12 de novembro de 2007

limpar


Antes de te decidires a contratar alguém para limpar o pó, experimenta fazê-lo ao som da Ute Lemper.
Vai alma e tudo.

8 de novembro de 2007

sintoma



Numa entrevista sobre um novo festival de cinema (Alexandra Lucas Coelho no Público de hoje), passa-se um terço do espaço a falar de outros dois festivais. Ainda bem que o entrevistado é o Paulo Branco.


Tanto o Indie como o Doc têm salas cheias, cobertura de imprensa constante, e têm provado que há um público a ser formado.
Não forma nada, zero.

O facto de 32 mil pessoas se terem distribuído por 300 filmes?
Não forma. É um erro, os festivais não formam um único espectador. O que forma é um trabalho sistemático da exibição comercial, da crítica. Os festivais nunca formaram. São eventos, em que o público vem como se viesse para uma festa, mais nada, em que consome, como se consome nos supermercados...

[...]


O Indie e o Doc têm autocarros, metro, táxis.

Aqui também. Não tem dificuldade em chegar ao Estoril, que eu saiba.
Espero que o público possa usufruir deste acontecimento. Agora não estou aqui em competição de números. E acho dramático que se comece a analisar a qualidade dos festivais pelo número de espectadores e filmes passados. Então vamos para os supermercados. Prefiro ter filmes de enorme qualidade com menos público do que fazer, desculpe lá, os Corrupções mundiais e ter isto cheio.

[...]

O que é correr bem?
Que os filmes estejam cá, que sejam projectados, que haja discussão. Mas se continuamos uma análise fria de números, então matam o cinema, acabou. Voltemos às origens, vamos discutir o essencial. Só espero que neste país ainda haja interesse por isso. Se não houver, o problema já não é meu.


Pois não, Paulo. É nosso.

7 de novembro de 2007

elisabete



Agora só falta mesmo virem dizer-me que é preciso mostrar o lado humano dos estadistas.
Como se o exercício do poder não o fosse por definição; como se aquilo a que se chama "o lado humano" fosse mais do que o que queremos ver com o nosso olhar de voyeurs, repleto de preconceitos e lugares-comuns.

30 de outubro de 2007

confiança

"A outra margem", de Luis Filipe Rocha


- Confias em mim?

- O Vasco bebe sempre leite morno antes de adormecer.

29 de outubro de 2007

sobretudo

BORTSOV

Não percebo nada... (Levanta-se depressa.) É preciso compreender as conversas, mas que inteligência tenho eu agora? Só tenho instinto, a sede! (Aproxima-se rapidamente do balcão.) Tíkhon, aceita o sobretudo! Compreendes? (Quer despir o sobretudo.) O sobretudo...

Anton Tchékhov, Na Estrada Real (tradução de A.P.)

23 de outubro de 2007

penélope

a paz é uma ruiva a cantar
greek inspired songs
num palácio árabe
com anexos católicos


18 de outubro de 2007

nevoeiro

acima do alcatrão o nevoeiro apenas

1 de setembro de 2007

vento

Um ano depois fomos ter contigo à praia do costume e era como se nunca tivéssemos deixado de lá ir, nenhum ano em branco, nenhum verão de aperto, nós ali a almoçar e a brincar no quintal

- tu és o nadador-salvador, está bem?

o mesmo café na garagem de sempre e depois os castelos de areia molhada e a água fria, eu a admirar-me com a destreza que ganhaste nas raquetas, com o orgulho que construíste para disfarçar o susto no parque de diversões, nós todos a fazer por esquecer a cicatriz na barriga, as consultas mensais, os exames periódicos, os indicadores que às vezes
Nós todos a besuntar-te com creme protector, a ignorar o vento que nos pica e resseca e a saborear este gelado como se fosse o último.

31 de agosto de 2007

limbo

José Rodrigues dos Santos, A Filha do Capitão. Lisboa: Gradiva, 2004.

Não fora a não reprimida tentação do autor de nos mostrar o quão profunda tinha sido a sua investigação histórica, num registo que demasiadas vezes se aproxima do folclórico, e deste livro eu lembraria apenas o que, com prazer, aprendi sobre o início do século e a forma difícil mas bem conseguida como a personagem principal é construída, evitando os lugares-comuns e tipificados do herói e do anti-herói.

distinção


Se há uma mensagem metapolítica em meus romances, é sempre uma mensagem, de uma maneira ou de outra, de um compromisso, compromisso doloroso, e da necessidade de escolher a vida em lugar da morte, a imperfeição da vida em lugar das perfeições da morte gloriosa. Este é meu compromisso, um dos meus vários compromissos.
Tanto é assim que sempre tenho duas canetas em minha mesa, duas canetas esferográficas muito simples, muito baratas, as quais tenho que repor a cada duas semanas, mas tenho sempre duas delas, uma preta e outra azul. Apenas para lembrar-me que quando escrevo um ensaio político é uma coisa, e quando escrevo uma história é outra. E não misturo.


Amós Oz, "O Antídoto da Imaginação", in Contra o Fanatismo (tradução de Denise Cabral de Oliveira). Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

29 de agosto de 2007

preguiça



agradecimento

Machado de Assis, O Alienista, Coimbra: Alma Azul.

Como se já não bastasse a estante atulhada de livros nunca lidos que me observa com desdém na sala lá de casa, há quem insista em emprestar-me obras desconhecidas, decerto só para me apoucar.

