31 de julho de 2006

vénia

É solidário, Luis.
Compreendo a atracção do pleonasmo, mas, por enquanto, ainda há qualquer coisa que me agarra ao oximoro, tão bem identificado pelo eduardo há uns anos atrás.

Quando sucumbir à redundância aviso-te, se tiver coragem.

vi

- Era uma bica, se faz favor.
- Sai uma bica!

O empregado sem mais coisas, a descartar-se para o colega do balcão, como que a dizer-me, sem me olhar, está a ver, eu já pedi, se demorar muito (e é capaz de demorar um bocado) a culpa não é minha, é do meu colega, eu bem estou farto de avisar o chefe para estar de olho nele, mas quê, depois ainda dizem que eu é que.
Mas eu indiferente às justificações do homem, eu com tempo para ser feito, posso esperar mais umas horas e tanto faz ser por um café como por outra coisa qualquer, eu sou bom a esperar. Indiferente também à máquina de cigarros

- Gostei muito de o servir.

A cínica, a puta, a dar-me cabo da vida, a matar-me aos pouco e a sorrir. A falar-me com voz de sorriso, aposto que diz isto a todos e agora aqui com estas coisas, num espaço público, enquanto me engole as moedas e as devolve transformadas num pacotinho avermelhado com timbre funerário. Afinal, confesso, não te consigo ficar indiferente. Não vejo a tua garganta a secar, não vejo a tua pele a ficar às escamas, o indicador e o dedo médio sem rastos amarelados, nada, imaculada e atraente com o cow-boy em tronco nú iluminado na pradaria americana.

- Wild dreams

A desejar-me, a proporcionar-me, a jurar que me pode proporcionar, a desejar que eu deseje, a proporcionar-me o desejo de

- Wild dreams

ou lá o que é, só que eu a consolar-me. Podia desligar-te, consigo ver a ficha daqui, três passos e o cow-boy apagava-se e tu nunca mais

- Gostei muito de o servir.

Só quando eu quisesse, não quando tu.

- O seu cafezinho.

29 de julho de 2006

v

- Cumprimentos à esposa.

Dizia-me a flor, cínica, e eu a fixar-lhe o aparelho dos dentes, a imaginá-la perversa debaixo daquela bata branca onde quando o calor se percebia que mais nada, só pele, e a lembrar-me das revistas de adolescente, catálogos de filmes estrangeiros, percebi-o mais tarde, com muitas enfermeiras, professoras e colegiais a quem me entregava nas férias de Verão.

- Cumprimentos à esposa.

Dizia-me a flor, cínica, e eu a ver-lhe o dedo nú mas com marca de aliança, a imaginá-la no consultório a proporcionar mais um risquinho ao Salvador, não os mesmos, outros, no verso da página. A imaginar o mari

- Então boa tarde, obrigado.

E saio porta fora a jurar, como das outras vezes – não volto cá. O patamar, a escada, o patamar, a escada, o patamar, mais uns degraus e a rua – a rua! –, e logo o café.

- Era uma bica, se faz favor.

28 de julho de 2006

convalescença

As

- BOAS NOTÍCIAS

continuam a chegar, uma, vinte e quatro, agora quase quarenta e oito horas depois, e nós a continuar a torcer, a acompanhar-vos como podemos, a convalescer também, lentamente, do sufoco que ainda aperta, mas a acreditar, a fazer força para que, a admirar-vos a resistência, a vontade, o querer e o crer, a admirar o trabalho dos médicos, dos enfermeiros, das auxiliares, enfim, da comunidade hospitalar, como quando o apresentador, nas férias de dezembro

- Bem-vindos a mais um natal dos hospitais.

e eu sem perceber a alegria dos acamados, dos que em cadeiras de rodas, dos que de braço ao peito, dos que com sondas, soros e algálias se emocionavam com as televisões, algumas a cores, que a philips portuguesa espalhava pelos centros de saúde e pelos lares de terceira idade, de lagos até bragança.
As

- BOAS NOTÍCIAS

que recebo à distância, sem querer perturbar-vos, a mandar-vos beijinhos e a guardar-me para quando

- mais dois ou três dias

e tudo mais fácl, o pior já passou, agora sempre a direito, um sonho mau que acabou e a vida pela frente, o milagre da vida, uma improbabilidade, um acaso feliz a que nos agarramos porque nós mais nada.

