Este texto pretende ser uma (atrasadíssima) resposta ao artigo “Preocupações e encómios: a cultura em Coimbra”, publicado por Francisco Curate no Jornal de Notícias e no blog Daedalus (http://www.daedalus-pt.blogspot.com/) no final de Julho.
Acompanho com regularidade os textos que escreve – o suficiente para reconhecer a atenção que dedica a temas que me são próximos e para me considerar de acordo em relação a quase todas as suas opiniões. Foi aliás por isso que decidi reagir a esta crónica.
Francisco Curate tem escrito sobre a vida cultural de Coimbra e várias vezes denunciou a “desconsideração pela cultura (convicta e reiterada)” dos actuais responsáveis pela Câmara Municipal. Há alguns meses, foi mesmo um dos subscritores do manifesto “Pelo Direito à Cultura e Pelo Dever de Cultura!”, que mobilizou várias centenas de cidadãos na crítica à política cultural desta autarquia.
Talvez por causa desse desencanto que partilhamos com tantos outros habitantes da cidade, Curate, como eu, está particularmente predisposto a encontrar exemplos de sentido contrário, que nos permitam manter viva a esperança numa cidade diferente.
A necessidade de encontrar e realçar estes sinais é tão grande que frequentemente, mais por precipitação do que por ingenuidade ou desconhecimento, nos deixamos arrastar pelas vagas do que nos é mediaticamente imposto.
Só assim encontro justificação para os rasgadíssimos elogios aos donos do Hotel Quinta das Lágrimas, a propósito da inauguração de um anfiteatro ao ar livre nos seus terrenos – um novo “espaço cultural” que o hotel “entrega à cidade” e que poderá ser utilizado “gratuitamente” pelos agentes culturais conimbricenses. Na linha da panegírica cobertura jornalística do evento, Francisco Curate alonga-se, de facto, nos “encómios”: “Felizmente, agora vislumbro toda a inquietação, todo o desembaraço e todo o talento de um grupo de mulheres e homens que, protegido apenas pelas suas qualidades ingénitas, afeiçoam e compõem uma genealogia cultural de excelência numa cidade em que o poder autárquico declinou as suas funções de apoio à cultura”.
Ao ver as fotografias da nova “Colina de Camões” (assim se chama o recanto do jardim), perco-me em pormenores escondidos atrás da máquina: nos terrenos da Quinta alienados onde o betão floresce em arquitectura de mini-golfe, na mata cada vez mais pequena e acantonada entre arranjos paisagísticos, na apropriação privada de um capital simbólico da cidade – a história de Inês de Castro – por uma fundação dirigida pelos donos do hotel e para a qual, curiosamente, nunca são regateados fundos públicos.
Foco-me no entanto na palavra “grátis” – afinal, como Curate e boa parte dos que hoje cobrem estes eventos “culturais”, pertenço a uma geração que aprendeu a ler com o Tio Patinhas. É precisamente aqui, mais do que no facto de o anfiteatro ter um buraco com água no lugar do palco, que eu acho que estamos a ser enganados.
Como é que, na prática, se poderá processar esta “oferta”? Vejo uma de duas hipóteses: ou o hotel aceita acrítica e indiscriminadamente todos os pedidos e propostas de utilização que lhe são feitas ou estabelece, formal ou informalmente, um conjunto de critérios mínimos para seleccionar a programação do anfiteatro.
Contraditória com a (legítima) selectividade dos hóspedes do hotel, com a delicadeza do local (ao lado e à vista da Fonte das Lágrimas e da Fonte dos Amores) e com a marca de “excelência” que os responsáveis defendem existir nesta intervenção, a primeira opção parece muito pouco provável e, francamente, indesejável. Terão pois que existir critérios de escolha, definidos pelos proprietários. No exercício dos direitos que adquiriram com a licença para explorar comercialmente aqueles terrenos, os donos do hotel procurarão, espera-se, que a oferta de espectáculos neste novo recinto sirva para valorizar o empreendimento, alargando o leque de actividades ao dispor dos hóspedes e divulgando o local, atraindo a ele potenciais novos clientes.
A “oferta à cidade” transforma-se, afinal, num serviço que os artistas que lá vão actuar prestam à empresa que gere o estabelecimento hoteleiro, como o dos jardineiros que aparam o campo de golfe, o dos massagistas que trabalham no spa ou o dos cozinheiros que preparam as refeições no restaurante. Por mais bonitos que sejam os jardins da Quinta das Lágrimas, seria um pouco ridículo que eles nos fossem apresentados como uma oferta aos jardineiros da cidade para que estes ali trabalhassem sem ter que pagar. Por que razão há-de ser diferente com a cultura?
Retenho da cerimónia de inauguração uma frase do Presidente da Câmara, fotografado com o dono do hotel no piano onde, mais tarde, tocariam Mário Laginha e Bernardo Sassetti: em momentos destes, “é muito fácil ser presidente de câmara”, reconheceu agradecido.
Na verdade, não é. É até mais difícil e mais exigente, porque lhe cabe distinguir entre interesse público e interesse privado e clarificar o seu próprio papel nesta matéria.
Ele é que não sabe. Ou não quer saber.
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