Acho que preciso de um retiro.
Na Casa Verde, de preferência.

28 de agosto de 2007

lagos

Mais do que deprimente, a paisagem que avistava da varanda do hotel com nome ridículo e lençóis vincados em que fiquei - blocos de apartamentos mal encaixados uns nos outros, traseiras de vivendas infestadas de anexos, palmeiras atarracadas no passeio da avenida, uma rotunda trabalhada em granito e areão e o tapete de asfalto onde chiavam os carros dos jovens veraneantes - pareceu-me sobretudo conter algo de hipócrita.
Eram três da manhã quando descobri que era o branco das fachadas.

21 de agosto de 2007

sonho


Constato fascinado que no trapézio, ao contrário do que acontece na vida real, não há lugar nenhum para o individualismo.
Até 26 de Agosto, no ccb.

17 de agosto de 2007

athena


Lá li um Roth, como convém.

Um pouco palavroso para o meu gosto, mas inesperadamente oportuno, numa altura em que os comentários anónimos nos blogues superam, em eficácia, mesquinhez, cobardia e falta de carácter, os e-mails enviados de contas-fantasma.
Além disso, no que toca a intrigas de bastidor, a oportunismo carreirista, a falsos moralismos e à mais pura coscuvilhice, a universidade que inexplicavelmente continuo a chamar de minha vai, ainda que um pouco atrasada, no caminho certo.

17 de julho de 2007

promessa

Um jovem sociólogo, que hoje não tem emprego, se falar árabe daqui a três anos tem emprego.


Luis Filipe Meneses, Edição da Noite, SIC Notícias, 16/07/2007, 22:30h.

16 de julho de 2007

rodrigo

Importa lembrar que o escrevi muito novo porque, como será compreensível, não é o livro que hoje escreveria. O tempo e a distância operam uma escalada de exigência que, ao mesmo tempo que nos obriga a melhorar e a evoluir, faz descer um manto cruel sobre o que fizemos um dia, muito lá atrás.

Rodrigo Guedes de Carvalho, "Nota do autor", in Daqui a nada.



E mesmo assim é tão bom como os restantes:

agora

Rodrigo Guedes de Carvalho, Daqui a nada. Lisboa: Dom Quixote, 2006 (15ª edição)



ao fim e ao cabo que restará ainda para te contar, agora que decidiste abandonar-me de vez, agora que finalmente me morreste dentro das tripas, contar-te-ei que afinal não fui o médico que desejaste, que nunca fui o escritor que desejei, far-te-ei notar que nunca me libertei destes pólos que me estrangulam, que me obrigam a repensar tudo, nunca fui um bom médico, nunca escrevi nada, nunca fui pai, nunca fui filho, sempre fui mau marido, nunca agradei a ninguém, sobretudo a mim mesmo, sempre me arrastei entre o que sonhei e o que nunca fiz, entre o que palpita cá dentro e nunca palpitou cá fora

13 de julho de 2007

fatalidade

Honoré de Balzac, A Mulher de Trinta Anos
(tradução de Dóris Graça Dias). Lisboa: Difel, 2004.


Mão amiga, como quem me embala no berço da literatura romântica, fez-me chegar o primeiro Balzac cá de casa.
Eu, novato e agradecido, deixo-me levar.
E conquistar pelo barroco, surpreender pelo trágico e sorrir com o fatalismo e a misoginia da coisa.

12 de julho de 2007

subúrbio

Lá tem Jesus
E está de costas

"Subúrbio",
in Carioca
, Chico Buarque/2006





Confesso que me mantive quase indiferente à eleição das sete maravilhas do mundo, ao ponto de só dois ou três dias antes da cerimónia ter percebido que esta decorreria em Portugal.
Para além das razões que levaram a UNESCO a demarcar-se da iniciativa (e que me parecem muito válidas), inquieta-me esta espécie de arrogância geracional, esta convicção de que podemos nós, os contemporâneos, definir o que é mais maravilhoso no mundo desde há milhares de anos.
Só por inconsciência, no mínimo, se pode fomentar a comparação entre a Grande Muralha da China e a Ópera de Sidney ou entre o Coliseu de Roma e o Cristo Redentor. Independentemente de qualquer outra discussão, o factor tempo parece-me aqui determinante. A circunstância de algumas destas maravilhas se manterem de pé e conhecidas do mundo inteiro há dois mil anos é, só por si, algo que as coloca num patamar de absoluta incomparabilidade com outras que, por marcantes que sejam, não têm sequer cem anos. Falta-lhes, a estas, a prova dos séculos para mostrarem a sua real importância na história da humanidade. Passaria pela cabeça de alguém comparar Ésquilo com Harold Pinter, ou Homero com Saramago (para só falar de prémios Nobel e, portanto, de nomes consagrados pela contemporaneidade)? Se, daqui a dois mil anos, o mundo ainda souber quem foi Pinter, se o “Ensaio sobre a cegueira” for ensinado nas faculdades do mundo inteiro, então talvez se possa começar a pensar em equipará-los.

