27 de março de 2010

dúvidas

Tracey Emin, "I've Got It All" (2000, ink-jet print, 124x109cm)



A entrevista da Ministra da Cultura ao Público da passada quarta-feira é desconcertante.
Por um lado, é bom saber que a responsável pela gestão do serviço público na cultura e na criação artística não embarca acriticamente no discurso das “indústrias culturais” e da rentabilidade do “sector criativo”. As coisas estão de tal maneira que nos apressamos a sublinhar e a recortar, para memória futura, o comentário que faz a mais um estudo sobre o peso da criatividade no PIB: “É preciso manter a cabeça fria e fazer uma leitura inteligente. Se os resultados são tão favoráveis para este sector, a verdade é que são de espectro muito largo, e aquilo que interessa agora é não desviar o enfoque de que o sector nuclear continua a ser a principal preocupação e deve ser o principal objectivo do MC”.
A primeira dúvida instala-se logo a seguir, com o primeiro ensaio de uma tal leitura “inteligente”: “Devemos olhar para essa forma de economia e tirar dela leituras de que precisamos para transformar o outro sector mais nuclear em actividade que contribua também para a riqueza do país”. Ou, mais concretamente, quando afirma que o MC não precisa de ter “um grande orçamento”, uma vez que “já há um mercado que reage positivamente às actividades do sector cultural”. Algo que é reforçado com as duas “linhas de actuação” do seu Ministério que mais desenvolve nesta entrevista: “linhas de crédito para as pequenas e médias empresas no sector cultural” e “linhas de crédito especiais para apoio de pequenas empresas que possam potenciar a manufactura e o artesanato português”. Tudo, claro, através da inevitável “transversalidade interministerial do MC com a Economia e o Turismo”. A “inteligência”, afinal, passa por criar mais uns nichos de mercado para o sector financeiro.
Por outro lado, todos poderemos subscrever frases como “o MC tem que ter a coragem de aplicar melhor as suas verbas e apostar na qualidade”. É verdade que a maioria dos projectos actualmente apoiados não tem condições para “um crescimento sustentado” e que isso coloca em causa a eficácia do investimento público – não em termos da sua rentabilidade financeira, mas sim no que diz respeito ao cumprimento dos objectivos, muitas vezes imateriais, que deveriam justificar este investimento.
As dúvidas surgem quando falamos das soluções para ultrapassar esta realidade. A Ministra opta pela mais fácil: “é preferível apoiar mais e melhor menos intervenientes do que espalhar pouco por muitos”. Atira-se o ónus do problema para a quantidade exagerada de agentes e não para a insuficiência das verbas. “Os fundos são o que são”, afirma. Não, senhora Ministra, os fundos são o que o seu Governo e o seu Ministério querem que sejam. E está por provar que haja artistas a mais em Portugal.
O mais desconcertante da entrevista reside, ainda assim, na forma como classifica a actual relação do Ministério com os agentes culturais que apoia: “tem havido alguma preocupação em satisfazer clientelas”; “vai-se permitindo que cada vez mais entidades entrem no sistema da subsídio-dependência”. Surpreende a ligeireza de tais afirmações e esta estranha aproximação às teses de Rui Rio, Zita Seabra, César das Neves ou Carlos Encarnação. Mas sobretudo choca a irresponsabilidade. Gabriela Canavilhas é livre de pensar o que bem entender. Enquanto Ministra da Cultura, no entanto, não pode limitar-se a constatar a existência de factos desta gravidade. Se os identifica, tem de actuar imediatamente para corrigir a situação, de preferência antes de tornar públicos estados de alma que só servem para desacreditar, junto da opinião pública, o trabalho e a idoneidade dos agentes culturais financiados pelo Estado.
Li a entrevista dando o benefício da dúvida que quase sempre acho que se deve dar a um/a governante em início de mandato. Mas perante uma pessoa que não quer discutir critérios para atribuição de financiamentos públicos (“estão a cargo dos júris”) e que apenas manifesta “vontade de reflectir” sobre ideias feitas (que ainda assim não se abstém de reproduzir e amplificar), a dúvida que me assalta é outra: o que quer esta Ministra?