27 de julho de 2006

reconhecimento

É também pela radical serenidade e pela excelência do profissionalismo com que cada um desempenha o seu ofício que podemos sonhar com um mundo melhor e com uma sociedade mais justa.
Será porventura exagerado agradecer ao cirurgião que nos salva a vida, ao professor que nos ensinou o prazer da leitura, ao advogado que nos fez justiça, ao trolha que nos ajeitou a casa, ao padeiro que nos moldou o papo-seco, ao funcionário que nos despachou o processo, ao homem que nos afastou da porta o saco do lixo, ao artista que nos emocionou.
Mas é um triste sinal dos tempos que sintamos esta necessidade de nos mostramos reconhecidos a quem faz bem o seu trabalho. Não porque quem o faz não mereça, apenas porque se trata de uma valorização mercantil: mais procura do que oferta.

sentido

Esquecemo-nos às vezes de ti, mãe-coragem, que por duas vezes ofereceste o teu corpo à vida da tua filha. A história é ingrata para quem faz o que tem que ser feito e naturaliza a generosidade, a entrega, a dedicação. Chamam-te

- mãe

quando deviam chamar-te

- mãe heroína

Chamam-te

- mãe

simplesmente, como quem diz que fizeste o que devias, mas tu sem resignação, tu sem um queixume, tu sem que te agradeçam, tu num papel secundário por opção própria, tu só a dar.
E a sofrer de ansiedade, de angústia, de dores agora e ainda de expectativa, esperando apenas o sorriso, a tua menina

- mãe

e este mãe um poema clássico, um hino triunfal, uma epopeia dentro de portas, o que te basta, tu dentro dela, duas vezes mãe, a descobrir num órgão insuspeito o sentido da vida.

26 de julho de 2006

isto

Quando formos grandes, querida, vamos rir-nos disto tudo, vais ver. Tu a ler os posts que te escrevia, inquieto, preso às mensagens do telemóvel, a ansiar por que tudo acabe. Tu com uma vaga lembrança

- Onde é que era, o hospital?

E eu a apontar-te o bloco de apartamentos, aqui, não aquele edifício moderno, onde também chegaste a ir

- Só mais uma consulta, rotina, sabes como é

era aqui, e tu amuavas às vezes, farta de corredores, das seringas, das papas de sopa, das papas de fruta, outras vezes rias-te, a fingir que achavas graça aos puzzles, aos bonecos para pintar do computador, tu a fingir, a fazeres-te forte

- Uma senhora, querida, portaste-te como uma senhora

E tu orgulhosa, com razões para isso, que injustiça, pensávamos, tão nova e a ter de lutar pela vida.

- Uma senhora.

Vamos rir-nos disto tudo, vais ver. Eu a envergonhar-me do dia em que suspenso do telemóvel

- BOAS NOTÍCIAS

a saberem-me ainda a pouco, a querer mais

- BOAS NOTÍCIAS

e à espera que o tempo passasse, a fingir, tal como tu, que acho graça ao computador e aos ursos imaginários que ainda havemos de pintar, tantos, tu vais ver, eu a envergonhar-me porque eu mais nada a não ser isto.

25 de julho de 2006

querer

Eis-me, pois, deixando que se entregue nas mãos de estranhos a vida de quem amo.
É obviamente nestas alturas que lamento não ter conseguido aprender a crer, apesar da catequese e das cerimónias iniciáticas. Se ao menos os médicos aceitassem promessas...
Assim aqui fico, impotente e à espera que te levantes depressa dessa cama onde te vão cortar, colar, coser, e que depressa possamos correr atrás daquela bola, fazer aquele puzzle, ler aquele livro, pintar aquele desenho.
Quero ver-te brincar, quero ver-te crescer, quero ver-te viver.
Quero crer.

iv

- Então boa tarde, obrigado.