Mas depois vieram os resultados da votação global e parece que fizeram jus aos esforços desenvolvidos pelos governos dos respectivos países vencedores – Brasil, México, Perú, Índia, Jordânia (e também a China e a Itália).
Se por detrás do investimento das autoridades nacionais estão seguramente legítimas preocupações económicas, relacionadas com o quase certo boom turístico de que passarão a beneficiar depois da eleição, isso não explica a mobilização efectivamente percebida entre muitas das populações, quer durante o período de votação, quer durante os festejos que as cadeias internacionais de televisão nos fizeram chegar.
Por pouco que seja, o facto de poderem vir a ganhar alguma coisa num mundo em que são sempre olhados como o subúrbio é sem dúvida estimulante. Não ficámos nós próprios, portugueses, orgulhosos por ver subir ao palco um conterrâneo – Cristiano Ronaldo, que, no final, receberia os cumprimentos de Sócrates e Cavaco?

Embora, do ponto de vista histórico-científico, o concurso não tenha passado de um entretenimento, apetece-me portanto olhá-lo numa perspectiva política e destacar as conclusões que, apesar de óbvias, me parece ser possível retirar daqui:
- o centro do Mundo (onde são construídas as grandes obras e se aplicam os mais avançados conhecimentos, técnicas e tecnologias de cada época) não esteve sempre na Europa ou nos Estados Unidos);
- nos países (hoje) menos “desenvolvidos” também há gente, e muita;
- esta é uma gente que sente, que pensa, que se orgulha e que se mobiliza.

Que seja preciso um concurso manhoso para nos lembrar disto, é um triste sinal dos tempos. Mas lembrá-lo é das poucas formas de não nos ficarmos pelo folclore etno-comercial deste tipo de eventos.

9 de julho de 2007

g)

Mas eu ainda hoje com essas qualidades, queres ver, eu mostro-te, vai pedir uma bica e depois, mas só depois, um copo de água, que eu tenho cara de quem gosta de andar para trás e para a frente, há-de ser isso que ele pensa, fartinho de saber que vai querer um copo de água mas por agora só

- Era uma bica, se faz favor

Eu quase a perguntar-lhe e não é melhor um copinho de água, não, ou então a decidir trazer-lhe à mesma e pronto mas depois viro-me para o ucraniano

- Sai uma bica.

e vou dar uma volta, entretanto outro casal na mesa seis, a trocar miminhos mas não como nós, se eles só pudessem imaginar

(És tão bonita)

se este, o da bica

- O seu cafezinho.

pudesse imaginar também, ele que de certeza um problema qualquer de amores, que eu bem o vi a levantar-se para a máquina dos cigarros, quase jurava que ele a falar com ela, o homem é doido, a falar com a máquina, com os cigarros, com os botões do telemóvel, só depois comigo

- Arranjava-me um copo de água?

(Eu não disse?)

8 de julho de 2007

memória

Fecha os olhos, esquece o tempo
Nesta noite sem fim
Abre os braços, acende um beijo
Fica dentro de mim
Vem, amor, a noite é uma criança
E, depois, quem ama por gosto não cansa
Amanhã, de manhã,
Vamos acordar e ficar a ouvir
A rádio no ar, a chuva a cair
Eu vou-te abraçar e prender-te, então
No corpo que é teu, na cama, no chão
Os nossos lençóis e a colcha de lã
Eu vou-te abraçar,
Amanhã, de manhã


Já me tinha acontecido com Homero, mas hoje foram as Doce, recebidas pelo Tony Silva n'O Tal Canal, a lembrar-me da pequenez do homem perante o tempo que passa.

6 de julho de 2007

riqueza


- Acha que a cultura pode gerar riqueza? Quer no sentido mais abrangente, quer num prisma mais económico?
- Gerar riqueza económica, não sei, é provável. Não me interessa nada gerar riqueza económica com a cultura, o que me interessa é gerar riqueza intelectual.

- Mas é contra esta visão mais económica de enquadrar a cultura?
- Não sou contra, mas não tem a ver com a minha actividade. Não penso nunca nesses termos, mas acredito que possa gerar riqueza.


Luis Miguel Cintra, numa entrevista muito importante.

detrás




Dizem-me que através das cartas (como de resto dos diários) se conhece melhor a pessoa que há por detrás do seu autor. Que nelas se abstém este de colocar os pós literários que distribui por outros géneros e que assim se expõe, indefeso, à curiosidade dos leitores.
Tentadora, porém pura, ilusão - parece-me. Para além de mais amarradas ao tempo e ao espaço em que foram escritas, elas oferecem-se-nos num código partilhado apenas pelos seus destinatários originais. Disfarçado de transparência, é este código não mais do que campo para especulações de terceiros sobre os reais sentimentos, razões e intenções de quem escreve. Ei-lo, pois, medricas corajoso ordinário apaixonado cavalheiro vaidoso arrogante céptico inseguro humilde inquieto brilhante solidário solitário revolucionário reaccionário, ei-lo tudo o que quisermos.
Desconhecedores desse código, ficamo-nos pela superfície das palavras que lemos, encarregues nós mesmos de esculpir os seus relevos. Ficamo-nos pela literatura.
E ainda bem.

5 de julho de 2007

quintais

Hás-de reparar.
Ali na estrada nacional um, entre Leiria e a Batalha, entre armazéns, restaurantes, stands de automóveis e cruzamentos perigosos, proliferam casas de habitação com fábricas nos seus quintais.

3 de julho de 2007

rasgo

Era um homem com tão pouco, mas com tão pouco rasgo, que até o ar deixou de poder entrar.

