Por um lado, é bom saber que a responsável pela gestão do serviço público na cultura e na criação artística não embarca acriticamente no discurso das “indústrias culturais” e da rentabilidade do “sector criativo”. As coisas estão de tal maneira que nos apressamos a sublinhar e a recortar, para memória futura, o comentário que faz a mais um estudo sobre o peso da criatividade no PIB: “É preciso manter a cabeça fria e fazer uma leitura inteligente. Se os resultados são tão favoráveis para este sector, a verdade é que são de espectro muito largo, e aquilo que interessa agora é não desviar o enfoque de que o sector nuclear continua a ser a principal preocupação e deve ser o principal objectivo do MC”.
A primeira dúvida instala-se logo a seguir, com o primeiro ensaio de uma tal leitura “inteligente”: “Devemos olhar para essa forma de economia e tirar dela leituras de que precisamos para transformar o outro sector mais nuclear em actividade que contribua também para a riqueza do país”. Ou, mais concretamente, quando afirma que o MC não precisa de ter “um grande orçamento”, uma vez que “já há um mercado que reage positivamente às actividades do sector cultural”. Algo que é reforçado com as duas “linhas de actuação” do seu Ministério que mais desenvolve nesta entrevista: “linhas de crédito para as pequenas e médias empresas no sector cultural” e “linhas de crédito especiais para apoio de pequenas empresas que possam potenciar a manufactura e o artesanato português”. Tudo, claro, através da inevitável “transversalidade interministerial do MC com a Economia e o Turismo”. A “inteligência”, afinal, passa por criar mais uns nichos de mercado para o sector financeiro.
Por outro lado, todos poderemos subscrever frases como “o MC tem que ter a coragem de aplicar melhor as suas verbas e apostar na qualidade”. É verdade que a maioria dos projectos actualmente apoiados não tem condições para “um crescimento sustentado” e que isso coloca em causa a eficácia do investimento público – não em termos da sua rentabilidade financeira, mas sim no que diz respeito ao cumprimento dos objectivos, muitas vezes imateriais, que deveriam justificar este investimento.
As dúvidas surgem quando falamos das soluções para ultrapassar esta realidade. A Ministra opta pela mais fácil: “é preferível apoiar mais e melhor menos intervenientes do que espalhar pouco por muitos”. Atira-se o ónus do problema para a quantidade exagerada de agentes e não para a insuficiência das verbas. “Os fundos são o que são”, afirma. Não, senhora Ministra, os fundos são o que o seu Governo e o seu Ministério querem que sejam. E está por provar que haja artistas a mais em Portugal.
O mais desconcertante da entrevista reside, ainda assim, na forma como classifica a actual relação do Ministério com os agentes culturais que apoia: “tem havido alguma preocupação em satisfazer clientelas”; “vai-se permitindo que cada vez mais entidades entrem no sistema da subsídio-dependência”. Surpreende a ligeireza de tais afirmações e esta estranha aproximação às teses de Rui Rio, Zita Seabra, César das Neves ou Carlos Encarnação. Mas sobretudo choca a irresponsabilidade. Gabriela Canavilhas é livre de pensar o que bem entender. Enquanto Ministra da Cultura, no entanto, não pode limitar-se a constatar a existência de factos desta gravidade. Se os identifica, tem de actuar imediatamente para corrigir a situação, de preferência antes de tornar públicos estados de alma que só servem para desacreditar, junto da opinião pública, o trabalho e a idoneidade dos agentes culturais financiados pelo Estado.
Li a entrevista dando o benefício da dúvida que quase sempre acho que se deve dar a um/a governante em início de mandato. Mas perante uma pessoa que não quer discutir critérios para atribuição de financiamentos públicos (“estão a cargo dos júris”) e que apenas manifesta “vontade de reflectir” sobre ideias feitas (que ainda assim não se abstém de reproduzir e amplificar), a dúvida que me assalta é outra: o que quer esta Ministra?