9 de setembro de 2008

direitos

IAT
Maravilhoso! Maravilhoso! Devo assinalar, minhas senhoras
e meus senhores, para fazer justiça, que esta sala e todo o edifício
são excelentes. Magnífico, encantador! Mas sabem o que falta
para a perfeição completa? A luz eléctrica, desculpem a expressão!
Em todos os países já foi introduzida a luz eléctrica,
só a Rússia ficou para trás.


JIGÁLOV
(Com ar compenetrado.) Electricidade… Hum… Em minha opinião,
a luz eléctrica é apenas uma aldrabice… Atiram para ali
um pouco de carvão e pensam que nos enganam!
Não, meu caro, se nos vais dar luz, não nos dês carvão,
dá-nos antes qualquer coisa substancial, qualquer coisa especial,
que se possa agarrar! Dá-nos fogo — compreendes? —, fogo,
que é natural e não fruto da imaginação!


IAT
Se o senhor visse uma bateria eléctrica,
de que é que ela é feita, pensaria de outra maneira.


JIGÁLOV
E não quero vê-la. É uma trapaça. Enganam o povo simples…
Espremem-no até à última gota… Conhecemo-los, a esses tais…
E o senhor, meu caro jovem, em vez de defender essas aldrabices,
fazia melhor em beber e servir aos demais. Isso é que era!


Anton Tchékhov, “A Boda” (1890). Tradução A.P.


Numa crónica recentemente publicada na revista Visão (28/08/2008), Boaventura de Sousa Santos descreve o ataque cerrado de que está a ser alvo o Serviço Nacional de Saúde (SNS), em função dos interesses privados. Entre os bons exemplos que dá, destaco o caso do hospital público que decidiu aumentar a oferta de serviços especializados e da reacção do sector empresarial hospitalar, que “contestou esta decisão nos tribunais, com o fundamento de que, ao expandir os serviços públicos, se estava a pôr em causa as suas legítimas expectativas de expansão e lucratividade”.

É, de facto, “de bradar aos céus”. Mas o mais curioso é que o próprio Boaventura tenha sentido a necessidade de recorrer ao tema da justiça para ilustrar o direito à saúde. “Imagina-se que a Polícia Judiciária pudesse ser accionada em tribunal por, ao ampliar os seus serviços de investigação, estar a violar as legítimas expectativas dos detectives particulares?”

Mais do que a paz, do que a habitação, do que a educação, do que a assistência social, a saúde foi sempre o direito por excelência do estado social em Portugal. Apesar de todas as limitações e constrangimentos do SNS, das listas de espera, das pequenas e grandes promiscuidades entre público e privado, existiu (e, arrisco eu, existe ainda) um larguíssimo consenso quanto à universalidade deste direito e à responsabilidade do Estado em assegurá-la.

Perante exemplos como este, porém, não é mais necessário elaborar nenhuma teoria da conspiração para constatar que existe quem esteja, de facto, interessado em desestruturar, descredibilizar e, em última instância, destruir o serviço público de saúde. Do paradigma de que todos, independentemente dos seus níveis de rendimento, têm direito aos melhores cuidados de saúde possíveis (e de que, eventualmente, isso é compatível com os lucros de alguns), vamos paulatinamente passando para um outro, que postula que todas as áreas são passíveis de gerar lucro (mesmo que isso signifique que determinados tipos de assistência médica passem a ser exclusivos da parte da população que os pode pagar).

Esta mudança de paradigma está já tão entranhada no discurso público que mesmo quem a denuncia (como o insuspeitíssimo Boaventura de Sousa Santos) acaba por ser vítima dela, pressentindo que a defesa do direito à saúde necessita de exemplos de outras áreas para tornar mais claros os seus fundamentos.

Do ponto de vista da argumentação política, esta situação não é inócua. Quando ela ocorre com direitos que dávamos por adquiridos e definitivamente consagrados entre as justas expectativas da população, o que dizer dos direitos que nunca saíram de uma espécie de segunda divisão e que lutam, há anos, pelo seu efectivo reconhecimento como direitos sociais?
Quando falo do direito à cultura, entendido como o direito das pessoas à criação e fruição de uma significativa variedade de formas de expressão artística, lembro-me frequentemente do texto de Tchékhov acima transcrito. Na Rússia do final do século XIX (como aliás em Portugal), as virtudes da energia eléctrica só eram objecto de discussão porque as pessoas ainda não a tinham experimentado no quotidiano nem integrado no seu modo de vida. Hoje, acreditaria eu, ter electricidade em casa (como água canalizada ou como o saneamento) são direitos tão básicos que, mesmo quando não estão ainda cumpridos, são tidos como legítimas reivindicações e nenhum poder público as pode negar ou adiar indefinidamente.