28 de junho de 2007

dúvida


Num universo exclusivamente dominado por detestáveis estafermos, ser-se pacífico não seria sinónimo de cobardia?


Albert Cossery, Uma ambição no deserto (tradução de Sarah Adamopoulos), Lisboa: Antígona, 2002.

25 de junho de 2007

nogueiras

JAO, Walnut tree, 1990, watercolor, 9'' x 15''


Agora é só deixar passar o verão para começar a apanhar as nozes.

23 de junho de 2007

02.

Seis meses a darem-me conta da novidade, depois passou, e eu para aqui com o cubículo

- um luxo, hã?

e a caravela que me mata, quieta, a provocar-me todos os dias, eu cheia de vontade de ir lá arrancar-lhe as pedras uma a uma, desfazê-la aos poucos, devagar para doer mais, e depois levar as pedras para uma ponte e atirá-las aos carros, ficar a vê-los despedaçarem-se uns contra os outros, contra as guardas das auto-estrada, contra o pilar do viaduto, provocar acidentes como deu no telejornal ou então

- Tão bonita, já viu?

amarfanhá-la comigo num saco de batatas e afundarmo-nos as duas no rio, um naufrágio anónimo, não seria o primeiro, quantas não ficaram logo ali, à saída do cais, nem áfricas nem índias nem brasis, nada, logo ali as cascas de noz, e um velho a rir-se

- Eu bem te avisei.

21 de junho de 2007

f)

- Faz favor?

Quando eu farto de saber, bem sabes que adivinho, só pelas caras e adivinho, uma cerveja, um galão directo, uma tosta mista, dois vinhos do porto se turistas inglesas escaldadas do sol e tu a rires-te

(És tão bonita)

quando te contava estas histórias, tu a rires-te e a fingir que acreditavas, mesmo antes do abraço, do beijo, da declaração de amor

- És tão bonita.

19 de junho de 2007

01.

Há dias em que estas pedras me sufocam. Imagino-me entre elas

(não debaixo, entre)

só com a cabeça de fora a apreciar o meu próprio sofrimento, a sentir cada aperto nas costelas, a suportar cada vez menos a contracção dos pulmões e eu presa, eu só com a cabeça de fora a ver as pessoas passarem. Eu invisível ali no meio da caravela, não, à popa da caravela que mandaram espalmar aqui na praça

- Tão bonita, já viu?

Eu que sim, pois é, sempre alegre para quem passa e afinal isto, a saber desde o início que aquela mancha azul não uma caravela, uma máquina de tortura que me martiriza, que às vezes quando chove e fica meio disforme por causa das folhas das árvores, e às vezes quando o sol a faz brilhar de tal forma que eu cega, e às vezes mesmo quando na tenda da feira uma alcatifa por cima mas eu sabendo que ela lá, só à espera que a destapem para voltar a provocar-me

- Assim, sim. Até dá gosto vir à praça.

Eu que sim, pois é, sempre razão o cliente, tem sempre razão o cliente e afinal com a caravela veio também a casa nova, não foi, a casa nova, este cubículo de zinco a que chamam, simpáticos

- uma casinha que é um luxo, hã?

18 de junho de 2007

ver




Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:

- Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?



Sophia de Mello Breyner Andresen, "Os Três Reis do Oriente", Contos Exemplares. Porto: Figueirinhas, 2004 (35ª edição).

revolta



Era dia de orquestra. A orquestra vinha duas vezes por semana de uma praia vizinha. Os músicos eram magros e novos e tinham smokings velhos, ligeiramente esverdeados pelo uso e pela humidade das invernias marítimas. Eram músicos falhados: sem grande arte, com pouco dinheiro e sem fama. Deviam ser ou resignados ou revoltados. Espero que fossem revoltados: é menos triste. Um homem revoltado, mesmo ingloriamente, nunca está completamente vencido. Mas a resignação passiva, a resignação por ensurdecimento progressivo do ser, é o falhar completo e sem remédio. Mas os revoltados, mesmo aqueles a quem tudo - a luz do candeeiro e a luz da Primavera - dói como uma faca, aqueles que se cortam no ar e nos seus próprios gestos, são a honra da condição humana. Eles são aqueles que não aceitaram a imperfeição. E por isso a sua alma é como um grande deserto sem sombra e sem frescura onde o fogo arde sem se consumir.



Sophia de Mello Breyner Andresen, "A Praia", Contos Exemplares. Porto: Figueirinhas, 2004 (35ª edição).

significado


E levantou-se depois o irmão de Amer, que disse:

- Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema é ele próprio o seu sentido. Assim o sentido de uma rosa é apenas essa própria rosa. Um poema é um justo acordo de palavras, um equlíbrio de sílabas, um peso denso, o esplendor da linguagem, um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si próprio e, como um círculo, define o seu próprio espaço e nele nenhuma coisa mais pode habitar. O poema não significa, o poema cria.



Sophia de Mello Breyner Andresen, "Os Três Reis do Oriente", Contos Exemplares. Porto: Figueirinhas, 2004 (35ª edição).

16 de junho de 2007

estratégia

Peter Robinson, World Domination - Strategic Plan
1996. Técnica mista. Instalação na XXIII Bienal Internacional de São Paulo.
Foto: Fernando Chaves



O plano estratégico - pensou - é um assunto demasiado importante para ser controlado por políticos.
Sobretudo - foi forçado a concluir - quando não concordamos com eles.

e)

- Estou?

