25 de março de 2009

demagogias

O anúncio da Antena Um é demagógico. Uma rádio pública não devia promover-se com demagogia.

Por mim, a história acabava aqui. Não vejo neste anúncio mais do que o “chico-espertismo” de um/a publicitário/a que achou graça à brincadeira. Imaginar o gabinete de Sócrates a encomendar um anúncio para “malhar” nos sindicatos ou a administração da RTP a lamber assim as botas do Governo é coisa que, perdoem-me a ingenuidade, não consigo.

Por outro lado, se a mensagem é demagógica é porque vai ao encontro daquilo que é mais provável que as pessoas pensem. A par do mau gosto, quem teve esta ideia demonstrou, afinal, que está atento/a à “voz do povo”: anda de autocarro, vai a barbearias, ouve as conversas no café e as opiniões dos ouvintes nos programas de rádio. A chalaça do anúncio é politicamente incorrecta, mas reproduz os lugares comuns e os preconceitos que ouvimos diariamente na rua. Por isso é comercialmente atractiva.

Muito mais do que um/a publicitário/a armado em parodiante e uma empresa pública esquecida do seu estatuto, incomoda-me a falsa ideia de respeito pelos direitos dos outros que alastra em Portugal. Defendemos o direito à greve e às manifestações, mas à primeira escola ou rua fechada desvalorizamos as razões de quem protesta. Lembremo-nos, por exemplo, da conotação da expressão “funcionário público” ou das reacções descabeladas perante a ameaça de uma greve aos exames por parte dos professores. As razões para o protesto são, em primeira instância, individuais. A maior parte das lutas faz-se da conjugação de várias questões individuais, unidas pelo mesmo denominador comum. São solidárias do ponto de vista interno (porque a percepção de que a união faz a força é imediata), mas nem sempre para o exterior: o bancário com excesso de trabalho reclama com o funcionário público que sai às cinco e ainda se queixa, o desempregado fabril protesta com o professor que não quer é trabalhar, o taxista despreza o motorista dos autocarros, que ao menos tem ordenado certo. Um país em luta não é necessariamente um país mais solidário.

Às vezes, ser solidário é tão simples quanto aceitar o protesto dos outros, mesmo que isso custe uma hora no trânsito ou uma ida em falso ao exame da escola. O anúncio da Antena Um não o é. E o país?


Admiro o trabalho de Eduarda Maio há vários anos. Dois dos seus actuais programas – a Antena Aberta e o Conselho Superior – são particularmente exigentes quanto à isenção e à resistência à demagogia. Nunca ouvi ninguém criticar o seu trabalho jornalístico. São muito injustos os comentários que visam diminuir a sua credibilidade profissional, procurando ligar a locução neste anúncio ao facto de ter escrito a biografia de José Sócrates e a uma suposta proximidade com o PS ou com o Governo. Mesmo que esta proximidade (ou simpatia, ou o que for) seja verdade (o que não é evidente), ninguém tem nada a ver com isso. Pelo contrário, o seu profissionalismo deve ser ainda mais realçado: ela não mistura as coisas. Não as misturemos nós também.

24 de março de 2009

cidadões



O fenómeno não é recente e estará, suponho, suficientemente estudado. Mas não deixa de fazer novas vítimas. Em política, determinados conceitos são tão gastos que deixam de ter significado.

Um dos exemplos é o “desenvolvimento estratégico”. Atrevo-me até a pedir aos candidatos autárquicos na minha cidade que, nas próximas eleições, resistam a utilizar esta expressão e evitem denunciar a “falta de estratégia” dos adversários. Os termos foram utilizados com tanta frequência em ocasiões anteriores, referindo-se a ideias concretas tão diferentes, que se banalizaram e tornaram irrelevantes. Hoje, já ninguém sabe o que querem dizer e, provavelmente, já não querem dizer nada.

Há dias, sentado numa loja do dito, ocorreu-me que se passa o mesmo com o conceito de “cidadão”. Independentemente do percurso histórico da palavra, lembro-me bem da primeira vez que me confrontei a sério com ela. Estava em plena adolescência, num país onde os partidos falavam para “eleitores”, uns, ou para “trabalhadores”, outros. Eu, que era estudante e não tinha idade para votar, deixei-me facilmente seduzir pela radicalidade com que a Política XXI se dirigia aos “cidadãos” e os defendia informados e participativos em relação aos processos de governação.

Numa perspectiva optimista, diria que muita coisa mudou desde então em matéria de participação pública em Portugal. E que o contributo da Política XXI para essa mudança, apesar dos resultados que obteve nas únicas eleições a que concorreu em nome próprio (as europeias de 1994), está até hoje por avaliar. Não há hoje nenhum partido que não defenda a necessidade de uma maior proximidade entre governantes e governados; há mecanismos de participação popular a ser testados e aplicados em vários contextos por todo o país; as rádios e as televisões oferecem grandes tempos de antena aos seus auditórios; as novas tecnologias proporcionam múltiplos mecanismos de expressão pessoal e colectiva. A opinião pública tornou-se, sem dúvida, mais pública (ainda que não necessariamente mais informada ou mais democrática).

