21 de abril de 2010

Quatro ensaios para uma política teatral *



Editado pela Cotovia no final de 2009, “Quatro ensaios à boca de cena”, de Fernando Mora Ramos, Américo Rodrigues, José Luis Ferreira e Manuel Portela, com prefácio de José Gil, dá um relevante contributo para a discussão sobre as políticas culturais em Portugal, salientando a centralidade da criação artística e dissecando o que tem sido (e o que pode ser) a actuação do Estado nesta matéria. A internacionalização, em particular no espaço da lusofonia, é um dos aspectos em análise.

Partindo das suas experiências profissionais, os autores reflectem sobre o papel da criação artística em Portugal, começando por elencar vários equívocos da política cultural em Portugal: a desvalorização da figura da companhia de teatro (e do seu papel de transmissão inter-geracional, de formação, de contexto e de “fermento” para a inovação), a desconsideração das diferenças entre projectos profissionais de criação artística e projectos de animação cultural (F. M. Ramos); a ficção que é a “Rede de Teatros” do país, face à falta de condições orçamentais e de critérios que definam a sua missão de serviço público (A. Rodrigues); a valorização absoluta dos “cruzamentos disciplinares” em detrimento do aprofundamento de e em cada área artística (J. L. Ferreira); e “a absorção das práticas artísticas no conjunto das indústrias culturais”, que implica “a erosão da [sua] função crítica e emancipatória” (M. Portela).
Neste contexto, avançam algumas propostas concretas. Encenador e director do “Teatro da Rainha”, Fernando Mora Ramos defende a criação de “uma primeira rede de serviço público teatral”, assegurando a cobertura da globalidade do território nacional. Sugere a identificação de um conjunto de 12 a 15 “regiões dominantes”, onde, com as estruturas de criação aí sediadas e as autarquias, sejam instalados “pólos culturais determinantes” que funcionem como “um factor de dinamização geral”. Algo de que se aproxima José Luis Ferreira, coordenador do Departamento de Relações Internacionais do Teatro Nacional de S. João, ao sugerir “um domínio público de estruturas de criação e difusão com pólos de excelência e uma vocação de cobertura territorial”, complementada com a criação de “núcleos mistos” espalhados pelo país – “teatros de dimensão municipal, com projecção regional e ambição nacional e internacional”. O director do Teatro Municipal da Guarda, Américo Rodrigues, salienta a necessidade de que Governo e autarquias assumam as suas responsabilidades no financiamento dos principais teatros do país “de forma solidária”. Manuel Portela, ex-director do Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, reivindica uma atenção particular “à natureza e à qualidade artística” das propostas e à “qualidade da gestão específica” de cada projecto.
Quanto à internacionalização, Mora Ramos escreve que ela permanece dominada pelo “pára-quedismo circunstancial e a acentuação dos factores efémeros” e condenada, por isso, “à inconsequência precária do fortuito”: o que faz mais sentido, defende, é o “desenvolvimento de intercâmbios regulares nos territórios em que o português se fala”. A efectiva internacionalização só será conseguida “num quadro gerador de regularidades e quando a troca é real, isto é, quando a percepção que [os meus anfitriões] tenham do teatro português corresponda a um desejo real de o conhecer e que portanto se gerem projectos específicos, um intercâmbio franco e afectivo baseado nas surpresas das línguas, na universalidade do teatro e na concretização de relações reais, interpessoais e projectuais”.
No prefácio do livro, José Gil revela-se optimista: “ouso esperar que, depois da sua recepção pública, nada será como dantes no mundo do teatro”. Para todos aqueles que têm tentado forçar a porta de um debate sempre recusado, este optimismo talvez pareça exagerado. Mas nem por isso ele deixa de ser necessário.
A par do trabalho diário que vamos fazendo, ele é, aliás, tudo o que nos resta.

