1 de março de 2010

sorte




Mesmo quando ela é grande, procuro sempre resistir à tentação de pensar "se ele vivesse noutro país...".
Pela simples razão de que se ele vivesse noutro país seria outra coisa, não necessariamente melhor nem pior, mas seguramente uma diferente coisa. E portanto não adianta especular sobre a projecção mediática que teria, sobre as multidões de fãs que o perseguiriam, sobre a divulgação planetária do seu trabalho, sobre a atenção com que seria escutado, sobre.
Penso isto de toda a gente, mas com particular intensidade em relação aos artistas, no meio dos quais tenho a sorte de viver desde há dez anos. Eles, que vivem de e para expressar as suas visões do mundo, fazem-no sempre a partir do ponto em que o observam. E são os primeiros a ridicularizar as fronteiras mentais em que insistimos em dividir a humanidade. Únicos e universais, sempre e por definição.
Dir-me-ão "está bem, abelha", mas imagina que o António Pinho Vargas norte-americano ou japonês. Os críticos a cair-lhe aos pés e a elogiar-lhe o génio, a criatividade, a sensibilidade, o romântico e o lúdico, o jazz e a erudição, a lucidez com que fala do sistema de criação e distribuição cultural, a humildade com que se entregou à investigação, a generosidade com que aceitou ser professor, a simplicidade com que se refere ao público. Imagina as sucessivas gerações a reconhecerem que a música dele as ajudou a alargar horizontes, lhes despertou sentimentos, as tornou mais felizes.
Respondo que temos isso tudo. Da "casa de granito no minho" ao "tom waits", do "lindo ramo, verde escuro" a "prelude to june (tabor)", de "cantiga prá maria" a "thelonius skizo sketch". O mundo todo, a arte toda, e mesmo à mão de semear.
Que sorte a nossa, não?

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