Em Maio passado estive 10 dias em Luanda. Saí de lá com a sensação de que sei hoje muito menos sobre Angola do que sabia antes. Talvez seja por isso que só agora me veio a vontade de escrever alguma coisa sobre o assunto, numa espécie de reacção antecipada a muito do que por cá se vai dizer a pretexto das eleições de Setembro.
Embarquei ainda sob os efeitos de uma micro-polémica, iniciada pelas declarações de Bob Geldof sobre os “criminosos” que gerem Angola. Feitas sobre a corrupção praticada por membros do Governo, estas afirmações rapidamente deram azo a extrapolações sobre a falta de democracia em Angola, o despotismo do seu presidente e a inexistência de liberdade de expressão e de imprensa. Juntando a isto o que me diziam sobre a criminalidade nas ruas de Luanda, cheguei preparadíssimo para ver confirmadas, com os meus próprios olhos, as impressões sobre um país condenado, cuja população se dividia em dois: os coitados (pobres - criminosos - amordaçados) e os sacanas (ricos - corruptos - ditadores).
Sabendo que não ia ter oportunidade para sair de Luanda e que as pessoas com quem poderia falar pertenciam a um grupo restrito, decidi ouvir, sobretudo para além das respostas às perguntas que levava para fazer. Tenho hoje a sensação de que em Portugal se ouve pouco o que os angolanos têm para dizer sobre o seu próprio país, como se fossem um povo menor, incapaz de se pensar e de decidir sobre o seu rumo. Não sei se se trata de um resquício do passado colonial directo ou se isso apenas reflecte o tradicional euro-centrismo em que tantas vezes alinhamos na nossa forma de ver o mundo, independentemente de estarmos a falar de ex-colónias ou não. Mas não deixa de ser interessante constatar a facilidade com que se simplifica e se generaliza sobre os países africanos (quando não sobre todo o continente), por oposição aos cuidados e ao rigor que nos exigimos quando falamos dos “nossos”.
Foi a ouvir luandenses, por exemplo, que me apercebi como a classe média está a sofrer com o afastamento do centro da cidade, forçado pelos preços das novas casas, e se aglomera em gigantescos e crescentes subúrbios, tendo que se levantar às quatro da manhã para ir trabalhar. Foi a ouvi-los que percebi como são afectados pelo trânsito caótico, pela falta de estacionamento e pela inexistência de transportes públicos. Foi assim que descobri muita gente indignada pela destruição de alguns dos mais simbólicos edifícios da baixa e que não aceita passivamente a sua substituição pelas torres espelhadas. Foi assim que comecei a entender que o pó que se me agarrava à roupa não era afinal nenhum poético pó de terra africana mas antes um pó de cimento e lucro fácil, nascido no imenso estaleiro que é Luanda por estes dias mas igualzinho a tantos outros que já conhecia de Portugal e que há anos me irritam pele e garganta.
Foi também a ouvir luandenses que conheci algumas das mais absurdas idiossincrasias dos governantes angolanos, contadas com a ligeireza de uma anedota por quem sabe que não é aí que se joga o essencial. Assim ouvi críticas contra o desprezo votado ao interior do país, cuja população não cessa de engrossar os musseques e os subúrbios da capital. A ouvi-los me dei conta de uma conferência de imprensa da UNITA, que reclamava contra a retirada dos cartazes que havia afixado na avenida, e da resposta da administração provincial, que alegava não ter emitido a licença necessária. Foi a ouvir luandenses, no círculo anfitrião e apregoando nas ruas, que me dei conta de que o Jornal de Angola está longe de ser o único e que boa parte dos semanários publicados está longe de ser amigável para com o Presidente. Foi a ouvi-los que me esqueci do que por cá se dizia sobre a liberdade de expressão e de imprensa em Angola.
Foi a ouvir o director da escola que soube da política de abrir os liceus aos sábados para actividades desportivas e culturais, foi a ouvir a conversa das adolescentes de caderno na mão a caminho de casa que confirmei que podia andar sozinho na baixa. Foi por ouvir vários luandenses que me pareceram sérios os esforços para um recenseamento eleitoral bem feito e para uma ampla participação nas eleições. Foi ouvindo luandenses que me apercebi quão fartas de guerra podem ficar as pessoas e quão estimulante pode ser a força e a alegria de quem recuperou a esperança.
Angola é um país numa situação delicada e repleto de contradições. É estranho é que, em Portugal, seja preciso ouvir luandenses para o constatar. Não pelo passado, mas pelo presente, pelo país que vamos sendo, devíamos estar na primeira linha dos que melhor compreendem esta situação.
Há uns tempos, numa série de televisão, duas personagens conversavam sobre o estado pré-depressivo e angustiado em que ambas se encontravam. Uma delas remata a conversa: “Eu estou assim porque tenho cancro. E tu, qual é a tua desculpa?”.
Angola teve séculos de colonização, ajustes de contas, duas guerras civis e os abutres do petróleo e dos diamantes. Qual será a nossa desculpa?
(texto originalmente publicado no 100 lugares)
2 comentários:
Gostei imenso deste excelente e lúcido texto. Partilho, pela percepção que tive, e apesar da distância do tempo e de uma menor proximidade às pessoas, do que nele é dito. A noção com que a dado tempo fiquei foi a de um governo que, apesar de tudo (sublinhe-se, apesar de tudo), sabendo que vai ter exame, opta por se preparar, em lugar de se socorrer das cábulas ou da facilidade em copiar. É um exercício que se faz de modo controlado, sem dúvida, uma espécie de navegação à vista. Mas não corresponde, de facto, a muitas definições a preto e branco do estado das coisas.
Fico contente por se perceber que não sou dos que acha que o governo de Angola é "notável a todos os níveis", como dizia o outro.
Esta posição (recente e petro-orientada) é, aliás, apenas a outra face da moeda com que tendemos a estupidificar "os outros".
Felizmente, os luandenses com quem falei não se importam assim tanto com o que os portugueses pensam deles.
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