E o cumprimento, a despedida, já não era só para a menina com nome de novela sul-americana, não, era também para os outros desgaraçados sentados na napa, encolhidos, entretidos a decorar cada centímetro da gravura esbatida, já descorada e gasta pela pela intensidade dos olhares tristes de quem espera. Podia chamar-se Godot, o sotor, mas parece que é Salvador, com um sufixo familiar, género brito e cunha ou telles de morais ou talvez eu esteja apenas sugestionado pelas revistas que acumulam pó e transpirações debaixo do abat-jour, no canto da sala. Salvador é, tenho a certeza, lembro-me de registar a rima quase poética

- o doutor Salvador esta semana não está, o senhor doutor Salvador

quando uma vez ele de férias e eu aflito, a pensar primeiro que os deuses não deviam tê-las mas depois a condescender, a concordar que toda a gente tem o seu sétimo dia.
A despedida era para todos eles, sim, todos eles, que eu desprezava também, querendo considerar-me diferente, todos eles, que eu desprezava por imaginá-los incapazes de desprezar.

- Adeus, senhor Rodrigo. Cumprimentos à esposa.

24 de julho de 2006

castanho

"Brown Fields", Jeff Rutledge
www.rutledge-art.com


Talvez seja das alterações climáticas, da falta de chuva, talvez seja do desordenamento do território, das casas, das fábricas, dos eucaliptos, talvez seja só do Verão (nunca me lembro de um assim), talvez os incêndios, talvez tenha sido apenas da sujidade na janela do comboio, mas não consigo evitar a imagem - a imagem de um país castanho.

21 de julho de 2006

oriente


No tempo em que eu comecei a ver telejornais, a guerra era Irão-Iraque (assim mesmo, como num jogo de futebol), lá, no médio-oriente.
Ontem, Rui Vilar explicava no Jornal das 9, a um Mário Crespo atordoado com o benchmarking e os activos líquidos que de repente povoaram o discurso da Fundação, os impactos dos perigos, já mais cá, no próximo-oriente.
Uma pena, que o mundo se estreite à custa de rockets, mísseis e morteiros.

20 de julho de 2006

iii

- O futebol é isto mesmo.

Uma ligeira sensação de plágio, um livro qualquer no canto da estante

- Quem é que nos deu este livro, Leonor?

E tu sem me ouvires, do outro lado da casa, eu a esquecer a pergunta e a agarrar noutro, que merda, o sotor e eu num impasse, ele pensativo, eu sarcástico, é o que me vale

- Pois é, sotor, se calhar foi isso.

Pergunto se terminámos e ele que sim, até daqui a quinze dias, a fingir que não liga às coisas materiais, mas eu a saber dos risquinhos na agenda, cada um oitenta euros, se forem dez por dia é uma fortuna.

- Faço contas com a menina, não é?
- Pois, lá fora, lá fora, a Flor é que trata dessas coisas.

Mas eu sem inveja, nem da casa do Algarve nem do duplex com terraço, muito menos do automóvel que não caberia no pátio do meu prédio. Só um desprezo esverdeado que incha nos dias de calor, já nas mãos do meu pai era assim, que orgulho senti-me ficar homem, à sua imagem.

- Então até à próxima.

É o sorriso que me aflige, o fingimento desnecessário. Pedia-me com jeitinho e eu mandava-lhe os cheques pelo correio, nem vinha cá, não estas escadas, não este elevador, não aquele café plastificado na porta ao lado, não esta sala de espera, estas cadeiras de napa, aquela gravura na parede, esta recepcionista de aparelho nos dentes

- O seu recibinho muito obrigado e as melhoras

Dispensava tudo isto, uma questão de higiene, se resolvesse aquele problema no computador até agendava transferências periódicas, era o que era e não punha cá mais os pés.

- Então boa tarde, obrigado.

19 de julho de 2006

ii

- Áh, então foi isso.

