro "mal empregado" evidencia a confusão habitual, sem que se discuta o papel que o Estado deve desempenhar no apoio a certas actividades.

No caso do desporto, será útil distinguir dois tipos de apoio substancialmente diferentes, tanto nos fins que os justificam como nos meios a que recorrem: o apoio à formação e à prática amadora e o apoio ao desporto de alta competição, preferencialmente profissional, em áreas onde "o mercado" não consegue garantir a subsistência dos praticantes.

Ambos têm em comum, no entanto, a noção de interesse público: por algumas razões se entende que é do interesse geral apoiar a prática desportiva. Não será sério dizer que o dinheiro aplicado é muito ou pouco sem pensar nessas razões, pois só assim se poderá discutir se os objectivos estão ou não a ser cumpridos.

No primeiro caso existe um alargado consenso. São conhecidos os benefícios para a saúde (no sentido amplo) que decorrem da prática desportiva e é obviamente do interesse geral que os membros de uma comunidade sejam o mais saudáveis possível. Nenhum responsável político precisa de perder muito tempo a justificar a construção de um pavilhão gimno-desportivo ou de um piscina, como não são normalmente contestados os apoios aos clubes que asseguram, face às insuficiências do sistema de ensino, a formação desportiva dos jovens.

Já a alta competição, contudo, presta-se a equívocos. Como se vê pelos discursos que por estes dias se vão lendo, há a ideia de que o Estado paga para que os atletas tenham vitórias. O único interesse público deste apoio, seria dar alegrias às pessoas – desportistas e espectadores. Embora não despiciendo, este objectivo é francamente pobre. Por um lado, porque as vitórias são sempre individuais ou de um grupo restrito e não faria sentido ter todo um país a financiar o prazer particular. Por outro, porque, no que respeita aos efeitos colectivos dessas vitórias, eles são pouco mais do que entretenimento – um valor importante mas que não justificaria, independentemente dos montantes em causa, o entendimento deste sector como uma área específica do investimento público.

Há-de haver, portanto, outras razões, para que se financie a alta competição. A visibilidade e o reconhecimento internacional do país é um deles e tem efeitos tanto no reforço dos laços de identificação entre os cidadãos, quanto em aspectos materiais e económicos (no turismo, por exemplo), quanto até em aspectos políticos. No plano estritamente desportivo, o interesse público da alta competição reside no aumento da visibilidade de desportos menos mediáticos e no incentivo para que mais pessoas os conheçam e possam vir a praticar – basta pensarmos quantas vezes nos lembramos, fora dos grandes eventos internacionais, que em Portugal também se pratica remo, badminton ou lançamento do martelo. Ao amplificar e diversificar o conhecimento das pessoas sobre a prática desportiva, a alta competição assume-se como um reforço fundamental da formação e da prática amadora, facilmente aceites como merecedoras do apoio estatal, complementando o investimento directo que é feito nessa área.

Não são necessárias medalhas para cumprir nenhum destes objectivos – quando muito, ajudam a que eles sejam alcançados. Os resultados da competição não são, por isso, a essência do interesse público do desporto. Se, dado o carácter limitado dos recursos, é admissível que eles sejam um dos elementos a ter em conta na hierarquia dos apoios a conceder (entre outros indicadores e devidamente ponderados de modalidade para modalidade), e sendo o objectivo e o incentivo que motiva os atletas, eles não podem ser encarados com um fim em si pelo Estado, sob pena de se desvirtuar a razão de ser do apoio público.

Faz assim todo o sentido que o Estado português não só mantenha como reforce o investimento no desporto em Portugal. Não para que suba mais uns lugares no ranking das medalhas olímpicas, mas para que haja cada vez mais gente a praticá-lo de uma forma lúdica e cada vez menos amadores a quem é exigido “profissionalismo”.

E mesmo assim, permito-me alertar, continuaremos sempre a ter atletas com um discutível sentido de humor, atletas com dias azarados e até alguns incompetentes. Nada de diferente do que se passa noutros sectores; nada que dê autoridade nem aos concidadãos para arrasar uma classe inteira, nem aos decisores políticos para deixar de considerar, a sério, esta área de intervenção.