Não era necessário transformar este segundo momento do ciclo de co-produções entre A Escola da Noite e a Companhia de Teatro de Braga numa trilogia para mostrar o que pretendíamos. Nem foi por isso que o fizemos. A opção surgiu já com o projecto em andamento, em função da riqueza do material que tínhamos em mãos e dos resultados a que fomos conseguindo chegar com o próprio processo de trabalho.
Ainda assim, esta “multiplicação” de espectáculos acaba por ser uma boa imagem da forma como quisemos encarar a colaboração a que nos propusemos. A crise a crise a crise a crise tem, para além de todos, um perigo máximo: o de fazer com que aceitemos, desejemos ou sintamos que temos de abrigar-nos em porto seguro, à espera que a tormenta passe. O perigo de nos fazer concentrar nas fraquezas – nossas e alheias – e de nos convencer de que, se as juntarmos, seremos mais fortes. O perigo de baixar o nível de exigência e o erro de nos querer fazer acreditar que é possível e desejável fazer mais com menos.
Somos dos que resistem a este miserabilismo e dos que não aceitam esta inevitabilidade. A crise a crise a crise a crise é forte, afecta-nos e deixa marcas, mas não impede a escolha. Pelo contrário, torna-a mais decisiva. Encolhermo-nos ou arriscarmos? Estacionar ou subir a fasquia?
Numa época em que tanto se fala de empreendedorismo, talvez fosse bom parar para pensar o que quer isso dizer em matéria de criação artística. A pretexto da crise, os criadores nacionais estão hoje sob uma tremenda, perversa e ilegítima pressão: com maior ou menor subtileza, tem vindo a instalar-se a ideia de que temos de perceber a dificuldade dos tempos. E de encontrar alternativas, construindo projectos financiáveis, enquadráveis, elegíveis, sustentáveis, rentabilizáveis. À custa do que for preciso e em nome de uma suposta capacidade empreendedora, assente no pragmatismo, na maleabilidade, na eficiência de gestão e na compreensão das regras do mercado.
Alguma coisa temos aprendido desta linguagem – palavras novas, afinal, para aquilo que as estruturas de criação desde sempre têm feito e sem o qual o panorama português seria muitíssimo mais pobre. Mas não nos esquecemos nunca de que, em arte, o empreendedorismo que importa é o que move os criadores e os impele a comportar-se como artistas. É aí que a criatividade realmente conta, é daí que surge a novidade, é apenas a partir daí que podemos (e devemos) ser dinâmicos, “pro-activos”, “criativos” na gestão e na produção. Por estranho que pareça, os dias que vamos vivendo aconselham-nos a repetir o que devia ser óbvio: no centro da actividade cultural e das políticas que a regulam tem de estar a criação artística. É esta que lhes dá conteúdo e sentido e que precisamente pode transformá-las num muito poderoso instrumento contra a crise.
As duas co-produções realizadas entre a Companhia de Teatro de Braga e A Escola da Noite – “Sabina Freire” em 2009 e agora a trilogia “1.José 2.Rubem 3.Fonseca” – assentam nestes pressupostos. São uma conjugação das nossas maiores forças e potencialidades para que possamos chegar mais longe do que conseguiríamos sozinhos. Juntámos meios (elencos, equipas técnicas, equipas de produção, orçamentos) para podermos ser ainda mais ambiciosos nos espectáculos a apresentar. Aproveitámos para subir a fasquia, aceitando e partilhando todos os riscos que daí decorrem. O de fazer um texto já quase esquecido na história do teatro português, lutando contra a desconfiança, o preconceito e, sobretudo, contra o desconhecimento; e, agora, o de experimentar a abordagem a todo o universo literário de um autor (não teatral) como Rubem Fonseca, sem um guião definido à partida.
Quando a aposta é convicta e partilhada, há sempre o risco de as coisas correrem bem. Tão bem que, ao fim de três meses e meio de trabalho diário e intensivo, temos não um mas três espectáculos para oferecer aos nossos espectadores – “culpa” do autor, responsabilidade nossa, desafio e oportunidade para o público.
E um sinal claro de que é realmente possível fazer melhor e fazer mais. Com mais.
Coimbra, Abril de 2010.
A Escola da Noite / Companhia de Teatro de Braga
(in programa da trilogia "1.José 2.Rubem 3.Fonseca")
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