* texto publicado no cenaberta on-line

17 de abril de 2010

Mais com mais

Não era necessário transformar este segundo momento do ciclo de co-produções entre A Escola da Noite e a Companhia de Teatro de Braga numa trilogia para mostrar o que pretendíamos. Nem foi por isso que o fizemos. A opção surgiu já com o projecto em andamento, em função da riqueza do material que tínhamos em mãos e dos resultados a que fomos conseguindo chegar com o próprio processo de trabalho.
Ainda assim, esta “multiplicação” de espectáculos acaba por ser uma boa imagem da forma como quisemos encarar a colaboração a que nos propusemos. A crise a crise a crise a crise tem, para além de todos, um perigo máximo: o de fazer com que aceitemos, desejemos ou sintamos que temos de abrigar-nos em porto seguro, à espera que a tormenta passe. O perigo de nos fazer concentrar nas fraquezas – nossas e alheias – e de nos convencer de que, se as juntarmos, seremos mais fortes. O perigo de baixar o nível de exigência e o erro de nos querer fazer acreditar que é possível e desejável fazer mais com menos.
Somos dos que resistem a este miserabilismo e dos que não aceitam esta inevitabilidade. A crise a crise a crise a crise é forte, afecta-nos e deixa marcas, mas não impede a escolha. Pelo contrário, torna-a mais decisiva. Encolhermo-nos ou arriscarmos? Estacionar ou subir a fasquia?
Numa época em que tanto se fala de empreendedorismo, talvez fosse bom parar para pensar o que quer isso dizer em matéria de criação artística. A pretexto da crise, os criadores nacionais estão hoje sob uma tremenda, perversa e ilegítima pressão: com maior ou menor subtileza, tem vindo a instalar-se a ideia de que temos de perceber a dificuldade dos tempos. E de encontrar alternativas, construindo projectos financiáveis, enquadráveis, elegíveis, sustentáveis, rentabilizáveis. À custa do que for preciso e em nome de uma suposta capacidade empreendedora, assente no pragmatismo, na maleabilidade, na eficiência de gestão e na compreensão das regras do mercado.
Alguma coisa temos aprendido desta linguagem – palavras novas, afinal, para aquilo que as estruturas de criação desde sempre têm feito e sem o qual o panorama português seria muitíssimo mais pobre. Mas não nos esquecemos nunca de que, em arte, o empreendedorismo que importa é o que move os criadores e os impele a comportar-se como artistas. É aí que a criatividade realmente conta, é daí que surge a novidade, é apenas a partir daí que podemos (e devemos) ser dinâmicos, “pro-activos”, “criativos” na gestão e na produção. Por estranho que pareça, os dias que vamos vivendo aconselham-nos a repetir o que devia ser óbvio: no centro da actividade cultural e das políticas que a regulam tem de estar a criação artística. É esta que lhes dá conteúdo e sentido e que precisamente pode transformá-las num muito poderoso instrumento contra a crise.
As duas co-produções realizadas entre a Companhia de Teatro de Braga e A Escola da Noite – “Sabina Freire” em 2009 e agora a trilogia “1.José 2.Rubem 3.Fonseca” – assentam nestes pressupostos. São uma conjugação das nossas maiores forças e potencialidades para que possamos chegar mais longe do que conseguiríamos sozinhos. Juntámos meios (elencos, equipas técnicas, equipas de produção, orçamentos) para podermos ser ainda mais ambiciosos nos espectáculos a apresentar. Aproveitámos para subir a fasquia, aceitando e partilhando todos os riscos que daí decorrem. O de fazer um texto já quase esquecido na história do teatro português, lutando contra a desconfiança, o preconceito e, sobretudo, contra o desconhecimento; e, agora, o de experimentar a abordagem a todo o universo literário de um autor (não teatral) como Rubem Fonseca, sem um guião definido à partida.
Quando a aposta é convicta e partilhada, há sempre o risco de as coisas correrem bem. Tão bem que, ao fim de três meses e meio de trabalho diário e intensivo, temos não um mas três espectáculos para oferecer aos nossos espectadores – “culpa” do autor, responsabilidade nossa, desafio e oportunidade para o público.
E um sinal claro de que é realmente possível fazer melhor e fazer mais. Com mais.

Coimbra, Abril de 2010.

A Escola da Noite / Companhia de Teatro de Braga
(in programa da trilogia "1.José 2.Rubem 3.Fonseca")