15 de novembro de 2014

As “grandes opções” de Manuel Machado: cortar na cultura

Pátio da Inquisição

As Grandes Opções do Plano (GOP) são, como o nome indica, o documento onde cada Executivo Autárquico apresenta as suas principais linhas de intervenção.
Há sempre duas maneiras de as definir – em diálogo com a oposição e com a sociedade civil ou em regime de “auto-suficiência”, apresentando o documento à última da hora, simplesmente sujeitando-o ao voto do conjunto dos vereadores.
Em relação às GOP para 2015, o actual Executivo da Câmara Municipal de Coimbra escolheu a segunda via, o que teve duas consequências: foi necessário recorrer ao voto de qualidade do Presidente para as aprovar e os seus principais destinatários – os cidadãos do concelho – só conheceram as intenções da Autarquia depois de o documento estar aprovado.
Dir-se-á que são as regras da democracia representativa. É verdade que sim, se encaradas de uma forma legalista e redutora do exercício democrático do poder.
Mas é também uma regra da democracia (e da decência) que os eleitos cumpram o que prometem em campanha. E que quando alteram os seus planos expliquem as razões de tal mudança a quem delegou neles o poder de governar.
O caso da cultura dá-nos dois graves exemplos de violação desta regra. O primeiro é a descida muito significativa do investimento nesta área – de 3,31 para 2,5% do total do Orçamento. Na cidade que se regozijou com a classificação atribuída pela UNESCO, que continua a afirmar que a cultura e o conhecimento são as suas maiores “potencialidades”, esta descida é muito significativa. Não há outra leitura possível: ao contrário da retórica de campanha e dos discursos de circunstância, foi agora oficializado que o Executivo de Manuel Machado tem como uma das suas Grandes Opções do Plano diminuir a importância da cultura no conjunto da acção da Câmara Municipal. 
Este corte tem consequências concretas. Há instituições que desaparecem das GOP e que, portanto, deixarão de poder contar com o apoio da Câmara Municipal para desenvolverem as suas actividades. Duas delas são a Cena Lusófona e a Associação Encontros de Fotografia. Estou ligado à primeira (sendo portanto directamente afectado), mas não é por isso que a refiro aqui. É que tanto uma como outra são responsáveis pela gestão de equipamentos municipais – no caso da Cena Lusófona, pela Ala Central do Colégio das Artes, no Pátio da Inquisição, cuja recuperação foi financiada pela União Europeia com o fim específico de aí ser instalado o seu Centro de Documentação e Informação; no caso dos Encontros de Fotografia, pelo Centro de Artes Visuais (CAV), um equipamento de referência a vários níveis, entre os quais a colecção que alberga e o próprio projecto de arquitectura. Deixá-las de fora das GOP significa que a CMC se desinteressa pelo que acontece nestes seus espaços (onde ela própria investiu dinheiro público), o que é inaceitável.
Mais uma vez, é de assinalar a contradição com o que foi prometido aos eleitores. Não é necessário recuar muito para lembrar como os Encontros de Fotografia foram apresentados por Manuel Machado, antes e depois das eleições, como um dos principais projectos culturais para a cidade. Além disso, os Encontros e a Cena são parte essencial de um projecto iniciado há mais de uma década, com o mesmo Presidente da Câmara: a recuperação da vocação cultural do eixo Pátio da Inquisição / Rua da Sofia, que agora se arrisca a ser destruído por quem aceitou criá-lo. Não é um projecto qualquer. Trata-se da zona histórica da cidade, em pleno centro urbano e na tal zona classificada que tanto fez inchar de orgulho os nossos governantes. Se esta zona é tratada assim, o que dizer do resto do concelho?
Quando questionado sobre as razões desta inusitada inversão de rumo, o Executivo limitou-se a responder, pela voz da Vereadora da Cultura, que o mesmo acontecia à generalidade das associações. Talvez, mas os cidadãos merecem mais do que respostas do tipo “porque sim” ou “porque não”. A governação de uma cidade não pode ficar refém de supostas incompatibilidades pessoais ou das arbitrariedades de quem foi escolhido para exercer o seu mandato.
A fundamentação das decisões e a prestação de contas pelo que é feito são tão essenciais à democracia como as eleições. Neste momento, e perante o que aconteceu a propósito das GOP na cultura, é isso que Manuel Machado e a sua equipa nos devem.

