1 de março de 2006

abutre

Prometheus (Moreau, 1868) - detail: Prometheus and vulture
in Beloit College: department of classics

O abutre

Era um abutre, e dava-me bicadas nos pés. Já me tinha rasgado as botas e as meias, e agora dava-me já bicadas nos pés propriamente ditos. Picava e voltava a picar, depois voava várias vezes, inquieto, à minha volta, e continuava o seu trabalho. Passou por ali um senhor, ficou um momento parado a olhar, e depois perguntou-me por que razão eu me não defendia do abutre. "Mas eu não me posso defender", disse eu. "Ele chegou e começou a dar bicadas, é claro que tentei enxotá-lo, tentei mesmo estrangulá-lo, mas um bicho destes tem muita força; e depois já me queria saltar para a cara, por isso preferi sacrificar os pés. Agora já estão quase desfeitos". "Não percebo porque se deixa torturar assim", disse o homem, "basta um tiro para acabar com o abutre". "Ah, é?", perguntei eu. "E o senhor não podia tratar disso?" "Com muito gosto", disse ele. "Só preciso de ir a casa buscar a espingarda. É capaz de esperar uma meia hora?" "Não sei", disse eu, e fiquei um instante hirto de dor. E depois pedi: "Mas tente de qualquer modo, por favor". "Está bem", disse o senhor, "vou o mais depressa que puder". O abutre tinha ficado calmamente a ouvir a conversa, olhando, ora para mim, ora para o senhor. Agora apercebi-me de que ele tinha compreendido tudo. Levantou voo, inclinou-se muito para trás para tomar balanço suficiente e depois, como um lançador de dardo, enfiou o bico pela minha boca e por mim adentro. Caído de costas, senti, agora liberto, como ele irremediavelmente se afogava no meu sangue, que enchia todas as profundezas e alagava todas as margens.

Franz Kafka, Parábolas e Fragmentos (tradução de João Barrento), Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

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