Disse-mo duas vezes, fingindo-se pensativo, e eu afinal não saltei da cadeira, não lhe desfiz a bochecha, eu não disse nada, eu afinal nada. Apenas o desprezo a correr-me nas veias, uma batida ritmada de escárnio a entrar e a sair do coração. Imóvel e sentado, recostado na cadeira, ainda boquiaberto, a saliva a sumir-se-me sabe-se lá para onde e eu a lembrar-me dos comentadores desportivos, daqueles que na televisão elogiam os treinadores pela substituição acertada depois do golo

- Era isto que dizíamos.

ou os enxovalham sem piedade porque afinal o poste

- Uma falha imperdoável em alta competição.

a não ser que sejam dos nossos e a gente esteja de bem com eles e o azar, os deuses distraídos, a senhora de fátima demasiado ocupada, talvez tenha ido pôr uma roupinha em sabão que isto hoje já não dá para empregadas internas, uma tarde por semana e é só porque a coluna se fartou da tábua de passar a ferro, porque afinal

- O futebol é isto mesmo.

18 de julho de 2006

i

Se não terá sido essa tendência para canibalizarem o espaço um do outro, pergunta-me o sotor e só me apetece dizer-lhe que não, que antes pelo contrário, que cada um estava demasiado ocupado a canibalizar o seu próprio espaço.
Mas fico-me, calado e boquiaberto, surpreso pela prontidão com que a resposta me ocorreu. E penso que se o filho da puta me diz áh, então foi isso lhe salto para as trombas, esqueço tudo, a cadeira, o sofá, a caderneta que assim como assim já não serve para nada, esqueço tudo e vou-lhe às trombas, um salto e já está, um murro no olho, um murro nos dentes

- tão brancos e saudáveis, está a ver?

depois as mãos no pescoço, apertando-as devagarinho, olhos nos olhos, e eu a vingar o dinheiro das consultas, uma a uma, desde a primeira

- Ora muito bom dia!

em que me recebeu com um sorriso alegre, como se fôssemos ou estivéssemos para ser ou eu quisesse que fôssemos amigos.

- Então o que o traz por cá?

eu já sentado na cadeira e o sotor em pé, pronto para a tortura. Esqueço tudo, eu juro, esqueço tudo e vou-lhe às trombas.

- Áh, então foi isso.