12 de março de 2010

joão

Há mais de um ano que não ia ao Reis.
Voltei lá um dia destes, à hora do jantar, com dois amigos, direitos à sala de cima. Perante a sugestão da petinga com arroz de feijão, um dos meus amigos, timorense, perguntou, a sorrir mas com pouca esperança, se não haveria chanfana. "Lembro-me como se fosse hoje - confidenciou logo a seguir - da primeira vez em que comi chanfana. Foi aqui, nesta sala". O empregado não disse nada, habituado às marcas que o espaço e as pessoas que o frequentam deixam na memória dos seus clientes.
Quando as petingas chegaram, fizemos contas: a chanfana é o prato favorito do meu amigo timorense há 15 anos. Brindámos. À lembrança dessa tarde e do que ela havia permitido, ao reencontro profissional, aos projectos novos, aos desejos de felicidade - os nossos, os dos povos e até os de alguns governantes bem-intencionados.
Uma avaria qualquer na máquina fez com que tivesse de vir pagar cá abaixo. Olhei à volta enquanto aguardava pelo talão do multibanco. Foi aí que vi a fotografia do João pendurada na parede. Ao princípio fiquei chocado. Ao lado do João, mais cinco ou seis fotografias de clientes habituais do restaurante, numa composição de gosto discutível. Depois sorri. O João, o mais vivo e bem-disposto dos meus amigos, haveria de rir-se muito apenas de imaginar que alguém colocaria assim, ali, uma fotografia sua. Por fim, chorei. Porque a foto é uma homenagem a um amigo da casa, porque o João havia de reconhecê-lo e deixá-la ficar por simpatia, porque a foto não ri nem fala nem abraça, só lembra.
Lembra-me, por exemplo, de que foi naquele mesmo restaurante que tive os primeiros jantares com o João, mais ou menos pela altura em que o Zé provava a chanfana. Lembro-me como se fosse hoje, posso também dizer, das intermináveis conversas que eu sorvia como se não houvesse amanhã. Lembro-me de ele fazer perguntas, de se interessar pelo que nós, uns putos, tínhamos para dizer. Acho que devo ao Tó-Zé a participação nesses jantares. Íamos para a sala do fundo, salvo erro às quartas-feiras, e saíamos de lá tardíssimo, com as injustiças do mundo por resolver, é certo, mas mais seguros do que podíamos fazer, cada um de nós e em conjunto, para lutar contra elas.
Generoso como era, o João achava graça à nossa ingenuidade. E incentivava-nos a testá-la, a acreditar no que dizíamos, a experimentar aquilo em que acreditávamos. Mas não ficava só a ver. Ia connosco, aparecia, perguntava, ouvia, respeitava, participava. E tinha sempre o tempo todo para toda a gente, fazendo de cada pessoa com quem se cruzava a pessoa mais importante do mundo.

Lembram-me outros bons amigos que faz agora um ano que o João deixou de vir ter connosco. Lembro-me como se fosse hoje de onde e por quem recebi a notícia. De como ela era esperada e de como ainda assim não queríamos acreditar. Lembro-me, porque ainda hoje me custa tantas vezes acreditar e dou por mim a ter de fazer um esforço para me convencer de que não, o João não pode vir jantar ao Reis nem acabar a noite no Botânico.
Não me lembro do que comíamos naqueles jantares nem sei sequer se o João gostava, mas o que me apetecia mesmo hoje era comer uma chanfana.
Com ele.

1 de março de 2010

sorte




Mesmo quando ela é grande, procuro sempre resistir à tentação de pensar "se ele vivesse noutro país...".
Pela simples razão de que se ele vivesse noutro país seria outra coisa, não necessariamente melhor nem pior, mas seguramente uma diferente coisa. E portanto não adianta especular sobre a projecção mediática que teria, sobre as multidões de fãs que o perseguiriam, sobre a divulgação planetária do seu trabalho, sobre a atenção com que seria escutado, sobre.
Penso isto de toda a gente, mas com particular intensidade em relação aos artistas, no meio dos quais tenho a sorte de viver desde há dez anos. Eles, que vivem de e para expressar as suas visões do mundo, fazem-no sempre a partir do ponto em que o observam. E são os primeiros a ridicularizar as fronteiras mentais em que insistimos em dividir a humanidade. Únicos e universais, sempre e por definição.
Dir-me-ão "está bem, abelha", mas imagina que o António Pinho Vargas norte-americano ou japonês. Os críticos a cair-lhe aos pés e a elogiar-lhe o génio, a criatividade, a sensibilidade, o romântico e o lúdico, o jazz e a erudição, a lucidez com que fala do sistema de criação e distribuição cultural, a humildade com que se entregou à investigação, a generosidade com que aceitou ser professor, a simplicidade com que se refere ao público. Imagina as sucessivas gerações a reconhecerem que a música dele as ajudou a alargar horizontes, lhes despertou sentimentos, as tornou mais felizes.
Respondo que temos isso tudo. Da "casa de granito no minho" ao "tom waits", do "lindo ramo, verde escuro" a "prelude to june (tabor)", de "cantiga prá maria" a "thelonius skizo sketch". O mundo todo, a arte toda, e mesmo à mão de semear.
Que sorte a nossa, não?