Nos corredores do moderno edifício onde aguardava a minha vez, com a senha 42 na mão e rodeado de cartazes a publicitar o “cartão do cidadão”, inclinei-me, contudo, para a versão pessimista. O Estado apoderou-se do conceito e burocratizou-o. “Cidadão”, com loja própria e cartão próprio e senhas próprias e filas próprias, é hoje apenas um rótulo para designar um tipo específico de consumidor: um consumidor de bens e serviços essenciais, como a água, a luz, a protecção social, o emprego. Com direitos, sim, mas um mero consumidor.

A cidadania de sala de espera que se vende nestas repartições é, na melhor das hipóteses, uma versão muito empobrecida da ideia que me entusiasmou há 15 anos atrás. E enganadora: ela disfarça o caminho que falta fazer, oferecendo-nos cartazes com pessoas sorridentes, cartões plastificados e cadeiras alinhadas. Agora, temos ainda mais uma tarefa: a de inventar uma nova palavra para designar o que queremos.

17 de março de 2009

criação

[texto originalmente publicado no amplo e inédito debate promovido pelo Bloco de Esquerda]



Quanto mais alargados forem os mecanismos para a prática e a fruição artísticas, mais informada, mais crítica, mais participativa, mais cosmopolita será a comunidade e mais justo e democrático será o seu desenvolvimento. Aqui reside o interesse público da criação artística e se fundamenta a intervenção do Estado.
Iniciada com décadas de atraso em relação a outros países europeus, a actuação do Estado português neste domínio tem sido envergonhada nos propósitos e limitada nos recursos, assentando numa contradição que continua por sanar: ao mesmo tempo que destina verbas para financiar a criação artística, o próprio Estado alimenta práticas e discursos que menorizam público e criadores.

liberdade, igualdade e criatividade
Como qualquer sector de actividade que implique meios humanos e materiais, a criação artística será sempre financeiramente dependente – do Estado ou do mercado. Cabe a uma política de esquerda reconhecer que só o Estado pode garantir a igualdade de todos no acesso à criação artística, independentemente dos seus recursos económicos ou da zona de residência, e que só o financiamento público pode assegurar a sobrevivência dos sectores da criação em relação aos quais o mercado não responde de forma suficiente. Ao contrário do que se afirma no programa do actual governo, só a intervenção do Estado, contratualizada e transparente, garante a liberdade no sector criativo – é ao Estado que devemos exigir o respeito pela universalidade dos direitos individuais e colectivos e é em relação ao Estado que, numa sociedade democrática, as cidadãs e os cidadãos dispõem dos mais eficazes mecanismos de fiscalização.
A meta simbólica do 1% do Orçamento de Estado, prometida e desrespeitada por sucessivos governos, mantém-se como referência mínima a alcançar com urgência e constitui um sinal político de enorme relevância que um programa de esquerda não pode deixar de concretizar.

transversalidade e irresponsabilidade
Pela natureza da actividade artística e pelos resultados multi-facetados da sua difusão, é frequentemente defendida a necessidade de uma intervenção transversal por parte do Estado. As ligações com outras áreas de governação (a educação, o turismo, a economia) não podem no entanto servir para disfarçar o sub-investimento na criação artística, remetendo-a para uma “terra de ninguém” onde todos são co-responsáveis mas ninguém se responsabiliza. Uma política para a igualdade reforça o papel específico do Ministério da Cultura na gestão da intervenção pública no domínio artístico e encara todas as colaborações com outros sectores como formas de complementar, maximizar e rentabilizar o investimento directo entretanto feito.

as redes precisam de nós
De igual modo, o trabalho em rede não deve ser um fim em si mesmo, num contexto em que os pólos em que tais redes deveriam assentar (os nós que podem sustentá-las e alimentá-las) estão fragilizados e a tentar sobreviver. Sem que esses pólos tenham um mínimo de estabilidade, as redes criadas por decreto transformar-se-ão, perversamente, em mecanismos que acentuam as desigualdades entre estruturas mais e menos consolidadas e entre regiões do país com níveis de desenvolvimento artístico muito diferenciados. Em matéria de descentralização da criação artística (elemento indispensável à descentralização “cultural”), será necessário:
contratualizar com estruturas de criação e criadores individuais estrategicamente distribuidos pelo território contratos-programa que lhes permitam desenvolver o seu trabalho em condições temporais e financeiras razoáveis e que tenham em conta as especificidades locais;
criar um programa específico para o apoio à programação de espaços culturais, tirando partido das infra-estruturas entretanto criadas e rentabilizando o investimento feito na criação artística;
alargar o sector público da criação artística, actualmente limitado a Lisboa e Porto, integrando-o numa lógica de desenvolvimento das principais cidades médias do país.

para além do dinheiro
Uma política para a igualdade no domínio da criação artística vai necessariamente além do reforço orçamental. Reconhecido, de facto, o interesse colectivo desta actividade, compete ao Estado e aos seus responsáveis combater por todos os meios as representações simbólicas que têm ajudado a criar entre a população, como os discursos da subsídio-dependência ou do elitismo. Uma mudança de paradigma (aqui sim) transversal a todas as áreas e escalas de governação, com particular destaque para o papel da educação, assumindo a formação de públicos como um dever colectivo e não como uma responsabilidade dos criadores.
Inclui-se nesta mudança:
a universalização do ensino das várias expressões artísticas desde o ensino pré-escolar e ao longo de todos os níveis de escolaridade;
a disponibilização de meios de informação e divulgação das iniciativas artísticas financiadas pelo Estado nos órgãos públicos de comunicação social.