Um telefonema que ainda não

- Graças a Deus Deus nos livre Deus nos guarde rezo a Deus por ti por nós por mim

De maneira que eu por agora só entre os clientes e o relógio por cima da porta, a aviá-los distraído, a distrair-me, a contar as bicas que faltam para a hora da visita, é só mais esta.
Mas sempre alguém a entrar pela porta como se eu não tivesse mais nada para fazer, como se eu aqui só para os servir, muitos cafés bebe esta gente.
Eu o dia todo para trás e para a frente, não apagado numa cama de hospital

- cama quatro, ao fundo do corredor

mas aqui, de bandeja na mão a fazer gincanas entre as mesas e a amassar a farda que tu, que agora eu, uma vergonha, duas horas para passar um colete a ferro e mesmo assim sempre com vincos, não quando tu

- Parece novo!

te mostravas a mulher mais feliz do mundo só porque te sorria e te agradecia. Tu sem te importares de me servir, não egoísta como eu a fingir-me simpático para o da mesa dois, ali ao canto

- Faz favor?

15 de junho de 2007

obras



- Como diz?
- Digo que as grandes obras públicas, aquelas de que tanto se fala, estão para Portugal como a guerra para os Estados Unidos: alimentam os empresários, disfarçam o desemprego, distraem os jornais e entretêm as massas.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- Quem se não entusiasma com elas é um refractário.
- Como diz?

14 de junho de 2007

xxii

- Um café e um bolo de arroz.

Não pela fome, apenas para tirar o sabor da massa cinzenta com que o dentista me encheu a boca no início da tarde, esse dentista que me veio falar de espaços canibalizados e que ao fazê-lo me deixou assim, a pensar na cárie em que se transformou a minha vida, um buraco que não podemos chumbar

- Vamos desvitalizar
- Como diz?
- desvitalizar o maroto?

E eu tentado a aceitar, porque eu todo uma dor constante, eu todo um sabor a podre que nenhuma sobremesa, nenhuma pasta dentífrica me consegue retirar.
Entretanto o telemóvel com um número estrangeiro que não identifico à primeira e a vontade de o atirar fora, deitá-lo ao lixo como ao dente estragado ou então pô-lo à venda no quiosque lá de baixo, numa caixa de cortiça com um galo de barcelos a dizer recordação de portugal.

- Sim?

d)

- É para ti.

Com aquele sotaque arrevesado que confesso ao princípio me fazia confusão, umas bocas lá na associação entre os ases de trunfo

- Quem é a partir?

Mais para me fazer homem do que na verdade, porque passados uns tempos até

- O rapaz é atinado, deixem-no lá.

Longe de imaginar que depois um dia atrás do balcão com o sotaque arrevesado

- É para ti.

E eu antes de atender ainda

- Três canecas para a quatro

apontando no bloco ao pé da caixa registadora e só depois

- Estou?

7 de junho de 2007

outro

John Kirby, Another Day 1999
Oil on canvas, 100 x 75 cm / 39½ x 29½ in, AFG 30355

6 de junho de 2007

to overcome

"Over there all the woman wear silk
and satin to their knees
And children dear, the sweets, I hear,
are growing on the trees
Gold comes rushing out the rivers
straight into your hands
When you make your home
in the American Land"

American Land, Bruce Springsteen
© 2006 Bruce Springsteen (ASCAP)



A gente ouve e constata como é injusto pensar no Bush quando se fala da América.
We shall enjoy the music (quanto mais não seja).

2 de junho de 2007

cultura

- Como diz?
- Digo que ter amigos cultos é muito mais útil do que utilizar dicionários antiquados:

"Não sei se não sabes mesmo ou se estás só na brincadeira, mas de toda a forma passo a explicar aquilo que, imagino eu, querem os senhores dizer com o sistema completamente redundante. Presumo que se estarão a referir à segurança, ou seja, será um sistema em que há multiplos servidores a fazer a mesma coisa, pelo que, se um deles (ou vários deles) forem abaixo, o sistema continua a funcionar e não se perde informação. O sistema de segurança por redundância (e assim é que se chama à coisa) mais conhecido de todos é, nada mais nada menos, que a própria World Wide Web, que é mantida a funcionar por alguns (não muitos) servidores espalhados pelo mundo (ocidentalizado), alguns deles sem grandes preocupações de segurança física."

- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- Quem os não tem nunca há-de perceber nada das novas tecnologias.
- Como diz?

1 de junho de 2007

redundante

Vamelo, série "redundante" #1, 1996,
tintas personalizadas, realizadas a partir da dispersão de pigmentos metálicos (óxidos) naturais em emulsão de resina sintética (PVA) e areia, sobre aglomerado fibroso de média densidade (MDF), 200 x 200 cm


"A xxxxxxxx vai proceder à migração da actual plataforma de email, para um novo sistema completamente
redundante, de alta disponibilidade e performance, que permitirá um acesso ao email, mais rápido, mais funcional e mais seguro."

Pergunto-me a qual dos seguintes significados de "redundante" se estará a referir a empresa que me serve o e-mail diariamente:

1. superabundante; excessivo; demasiado;
2. supérfluo;
3. palavroso; prolixo;
4. que repete informação que já foi dada; pleonástico;

Seja como for, deve ser caso para pedir um desconto.

