17 de março de 2009

criação

[texto originalmente publicado no amplo e inédito debate promovido pelo Bloco de Esquerda]



Quanto mais alargados forem os mecanismos para a prática e a fruição artísticas, mais informada, mais crítica, mais participativa, mais cosmopolita será a comunidade e mais justo e democrático será o seu desenvolvimento. Aqui reside o interesse público da criação artística e se fundamenta a intervenção do Estado.
Iniciada com décadas de atraso em relação a outros países europeus, a actuação do Estado português neste domínio tem sido envergonhada nos propósitos e limitada nos recursos, assentando numa contradição que continua por sanar: ao mesmo tempo que destina verbas para financiar a criação artística, o próprio Estado alimenta práticas e discursos que menorizam público e criadores.

liberdade, igualdade e criatividade
Como qualquer sector de actividade que implique meios humanos e materiais, a criação artística será sempre financeiramente dependente – do Estado ou do mercado. Cabe a uma política de esquerda reconhecer que só o Estado pode garantir a igualdade de todos no acesso à criação artística, independentemente dos seus recursos económicos ou da zona de residência, e que só o financiamento público pode assegurar a sobrevivência dos sectores da criação em relação aos quais o mercado não responde de forma suficiente. Ao contrário do que se afirma no programa do actual governo, só a intervenção do Estado, contratualizada e transparente, garante a liberdade no sector criativo – é ao Estado que devemos exigir o respeito pela universalidade dos direitos individuais e colectivos e é em relação ao Estado que, numa sociedade democrática, as cidadãs e os cidadãos dispõem dos mais eficazes mecanismos de fiscalização.
A meta simbólica do 1% do Orçamento de Estado, prometida e desrespeitada por sucessivos governos, mantém-se como referência mínima a alcançar com urgência e constitui um sinal político de enorme relevância que um programa de esquerda não pode deixar de concretizar.

transversalidade e irresponsabilidade
Pela natureza da actividade artística e pelos resultados multi-facetados da sua difusão, é frequentemente defendida a necessidade de uma intervenção transversal por parte do Estado. As ligações com outras áreas de governação (a educação, o turismo, a economia) não podem no entanto servir para disfarçar o sub-investimento na criação artística, remetendo-a para uma “terra de ninguém” onde todos são co-responsáveis mas ninguém se responsabiliza. Uma política para a igualdade reforça o papel específico do Ministério da Cultura na gestão da intervenção pública no domínio artístico e encara todas as colaborações com outros sectores como formas de complementar, maximizar e rentabilizar o investimento directo entretanto feito.

as redes precisam de nós
De igual modo, o trabalho em rede não deve ser um fim em si mesmo, num contexto em que os pólos em que tais redes deveriam assentar (os nós que podem sustentá-las e alimentá-las) estão fragilizados e a tentar sobreviver. Sem que esses pólos tenham um mínimo de estabilidade, as redes criadas por decreto transformar-se-ão, perversamente, em mecanismos que acentuam as desigualdades entre estruturas mais e menos consolidadas e entre regiões do país com níveis de desenvolvimento artístico muito diferenciados. Em matéria de descentralização da criação artística (elemento indispensável à descentralização “cultural”), será necessário:
contratualizar com estruturas de criação e criadores individuais estrategicamente distribuidos pelo território contratos-programa que lhes permitam desenvolver o seu trabalho em condições temporais e financeiras razoáveis e que tenham em conta as especificidades locais;
criar um programa específico para o apoio à programação de espaços culturais, tirando partido das infra-estruturas entretanto criadas e rentabilizando o investimento feito na criação artística;
alargar o sector público da criação artística, actualmente limitado a Lisboa e Porto, integrando-o numa lógica de desenvolvimento das principais cidades médias do país.

para além do dinheiro
Uma política para a igualdade no domínio da criação artística vai necessariamente além do reforço orçamental. Reconhecido, de facto, o interesse colectivo desta actividade, compete ao Estado e aos seus responsáveis combater por todos os meios as representações simbólicas que têm ajudado a criar entre a população, como os discursos da subsídio-dependência ou do elitismo. Uma mudança de paradigma (aqui sim) transversal a todas as áreas e escalas de governação, com particular destaque para o papel da educação, assumindo a formação de públicos como um dever colectivo e não como uma responsabilidade dos criadores.
Inclui-se nesta mudança:
a universalização do ensino das várias expressões artísticas desde o ensino pré-escolar e ao longo de todos os níveis de escolaridade;
a disponibilização de meios de informação e divulgação das iniciativas artísticas financiadas pelo Estado nos órgãos públicos de comunicação social.

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