31 de outubro de 2014

cadáveres


O espectáculo em que estou a trabalhar neste momento chama-se “Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres”. No poema de onde provém este verso, escreve Sérgio Penegaru, criatura de Matéi Visniec: “eu adoro quando tu andas sobre os meus lábios / e quando andas simplesmente em cima de mim / e em cima de outros milhões de cadáveres / Oh, como deve ser agradável a sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres”.
Nada disto tem a ver com este texto, tirando o facto de a frase me ter vindo à cabeça a propósito da felicidade do vereador da cultura do Porto e dos seus convidados na apresentação da “nova filosofia” do Teatro do Campo Alegre, naquela cidade.
Dói mais quando a falta de vergonha, de ética e de memória acontecem no meio que consideramos como nosso. E quando colegas de profissão aceitam ser cúmplices da falta de escrúpulos e de respeito. Há um ano, a Seiva Trupe foi escorraçada do Teatro que ajudou a construir e que só existe por sua causa por um Presidente da Câmara em fim de mandato que fez questão de mostrar quem manda. Doze meses depois, novos responsáveis autárquicos quiseram aumentar a humilhação, rodeando-se de prestáveis e felizes servidores que fazem de conta que não sabem o que se passou e aceitam alegremente subscrever a tese de que o Teatro, que antes, supostamente, estava “fechado” por vontade daquela companhia, vai ser agora um “campo aberto”.
Aceitam construir o seu futuro por cima do que acreditam ser o cadáver de uma companhia. E isso – só isso – diz tudo do futuro que os espera.
Defende-se uma nova filosofia para o espaço. Nas sexy palavras de Paulo Cunha Silva, mais ligada “à experimentação, ao risco e às novas linguagens de palco”. Quanta covardia generalizada. Rui Rio disse que despejava a Seiva Trupe porque esta não pagava a renda que vergonhosamente a Câmara lhe cobrava (e que obviamente o grupo não tinha como pagar) e fê-lo no último dia do seu mandato. Rui Moreira e Cunha e Silva aproveitaram o facto consumado para fugirem às responsabilidades e usufruirem – eles sim – do “campo aberto” pelos seus antecessores. O novo director dos teatros municipais do Porto trabalha com o que lhe dão e não encontra melhor metáfora do que falar do “pedigree” (ou da falta dele) das estruturas que vão agora residir no Teatro. E as estruturas mostram-se felizes e agradecidas com a oportunidade que lhes é dada.
No meio de tanta “felicidade”, que justifica animados posts do vereador no facebook, a ninguém ocorre discutir o essencial: o que estava mal no modelo do Teatro do Campo Alegre no tempo da Seiva Trupe? Em que condições trabalhava lá esta companhia e por que parte pode ela ser responsabilizada? Quais foram afinal as verdadeiras razões do despejo? Em que consiste exactamente esta nova “filosofia” tão pomposamente apresentada pelo vereador da cultura, para além dos conceitos vagos e vazios que ele enuncia? É uma recusa do teatro “de texto”, do trabalho em torno de autores consagrados, do convite regular a encenadores com prestígio e provas dadas, das relações de intercâmbio e co-produções com outras estruturas – nacionais e estrangeiras, da formação e integração de novos profissionais das artes do espectáculo, do trabalho regular com o público escolar, da criação de condições para o surgimento de festivais que ainda hoje são referências no mundo inteiro como o FITEI? É a isto que tem de se responder quando se expulsa uma companhia como a Seiva Trupe. Mas com as coisas feitas assim, literalmente na calada da noite em que mudam os responsáveis, tudo isto, que é essencial para o futuro do teatro, fica sem resposta.
Que responsáveis políticos que desprezam o teatro e a cultura o aceitem e o promovam, não me espanta. Mas para quem continua a acreditar que boa parte da nossa luta é, tanto como contra a falta de financiamento público, em defesa de políticas culturais fundamentadas, participadas e transparentes, choca que haja profissionais do sector que aceitem ser protagonistas em sucessivas arbitrariedades. Não há forma mais rápida nem mais eficaz de cavarmos a nossa própria e definitiva sepultura.
É mesmo verdade que a realidade ultrapassa sempre a ficção. E por isso termino com as palavras de um poeta que realmente existiu: “Quando eles me levaram, já não havia mais ninguém para me defender”.