O fenómeno não é recente e estará, suponho, suficientemente estudado. Mas não deixa de fazer novas vítimas. Em política, determinados conceitos são tão gastos que deixam de ter significado.
Um dos exemplos é o “desenvolvimento estratégico”. Atrevo-me até a pedir aos candidatos autárquicos na minha cidade que, nas próximas eleições, resistam a utilizar esta expressão e evitem denunciar a “falta de estratégia” dos adversários. Os termos foram utilizados com tanta frequência em ocasiões anteriores, referindo-se a ideias concretas tão diferentes, que se banalizaram e tornaram irrelevantes. Hoje, já ninguém sabe o que querem dizer e, provavelmente, já não querem dizer nada.
Há dias, sentado numa loja do dito, ocorreu-me que se passa o mesmo com o conceito de “cidadão”. Independentemente do percurso histórico da palavra, lembro-me bem da primeira vez que me confrontei a sério com ela. Estava em plena adolescência, num país onde os partidos falavam para “eleitores”, uns, ou para “trabalhadores”, outros. Eu, que era estudante e não tinha idade para votar, deixei-me facilmente seduzir pela radicalidade com que a Política XXI se dirigia aos “cidadãos” e os defendia informados e participativos em relação aos processos de governação.
Numa perspectiva optimista, diria que muita coisa mudou desde então em matéria de participação pública em Portugal. E que o contributo da Política XXI para essa mudança, apesar dos resultados que obteve nas únicas eleições a que concorreu em nome próprio (as europeias de 1994), está até hoje por avaliar. Não há hoje nenhum partido que não defenda a necessidade de uma maior proximidade entre governantes e governados; há mecanismos de participação popular a ser testados e aplicados em vários contextos por todo o país; as rádios e as televisões oferecem grandes tempos de antena aos seus auditórios; as novas tecnologias proporcionam múltiplos mecanismos de expressão pessoal e colectiva. A opinião pública tornou-se, sem dúvida, mais pública (ainda que não necessariamente mais informada ou mais democrática).
Nos corredores do moderno edifício onde aguardava a minha vez, com a senha 42 na mão e rodeado de cartazes a publicitar o “cartão do cidadão”, inclinei-me, contudo, para a versão pessimista. O Estado apoderou-se do conceito e burocratizou-o. “Cidadão”, com loja própria e cartão próprio e senhas próprias e filas próprias, é hoje apenas um rótulo para designar um tipo específico de consumidor: um consumidor de bens e serviços essenciais, como a água, a luz, a protecção social, o emprego. Com direitos, sim, mas um mero consumidor.
A cidadania de sala de espera que se vende nestas repartições é, na melhor das hipóteses, uma versão muito empobrecida da ideia que me entusiasmou há 15 anos atrás. E enganadora: ela disfarça o caminho que falta fazer, oferecendo-nos cartazes com pessoas sorridentes, cartões plastificados e cadeiras alinhadas. Agora, temos ainda mais uma tarefa: a de inventar uma nova palavra para designar o que queremos.
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