16 de julho de 2006

democracia

“A reunião tinha assunto sério para ser discutido. Era em casa do Carvalhosa com alguns notáveis de S. Ponces: Almiro, com certidão de nascimento datada ainda do século dezanove, veterano da Primeira Grande Guerra, artilheiro na Bélgica, e com uma t-shirt onde podia ler-se “leite é juventude”; Gonçalves, o barbeiro; Rebimbas, o do açougue; e Peixoto, lavrador como os restantes, os do grupo da sueca, menos Timóteo que não podia largar a loja mas que tinha dito que fossem quais fossem as decisões estaria de acordo. Voto sempre positivo, dissera ele. O clero não tinha representação. Na ordem do dia estava a construção do pedestal do monumento ao emigrante. Tratava-se da base de sustentação de uma figura de bronze, em tamanho um pouco mais que o natural, com uma mala na mão e uma espécie de boné na cabeça, representando o Emigrante Desconhecido. A estátua estava pronta, mas faltava escolher o lugar onde ganharia interesse público. Tinha sido concebida e realizada por um artista da região, mas faltava também o patamar florido onde assentaria. A iniciativa dos de S. Ponces destinava-se, claro, a homenagear os muitos que tinham partido e ainda operavam no estrangeiro, e também a provar aos da vila, capital do concelho, que ali se fazia obra que os olhos podiam ver.
- Continuo na minha, o padeiro fica bem é no adro da igreja – disse o Jasmim.
- Mas qual padeiro! – insurgiu-se o presidente –, de tanto lhe chamarem padeiro, quando a estátua for inaugurada, já vai baptizada.
- O que é que querem?, com aquele chapéu ou lá o que é, aquilo faz-me lembrar um padeiro!
- É… a mim também me faz lembrar um padeiro – reforçou o Peixoto.
- Alguém está contra a que se faça o sustento ao pé do pelourinho?, levante-se quem vota contra, Julieta, bota aí umas taliscas de presunto, ninguém?!, mas tu não querias a homenagem no adro da igreja?!
- Queria – replicou o Jasmim –, mas no fundo tanto me faz, no adro ou no pelourinho, vai-me parecer sempre um padeiro.
- E o sustento é de quê afinal? – perguntou o Malaquias –, tijolos?
- Cimento armado – informou o presidente –, a coisa tem de ficar bem plantada, é isso que lhe dá altura, e enverniza-se aquilo, já falei com o artista.
- Mas… a estátua ao lado do pelourinho?! – estranhou Julieta indo ao presunto –, não é exagero?
- Mas qual exagero!, alguém te perguntou alguma coisa?, não cortes o presunto muito grosso, fininho sabe melhor.
- Com o mesmo dinheiro com que fizeram esta, faziam uma mais pequena ao soldado desconhecido – lançou o Almiro –, duas pelo preço duma e respeitava-se o sacrifício dos que já cá não andam, ou vocês pensam que andam cá à custa de quem?
- Podemos fazer um minuto de silêncio, Ti Almiro – propôs o Malaquias –, mas mais uma estátua agora não dá jeito, e onde a iríamos pôr?
- Pois é, Ti Almiro, somos uma aldeia pequena, é preciso ver – avançou o presidente Carvalhosa –, e para mais já temos a estátua pronta, voltar à conversa do que podia ter sido só atrasa a reunião, Julieta, bota aí aquele salpicão também… o pequeno, sim, é o mais gostoso.
- Está bem, eu calo-me, não sei para que hei-de falar – disse o Almiro –, nunca me fizeram a vontade em coisa nenhuma, nem sei porque hei-de vir aqui.
- Porque a sua presença é importante, Ti Almiro – confortou o Peixoto –, gostamos sempre de saber o que o Ti Almiro acha das coisas.
- Isso é bom de dizer, diga eu o que disser, vocês fazem sempre as coisas à vossa maneira.
- Agora estamos em democracia – acrescentou o Rebimbas –, até é pecado se não falarmos.
- Fica então no pelourinho? – atacou o presidente.
- Estou-me a levantar, mas é para ir dar uma mija – disse o Peixoto, levantando-se.
- Fica aprovado – anunciou o Carvalhosa –, temos é de apresentar depois uma cópia da acta ao presidente da Junta para que as coisas avancem depressa e bem, sem isso, as coisas atrasam-se de certeza.
- Mas tu és o presidente da Junta – disse o velho artilheiro.
- Pois sou, mas há regras, aqui, quem é o presidente da Comissão de Festas é o Gonçalves Barbeiro.
- Está bem que seja, mas não tenho nada que estar a escrever cópias das actas! – avisou o Barbeiro, pousando “O Giestal” sobre a mesa.
- As cópias fazem-se com papel químico debaixo da folha principal, só escreves uma vez.
- A minha letra não é boa, toda a gente diz.
- E está decidida também a data da inauguração? – perguntou o Rebimbas.
- Tens a certeza de que não entrou mosca aqui no animal? – gracejou o Malaquias mordendo uma talisca de presunto.
- Não cortes mais, Julieta!
- Falei com o padre e ele disse que por ele podia ser – disse o Jasmim.
- Mas quem tinha de falar com o padre era o Barbeiro, ele é que é o presidente, não és tu – criticou o Carvalhosa –, e o que foi que ele disse?
