21 de março de 2006

homem

ao Eduardo (e ao Carlos Drummond de Andrade)


"ENTREFALA
Dito pela Viúva Begbick.

Um homem é um homem, vem Brecht afirmar
E com isto, meus senhores é fácil concordar.
Só que o senhor Brecht também vai querer provar
Que um homem serve para mais do que se pode imaginar.

Vão ver esta noite aqui um homem desmontado
Peça a peça como um carro sem sair prejudicado.
Vai-se abordar o homem com humana simpatia
E insistir muito com ele, se preciso noite e dia,

Para que ao fluir das coisas se procure adaptar
E atire o peixe que tem dentro de si ao fundo do mar.

Não se sabe o que será depois de transformado
Mas uma coisa é certa: ninguém se terá enganado.

Se não o vigiarmos bem, mesmo enquanto dorme,
Podemos dar com um carniceiro mal ele acorde.

Bertolt Brecht pretende que os senhores possam ver
O chão a fugir-vos dos pés como neve a derreter
E perceber no exemplo de Galy Gay, o estivador
Que a vida na terra é um perigo ameaçador"

Bertolt Brecht, "Um homem é um homem (A transformação do estivador Galy Gay, no acampamento militar de Kilkoa, no ano de mil novecentos e vinte e cinco)", versão de 1938, tradução de António Conde, Teatro 2, Lisboa: Livros Cotovia, 2004.

20 de março de 2006

autocarro

Frida Kahlo, 1929, L'Autobus

Andar de autocarro, descobri-o nos últimos meses, é um poderoso instrumento contra o stress. Pela via da desresponsabilização: chegar a horas, honrar os compromissos, manter a palavra, cumprir o prometido, tudo deixa de depender da nossa vontade ou das nossas acções.
Que descanso.

17 de março de 2006

instantâneos (1)

- Os gajos querem é putas.
- Ah pois é!
- Hmm, hmm.

- Querem as putas mas é só prás comer, não é pra ficar com elas.
- Ah pois.
- Hmm, hmm.

(Coimbra, R. António José de Almeida, 13 de Março de 2006)

10 de março de 2006

silogismo

"Platón y Aristóteles" - extracto de "La Escuela de Atenas" de Rafael (1509/1510 - Estancias Vaticanas) in ex inferis

- 55% dos votantes não queriam Sócrates como primeiro-ministro;
- 49% dos votantes não queriam Cavaco como presidente;

Ninguém queria esta combinação.

8 de março de 2006

sonhar

Sonhar, Almada Negreiros

cuidado, meu filho
daquilo que não digo
por respeito a teus pais
cuidado, meu macho
daquilo que não digo
por amor às reais

não tentes testar
não faças aparecer
não vás descobrir
não te queiras opor
aquilo e aquilo que é capaz de fazer
um homem pasmado
que parou de sonhar.

4 de março de 2006

escondido


Quando ciganos vandalizam e assaltam o nosso local de trabalho, quando pretos agridem e roubam violentamente a nossa irmã à porta de casa.
Eis quando é mais difícil e mais necessário manter o espírito crítico.
Contra o ódio, contra o medo, contra a vingança.

3 de março de 2006

toi


Il fait bon t'aimer
by Edith Piaf

Un jour que j'avais du chagrin,
Tu l'as fait voler en éclats.
Prenant mes larmes dans tes mains,
T'as dit : "T'es trop belle pour ces bijoux-là !"
Pour toi, j'ai appris à sourire
Et, dès ce jour là, j'ai compris
Qu'on puisse avoir peur de mourir
Quand on connait déjà le paradis...

Il fait si bon t'aimer.
T'as l'air d'être fait pour ça,
Pour être blotti, les yeux fermés,
La tête au creux de mes bras.
Ta lèvre appelle si fort mes baisers.
Je n'ai pas besoin d' me forcer.
J' n'ai qu'à m' laisser bercer
Et tout devient léger.
Il fait si bon t'aimer.

Auprès de toi je n'ai plus peur.
Je me sens trop bien, à l'abri.
T'as fermé la porte au malheur.
Il n'entrera plus, t'es plus fort que lui
Et quand, par les rues, je m'en vais,
Je porte ma voix dans les yeux,
Comme si tes baisers me suivaient
Et que les gens se retournaient sur eux.

Il fait si bon t'aimer.
T'as l'air d'être fait pour ça,
Pour être blotti, les yeux fermés,
La tête au creux de mes bras.
Ta lèvre appelle si fort mes baisers.
Je n'ai pas besoin d' me forcer.
J' n'ai qu'à m' laisser bercer
Et tout devient léger.
Il fait si bon t'aimer.

2 de março de 2006

tarantino


Se eu fosse um crítico de televisão, diria, com pompa e em qualquer circunstância, que CSI Las Vegas era a melhor série de sempre. Saindo, entusiasmado, do meu campo de especialização, acrescentaria que Quentin Tarantino devia receber um oscar todos os anos, só pela forma como nos mantém agarrados à cadeira ou ao sofá.
Como não sou, escrevo apenas, com humildade, que quem perdeu o último episódio da quinta série de CSI (AXN, 28 de Fevereiro) fez mal.
Muito mal.

1 de março de 2006

abutre

Prometheus (Moreau, 1868) - detail: Prometheus and vulture
in Beloit College: department of classics

O abutre

Era um abutre, e dava-me bicadas nos pés. Já me tinha rasgado as botas e as meias, e agora dava-me já bicadas nos pés propriamente ditos. Picava e voltava a picar, depois voava várias vezes, inquieto, à minha volta, e continuava o seu trabalho. Passou por ali um senhor, ficou um momento parado a olhar, e depois perguntou-me por que razão eu me não defendia do abutre. "Mas eu não me posso defender", disse eu. "Ele chegou e começou a dar bicadas, é claro que tentei enxotá-lo, tentei mesmo estrangulá-lo, mas um bicho destes tem muita força; e depois já me queria saltar para a cara, por isso preferi sacrificar os pés. Agora já estão quase desfeitos". "Não percebo porque se deixa torturar assim", disse o homem, "basta um tiro para acabar com o abutre". "Ah, é?", perguntei eu. "E o senhor não podia tratar disso?" "Com muito gosto", disse ele. "Só preciso de ir a casa buscar a espingarda. É capaz de esperar uma meia hora?" "Não sei", disse eu, e fiquei um instante hirto de dor. E depois pedi: "Mas tente de qualquer modo, por favor". "Está bem", disse o senhor, "vou o mais depressa que puder". O abutre tinha ficado calmamente a ouvir a conversa, olhando, ora para mim, ora para o senhor. Agora apercebi-me de que ele tinha compreendido tudo. Levantou voo, inclinou-se muito para trás para tomar balanço suficiente e depois, como um lançador de dardo, enfiou o bico pela minha boca e por mim adentro. Caído de costas, senti, agora liberto, como ele irremediavelmente se afogava no meu sangue, que enchia todas as profundezas e alagava todas as margens.

Franz Kafka, Parábolas e Fragmentos (tradução de João Barrento), Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.