31 de maio de 2007

perdulário

Camilla Connolly, Another Prodigal Son, Collagraph, 69 x 87cm


Dizem que gastou toda a sua fortuna a desperdiçar talões de compra.

30 de maio de 2007

altura

da guerra como se de um pic-nic de verão, a ganhar bolor debaixo do sofá da sala, a partilhar albuns desbotados com o casamento da prima

- já viste estes penteados?

e as mamas da preta, o sorriso do capitão, o altar da igreja, os sapatos do padrinho, os tijolos dos turras, as bocas de sino, a coluna na picada, o carro da noiva, a mina desmontada e os acepipes na mesa.
A guerra a preto e branco, a esboroar-se nos cantos e qualquer dia quase nada, ninguém se lembra, afinal não houve não foi nada já passou

- usava-se assim, na altura.

29 de maio de 2007

xxi

Viver assim, no prazer das despedidas e dos reencontros, partidas e chegadas com balcões pré-destinados pelas autoridades competentes e amplas salas de espera com colunas para nos encostarmos e abraçar quem fica, como o casal ali ao canto, tão novos e enamorados, a imaginar as saudades que vão sentir já daqui a bocado e entretanto a dar as mãos, a dar os braços, a dar os lábios e a dizer adeus com os olhos brilhantes.
Eu a lembrar-me do tempo em que nos abraçávamos assim e nos sentíamos a falta quando um de nós não estava, a lembrar-me como era quando achávamos que nos amávamos, quando fazíamos promessas de lugares-comuns com a consciência de que tínhamos consciência do ridículo e brincávamos com isso. Sem saber o que entretanto nos aconteceu, sem nenhum facto ou discussão que o justificasse, nem sequer a certeza de que tenha contecido alguma coisa ou se apenas o desgaste a rotina a distância a cómoda distância que interrompemos aos domingos e que às vezes nos custa

- Posso ajudar?

Eu a admirar a generosidade da empregada de balcão que me fala e sorri com um sotaque brasileiro mas a dizer que não, muito obrigado, dela só quero mesmo

- Um café e um bolo de arroz.

28 de maio de 2007

xx

- E boa viagem.
Eu quase a responder igualmente mas depois só obrigado porque afinal eu é que vou, apanho um avião e vou.
Olho de novo o menú e o meu prato começa a ser servido, o almoço está na mesa, podem vir, fazer o check-in, essa palavra estranha talvez ainda à espera que alguém a aportuguese, xequine ou chequine ou deixá-la ficar como está para que nos possamos entender nesta coisa a que chamam – hipócritas – aldeia global, carreiras regulares de Faro a Banguecoque, de avião do México até à Tailândia, ir para Paris sem ser com o contrabando, sem romances escondidos no palheiro, sem atravessar o minho ou o guadiana a nado a meio da noite, sem atravessar a Espanha à boleia com as ovelhas, ir para Paris neste intervalo de espaço, sair momentaneamente do mundo lá fora e abrigarmo-nos aqui nos metais, nos mármores e nos neons e apanhar a escada rolante

LEVEL TWO

o avião
LEVEL THREE

e novos metais , novos mármores, os mesmos avisos em língua estrangeira mas como se estivéssemos em casa, uma vida de reserva, recarregar baterias

FULL ENERGY

e ainda longe do

GAME OVER.

Podíamos viver sempre assim, nestes momentos de plástico e pladur, sempre como se em viagem.

20 de maio de 2007

epitáfio

UM GAJO QUE
(praticamente)
NUNCA FEZ MAL A NINGUÉM

17 de abril de 2007

malefícios

"NIÚKHIN - Devo dizer-lhes que fico bêbedo só com um copo. Mas que isso me faz bem à alma... e ao mesmo tempo me põe tão triste que nem consigo dizer. Por qualquer razão, lembro-me dos anos da juventude e não sei porquê apetece-me... fugir. Ah, se os senhores soubessem como me apetece... [com entusiasmo] fugir! Abandonar tudo e fugir sem olhar para trás... Para onde? Tanto faz para onde... só fugir desta vida reles, torpe, baixa, que me transformou num velho e pobre tolo, num velho e lastimável idiota [...], e parar algures muito longe, muito longe no campo e ficar como uma árvore, um poste, um espantalho, sob o vasto céu, a olhar durante toda a noite como sobre nós se ergue a lua, calma e luminosa. E esquecer, esquecer... Oh, como eu queria não me lembrar de nada!..."

Anton Tchékhov, "Os Malefícios do Tabaco" (a partir da tradução de A.P.)

4 de abril de 2007

medo

depois passámos meses numa espécie de aflição, num susto que adormecia mas não passava, a controlar-te a fome a tosse a febre o peso o sono o riso as birras, a controlar-nos o medo, um medo que calávamos mas que sabíamos nos olhos uns dos outros.
Depois passou.

3 de abril de 2007

segurança

Quando eu for grande quero ser
segurança
no serviço de urgências.
Talvez assim aprenda
a ser indiferente
às ambulâncias que chegam
de madrugada
e à senhora que chora
à chuva
pelo familiar em coma.

28 de março de 2007

erro

Que a solidariedade - pensei - não mais seja medida pela euforia nas festas ou pela exibição das dores partilhadas, mas antes pela compreensão dos erros e outras falhas menores.