- Disse que achava bem que a Comissão de Festas fizesse o inauguramento antes da procissão.
- Antes?!, mas nós tínhamos combinado que seria depois.
- Mas ele falou-me assim… antes.
- Antes!, então, eu vou puxar a corda lá do cetim que tapa a estátua, no pelourinho, e corro para a igreja a pegar no andor do Baptista?!, tínhamos combinado que seria depois, uma pessoa acaba a procissão, descansa, bebe um copo, e só depois é que mostramos a estátua ao povo, calmamente, assim é que deve ser, inauguração, mais um copito, almoço e festa; a propósito, Julieta, trataste do cetim?, verde e vermelho, mais vermelho do que verde, não te esqueças.
- E não é preciso tapar a estátua toda, basta a cabeça – sugeriu o Barbeiro.
- Mas o padre falou que seria melhor antes, o que é que querem?
- Pois por isso é que devia ter sido o Barbeiro a falar com o padre.
- Porquê?
- Sempre é o presidente, e os padres entendem-se melhor com os presidentes, só isso.
- Mas posso ser eu a puxar o cetim da estátua – propôs o Barbeiro.
- Isso compete ao presidente da Junta.
- E o presidente da Comissão de Festas não faz nada de vistoso? – irritou-se o Barbeiro.
- Lês o jornal.
- Bardamerda!
- E o cetim, em que ficamos? – perguntou a Julieta. – Arranjo só a contar com a cabeça ou o corpo todo?
- Cabeça – disse o Gonçalves Barbeiro.
- Isso não tem jeito! – protestou o Carvalhosa com uma tira de presunto nos lábios –, até parece que queremos atabafar o homem!
- Mas é uma estátua… - defendeu o Barbeiro. – E sempre poupamos no tecido.
- Onde foi que já se viu inaugurar uma estátua em que só a cabeça é que está tapada?!
- Quem diz a cabeça, diz um bocadinho mais… até aos ombros, acho que chega muito bem, é só uma estátua, e eu sou o presidente da Comissão de Festas, não sou?
- És, mas isso não quer dizer nada, tu fazes o que a gente decidir.
- Mas também sou tesoureiro, e as continhas dizem que só há cetim para a cabeça.
- Isso é um bocado estúpido – retornou o Carvalhosa –, porque sempre poderíamos usar o cetim noutras inaugurações.
- Não é inauguramento que se diz? – perguntou o Jasmim.
- Não, é inauguração.
- Meio metro de cetim chega muito bem.
- Um metro é melhor – falou a Julieta.
- Um metro, pronto! – concordou o presidente da Comissão de Festas.
- Um metro, pronto, calma aí!, não há dinheiro na Comissão para comprar dois metros de cetim?! – quis saber o Carvalhosa.
- Haver, há, mas podemos poupar, não?
- Isso é truque à Salazar, ó Barbeiro!
- Deixa ser, o homem não era tão mau como o pintam.
- Se é para discutir política, o melhor é partir mais um pedaço de presunto – disse o Rebimbas.
- Pronto, fica no pelourinho! – quase gritou o Peixoto voltando do quarto de banho –, e já trataram do inauguramento propriamente dito?
- Inauguração – corrigiu o Jasmim.
- Não se tinha pensado em cobrir o padeiro com cetim, ou fui eu que percebi mal? – continuou o Peixoto.
- Vá, vamos então votar: quem está a favor de se comprar cetim só para a cabeça da estátua, fica sentado – disse o Carvalhosa.
- Espera aí, que eu ainda estou em pé… explica lá – pediu o Peixoto, já sentado.
- Vai-se votar quem concorda com a compra de um metro ou dois metros de cetim para a inauguração da estátua.
- Para o caso de ser para a estátua toda, é melhor pensar-se em dois metros e meio, acho eu – disse a Julieta.
- Quem está de acordo com um metro de cetim, fica sentado.
- Espera aí! – pediu o Peixoto, fazendo o movimento para se levantar –, levanto-me se estiver de acordo com dois metros?, é isso?
- Continuo a dizer que dois metros e meio é melhor.
- Já sabemos, Julieta, valha-me Deus! – incomodou-se o Barbeiro.
- Diz lá outra vez para isto ficar certo – retomou o Peixoto.
- Quem está de acordo com um metro de cetim, fica sentado – repetiu, enfastiado, o Carvalhosa.
- Mas agora pergunto – interrompeu o Malaquias –, não se pode comprar doutro tecido mais barato e tapar a estátua toda na mesma?
- Lustroso igual ao cetim? – perguntou a Julieta.
- Não sei, qualquer coisa.
- É cetim!, falámos na outra reunião que era cetim e é cetim!, quem vota a favor?
- Faz lá a pergunta à séria.
- Quem está de acordo com um metro de cetim, fica sentado – disse o Carvalhosa, levantando-se. E levantaram-se também o Peixoto e o Rebimbas. Julieta estava em pé mas como não pertencia à Comissão de Festas o estar em pé não era voto. O Almiro levantou o braço.
- E eu?
- E você o quê? – enervou-se o Carvalhosa, já a pensar no resultado.
- Eu abstenho-me.
O empate no assunto do cetim lançou-os a todos ao presunto.
- Calma aí porque ainda tem de haver bicho no dia da festa – disse o Carvalhosa.”



Abel Neves, “Precioso”, Lisboa: Dom Quixote, 2006.