Pedro Rodrigues
produtor cultural, membro da Assembleia de Freguesia de Santo António dos Olivais, eleito pelo Movimento Cidadãos por Coimbra

31 de outubro de 2014

cadáveres


O espectáculo em que estou a trabalhar neste momento chama-se “Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres”. No poema de onde provém este verso, escreve Sérgio Penegaru, criatura de Matéi Visniec: “eu adoro quando tu andas sobre os meus lábios / e quando andas simplesmente em cima de mim / e em cima de outros milhões de cadáveres / Oh, como deve ser agradável a sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres”.
Nada disto tem a ver com este texto, tirando o facto de a frase me ter vindo à cabeça a propósito da felicidade do vereador da cultura do Porto e dos seus convidados na apresentação da “nova filosofia” do Teatro do Campo Alegre, naquela cidade.
Dói mais quando a falta de vergonha, de ética e de memória acontecem no meio que consideramos como nosso. E quando colegas de profissão aceitam ser cúmplices da falta de escrúpulos e de respeito. Há um ano, a Seiva Trupe foi escorraçada do Teatro que ajudou a construir e que só existe por sua causa por um Presidente da Câmara em fim de mandato que fez questão de mostrar quem manda. Doze meses depois, novos responsáveis autárquicos quiseram aumentar a humilhação, rodeando-se de prestáveis e felizes servidores que fazem de conta que não sabem o que se passou e aceitam alegremente subscrever a tese de que o Teatro, que antes, supostamente, estava “fechado” por vontade daquela companhia, vai ser agora um “campo aberto”.
Aceitam construir o seu futuro por cima do que acreditam ser o cadáver de uma companhia. E isso – só isso – diz tudo do futuro que os espera.
Defende-se uma nova filosofia para o espaço. Nas sexy palavras de Paulo Cunha Silva, mais ligada “à experimentação, ao risco e às novas linguagens de palco”. Quanta covardia generalizada. Rui Rio disse que despejava a Seiva Trupe porque esta não pagava a renda que vergonhosamente a Câmara lhe cobrava (e que obviamente o grupo não tinha como pagar) e fê-lo no último dia do seu mandato. Rui Moreira e Cunha e Silva aproveitaram o facto consumado para fugirem às responsabilidades e usufruirem – eles sim – do “campo aberto” pelos seus antecessores. O novo director dos teatros municipais do Porto trabalha com o que lhe dão e não encontra melhor metáfora do que falar do “pedigree” (ou da falta dele) das estruturas que vão agora residir no Teatro. E as estruturas mostram-se felizes e agradecidas com a oportunidade que lhes é dada.
No meio de tanta “felicidade”, que justifica animados posts do vereador no facebook, a ninguém ocorre discutir o essencial: o que estava mal no modelo do Teatro do Campo Alegre no tempo da Seiva Trupe? Em que condições trabalhava lá esta companhia e por que parte pode ela ser responsabilizada? Quais foram afinal as verdadeiras razões do despejo? Em que consiste exactamente esta nova “filosofia” tão pomposamente apresentada pelo vereador da cultura, para além dos conceitos vagos e vazios que ele enuncia? É uma recusa do teatro “de texto”, do trabalho em torno de autores consagrados, do convite regular a encenadores com prestígio e provas dadas, das relações de intercâmbio e co-produções com outras estruturas – nacionais e estrangeiras, da formação e integração de novos profissionais das artes do espectáculo, do trabalho regular com o público escolar, da criação de condições para o surgimento de festivais que ainda hoje são referências no mundo inteiro como o FITEI? É a isto que tem de se responder quando se expulsa uma companhia como a Seiva Trupe. Mas com as coisas feitas assim, literalmente na calada da noite em que mudam os responsáveis, tudo isto, que é essencial para o futuro do teatro, fica sem resposta.
Que responsáveis políticos que desprezam o teatro e a cultura o aceitem e o promovam, não me espanta. Mas para quem continua a acreditar que boa parte da nossa luta é, tanto como contra a falta de financiamento público, em defesa de políticas culturais fundamentadas, participadas e transparentes, choca que haja profissionais do sector que aceitem ser protagonistas em sucessivas arbitrariedades. Não há forma mais rápida nem mais eficaz de cavarmos a nossa própria e definitiva sepultura.
É mesmo verdade que a realidade ultrapassa sempre a ficção. E por isso termino com as palavras de um poeta que realmente existiu: “Quando eles me levaram, já não havia mais ninguém para me defender”.

14 de agosto de 2014

5 de janeiro de 2014

cheiro

Combinámos que não íamos dizê-lo e não to direi.
Escrevo-o apenas, neste sítio meio escondido, porque o teu cheiro ainda nos enche a casa e isso me consola e aperta o coração ao mesmo tempo.
O que mais custa – o que mais me custava, dir-te-ei quando pudermos falar disto sem saudades à flor da pele – são aqueles fins-de-tarde em que te deixo na estação. Nem o hábito nem a consciência de que é assim evitam a tristeza que ainda sinto de cada vez que te vais embora. Depois aprendo a geri-la, claro, e vou canalizando o afecto e os abraços em sms. Acho que, inconscientemente, faço até por me esquecer de como é bom estarmos mesmo juntos e poder tocar-te, olhar-te, sentir o teu cheiro. Aprendo a não pensar como é vazia e fria e estranha a casa que fizemos juntos quando não estás por cá e a concentrar-me noutras coisas.
Mas de vez em quando tu voltas e – abençoada! – atiras tudo por terra. Num instante deito fora o que aprendi a construir e volto, sem querer, a pensar como são melhores os dias que começam com um beijo em ti e terminam com um abraço a sério.

Daqui a nada a casa já não vai cheirar a ti e a coisa vai ficar mais fácil. Mas hoje e amanhã, sei-o bem, é na tua almofada que vou dormir.