14 de março de 2007

lama

"SVETLOVIDOV - (...) Compreendi, então, que não existe arte sagrada, que não há mais que sonho e ilusão, que não passo dum escravo, um divertimento do ócio dos outros, um palhaço, um saltimbanco! Compreendi então o público! desde esse dia, nunca mais voltei a acreditar nos aplausos, nas flores, nos entusiasmos... Sim, Nikitouchka! Aplaudem-me, compram a minha fotografia por um rublo, mas eu continuo a ser um desconhecido para eles. Sou lama, quase uma meretriz!... Por simples vaidade, procuram conhecer-me, mas nunca se baixarão a dar-me por mulher a sua irmã ou a sua filha! Não acredito neles! Não creio neles!"

Anton Tchékhov, "O Canto do Cisne" [versão portuguesa de Rui Sequeira], in Seis Peças em um acto, 1966.

13 de março de 2007

carvalho

Leslie Fry, Quercus Emancipation, 2005.

A terra chama-me.
E eu vou.

8 de março de 2007

(amadurecimento)

Era no tempo em que as feridas lhe cicatrizavam sem dificuldade e a deformação dos ossos não era visível a partir do exterior. Era no tempo em que o colesterol estava controlado e a miopia estabilizara há muito. Era no tempo em que os pequenos problemas se transformavam em curiosidades e os grandes lhe começavam a tirar o sono. Era no tempo em que na memória saudades e rancores lutavam por espaço igual.
Era no tempo em que as desilusões eram cada vez menos frequentes e mais definitivas.

7 de março de 2007

execução

Andrzej Wróblewski
Rozstrzelanie V [Execução V], 1949, olej na płótnie, Muzeum Narodowe, Poznań

6 de março de 2007

máquina

Marcel Duchamp, Jeune homme triste dans un train,1911–12. Oil on cardboard, 100x73 cm


Maquinista de profissão, António sonhava com o dia em que pudesse ser apenas maquinado.

5 de março de 2007

longe

Giorgio Barbarelli, La Tempesta, oil on canvas, c. 1510


- Se me tivessem dito - disse - que se abrisse o chapéu de chuva na passagem aérea a tempestade me levaria para tão longe daqui
- Se mo tivessem dito - acrescentei - não teria esperado tanto para o fazer.

26 de fevereiro de 2007

rodapé

Ia vivendo como se percorresse um corredor
não um labirinto
um corredor comprido, iluminado quanto baste mas sem quaisquer indicações para além do rodapé, contínuo, que se alongava à sua frente e à falta de melhor
(não um labirinto, um corredor)
lhe indicava o caminho.
Pudera talvez ter tentado abrir alguma das portas que se lhe ofereciam de um e do outro lado, mas
(não um labirinto, um corredor com um rodapé)
o rodapé parecia-lhe suficientemente seguro de si para que se pusesse com outras derivações.
Seguia em frente, portanto
(não um labirinto, um corredor com um rodapé a guiar-lhe os passos)
e fugindo em crescente aceleração de outras portas que sentia fecharem-se atrás de si e que, de qualquer modo, o impediriam de recuar.

24 de fevereiro de 2007

martini

Benoît A. Côté, Orchestre local

No interior do velho salão de baile, a orquestra tocava ainda, alheada do fim da festa e desouvindo o ruído das máquinas que começavam agora a demolir o tempo.

23 de fevereiro de 2007

surrealismo

Gregor Ziolkowki, Utopie, 2005, 80 x 60 cm.


O Zeca Afonso é quando um homem efectivamente quiser.

22 de fevereiro de 2007

metafísico

Salvador Dali, El Cid, 1971.



Diálogo entre Babieca e Rocinante
SONETO

B. Como estais, Rocinante, tão delgado?
R. Porque nunca se come, e se trabalha.
B. E que é pois feito de cevada e palha?
R. Não me deixa meu amo nem bocado.
B. Andai, senhor, que estais mui malcriado,
pois vossa língua de asno o amo malha.
R. Do berço o é o asno até tomar mortalha.
Quereis vê-lo? Olhai, ei-lo enamorado.
B. É necedade amar? R. Não é prudência.
B. Metafísico estais. R. É que não como.
B. O escudeiro acusai. R. Não é bastante.
Como me hei-de eu queixar nesta dolência,
se o amo e o escudeiro ou o mordomo
são uns rocins iguais a Rocinante?


Miguel de Cervantes, "Ao livro de Dom Quixote de la Mancha", Dom Quixote de La Mancha. Lisboa: Dom Quixote, 2005 [tradução e notas de Miguel Serras Pereira]

saudade

Suzanne Clements, the empty chair, acrylic on canvas, 6"x 12"



É preciso tão pouco para dizer afinal tudo.

21 de fevereiro de 2007

efeméride

Marc Chagall, Birthday, 1915


Agora que falas nisso, lembro-me que cheguei a ter, em tempos, um blog.
Sei que durou pelo menos um ano, porque no dia do seu primeiro aniversário escrevi um post alusivo à efeméride.

20 de fevereiro de 2007

tu


assim como uma espécie de sol que seca a humidade mais entranhada, como uma espécie de nuvem que nos alivia da torreira, como uma espécie de chuva que afaga os campos ressequidos, como uma espécie de vento que nos refresca às três da tarde
assim como um espécie de jazz em dia de burocracia, como uma espécie de música clássica no semáforo à hora de ponta, como uma espécie de harpa no carnaval do Rio, como uma espécie de gaita-de-foles a furar a tristeza
assim como uma espécie de bálsamo que nos excita, como uma espécie de café que nos acalma, como uma espécie de borracha na torneira que pinga, como uma espécie de comporta que se abre na barragem transbordante
assim como tudo isto, assim como tanto mais
assim és tu

12 de fevereiro de 2007

um dia que eu morra

Há frases cujo verdadeiro significado só podemos perceber quando se altera o tempo verbal.

5 de fevereiro de 2007

desonestidade

Kurt Halsey Frederiksen, Honesty honestly


Um deputado da nação acusou o meu amigo de desonestidade intelectual.
Fê-lo num daqueles debates de província nos quais gosta de participar ao fim-de-semana, exibindo a retórica que se aprende e exercita na capital civilizada. Fê-lo com o ar grave e sério de quem condescende em sentar-se na mesma mesa com seres visivelmente inferiores mas de quem não tolera abusos, libertinagens ou quaisquer faltas de respeito à sua imperiosa posição.
Pouco habituado ao convívio tão próximo com as artes da deputice, fiquei, confesso, embaraçado. Então o meu amigo, que eu até admirava, era, afinal, um "desonesto-intelectual"? Ou seria um "intelecto-desonesto"?
Se fosse só desonesto, a coisa não me afligiria muito. O que me intrigou foi que o acusassem de o ser do ponto de vista intelectual. Pus-me a pensar nos outros tipos de desonestidade. Se, por exemplo, eu me levantasse da cadeira e, fingindo que ia cumprimentar o senhor deputado, lhe desse um murro nos queixos, seria, concerteza, um caso exemplar de "desonestidade física". Se, por outro lado, o senhor deputado pudesse imaginar o que penso dele enquanto o fito e finjo escutar com este notável ar sereno, estou certo que me acusaria de "desonestidade psicológica". Se, cansado da sua oratória, abandonasse a sala para ir à casa de banho, estaria a praticar uma vergonhosa "desonestidade fisológica". E estas voltas no estômago ao ouvi-lo? Serão os primeiros sintomas de uma "desonestidade gástrica"?
Pois que sejam. Naquela acusação, o que contava mesmo era o termo intelectual. Na cabeça do senhor deputado, era aí que se estabelecia a diferença entre ele e o meu amigo.
O meu amigo, desmentindo a acusação de desonestidade, resistiu a responder-lhe na mesma moeda. Na verdade, nunca ninguém poderá afirmar, honestamente, que aquele deputado é um intelectual.

mães

Frida Kahlo, 1932, Henry Ford Hospital


No calor do debate, a senhora do não veio dizer-nos que esta não é uma discussão a preto e branco. Estamos de acordo: esta discussão, como a pergunta a que se conseguiu chegar, é até bastante cinzenta.
Para ser a preto e branco, minha senhora, teríamos que estar a perguntar aos portugueses se concordam com a gravidez obrigatória, se concordam que as mulheres devem ser forçadas a resignar-se ao risco natural de engravidar em cada relação sexual, se alguém tem o direito de impor às mulheres uma maternidade que por qualquer razão não desejam. Se fosse a preto e branco, minha senhora, estaríamos a discutir o papel que ainda hoje a sociedade reserva às mulheres, em particular aquelas que, ao contrário de si, continuam a não ter oportunidade de usufruir do esforço daquelas e daqueles que lutaram (e lutam) pela igualdade de direitos. Se fosse a preto e branco, minha senhora, estaríamos a dizer se achamos que a maternidade deve ser voluntária ou um trabalho forçado pelo azar divino. Se fosse a preto e branco, estávamos a questionar o direito que a senhora tem de se pronunciar sobre a vida, o corpo e a vontade de outras mulheres.
Dizer sim à desconfortável pergunta que nos colocam, minha senhora, é a mais cinzenta das opções. Aceita-se até que o aborto permaneça um crime, como se um pedido da mulher em causa pudesse ser apenas mais uma excepção e não a regra, primeira e fundamental, para a continuação ou descontinuação de uma gravidez. Eu resigno-me, contudo, a esse cinzentismo, pela mais pragmática das razões: apesar de continuarem juridicamente encurraladas, que ao menos possam as mulheres que abortam fazê-lo em condições mínimas de segurança e dignidade. Talvez não seja um grande avanço civilizacional, mas é um passo. Acinzentado, mas um passo.
Já dizer não, minha senhora, é a mais negra das respostas. Porque mantém tudo na mesma, incluindo o rótulo (e as penas) de criminosas para as mulheres que abortam, incluindo os riscos que elas correm nas malhas da clandestinidade, incluindo esta coisa de não conseguirmos pensar numa mulher sem nela ver a mãe - a mãe efectiva, a mãe frustrada, a mãe egoísta, a mãe assassina, mas a mãe, sempre a mãe.
Como se o mundo, minha senhora, fosse composto por homens e... mães.

29 de janeiro de 2007

ocaso

[inoportunas lembranças]


Frida Kahlo, 1945, sin esperanza

24 de janeiro de 2007

costume

Ron Schmitt, Evening Routine, Pastel on paper, 18" x 24"



Sabia, mesmo sendo a primeira vez que nele entrava, que aquele café restaurante snack-bar viria a ser o seu poiso quotidiano por muitos anos.
Não estranhou, por isso, o panado com arroz de feijão que, com um sorriso cúmplice, o empregado lhe colocou à frente pouco depois de ter pedido
- o costume