Era aqui, e à educação, que eu chegava quando queria estabelecer metas e comparações para o direito à cultura, ainda a caminho da maioridade. A saúde, pensava eu, era de outro campeonato, uma espécie de último reduto dos direitos sociais, a referência (mesmo que utópica) para as restantes dimensões do ser humano que a sociedade deve promover para o seu próprio bem colectivo.

Constato, aflito, que até o direito à saúde tem por estes dias dificuldade em justificar-se por si próprio.

E perco, de uma só penada, as maternidades, as urgências e os exemplos.

5 de setembro de 2008

grátis



Este texto pretende ser uma (atrasadíssima) resposta ao artigo “Preocupações e encómios: a cultura em Coimbra”, publicado por Francisco Curate no Jornal de Notícias e no blog Daedalus (http://www.daedalus-pt.blogspot.com/) no final de Julho.

Acompanho com regularidade os textos que escreve – o suficiente para reconhecer a atenção que dedica a temas que me são próximos e para me considerar de acordo em relação a quase todas as suas opiniões. Foi aliás por isso que decidi reagir a esta crónica.

Francisco Curate tem escrito sobre a vida cultural de Coimbra e várias vezes denunciou a “desconsideração pela cultura (convicta e reiterada)” dos actuais responsáveis pela Câmara Municipal. Há alguns meses, foi mesmo um dos subscritores do manifesto “Pelo Direito à Cultura e Pelo Dever de Cultura!”, que mobilizou várias centenas de cidadãos na crítica à política cultural desta autarquia.

Talvez por causa desse desencanto que partilhamos com tantos outros habitantes da cidade, Curate, como eu, está particularmente predisposto a encontrar exemplos de sentido contrário, que nos permitam manter viva a esperança numa cidade diferente.

A necessidade de encontrar e realçar estes sinais é tão grande que frequentemente, mais por precipitação do que por ingenuidade ou desconhecimento, nos deixamos arrastar pelas vagas do que nos é mediaticamente imposto.

Só assim encontro justificação para os rasgadíssimos elogios aos donos do Hotel Quinta das Lágrimas, a propósito da inauguração de um anfiteatro ao ar livre nos seus terrenos – um novo “espaço cultural” que o hotel “entrega à cidade” e que poderá ser utilizado “gratuitamente” pelos agentes culturais conimbricenses. Na linha da panegírica cobertura jornalística do evento, Francisco Curate alonga-se, de facto, nos “encómios”: “Felizmente, agora vislumbro toda a inquietação, todo o desembaraço e todo o talento de um grupo de mulheres e homens que, protegido apenas pelas suas qualidades ingénitas, afeiçoam e compõem uma genealogia cultural de excelência numa cidade em que o poder autárquico declinou as suas funções de apoio à cultura”.

Ao ver as fotografias da nova “Colina de Camões” (assim se chama o recanto do jardim), perco-me em pormenores escondidos atrás da máquina: nos terrenos da Quinta alienados onde o betão floresce em arquitectura de mini-golfe, na mata cada vez mais pequena e acantonada entre arranjos paisagísticos, na apropriação privada de um capital simbólico da cidade – a história de Inês de Castro – por uma fundação dirigida pelos donos do hotel e para a qual, curiosamente, nunca são regateados fundos públicos.

Foco-me no entanto na palavra “grátis” – afinal, como Curate e boa parte dos que hoje cobrem estes eventos “culturais”, pertenço a uma geração que aprendeu a ler com o Tio Patinhas. É precisamente aqui, mais do que no facto de o anfiteatro ter um buraco com água no lugar do palco, que eu acho que estamos a ser enganados.

Como é que, na prática, se poderá processar esta “oferta”? Vejo uma de duas hipóteses: ou o hotel aceita acrítica e indiscriminadamente todos os pedidos e propostas de utilização que lhe são feitas ou estabelece, formal ou informalmente, um conjunto de critérios mínimos para seleccionar a programação do anfiteatro.

Contraditória com a (legítima) selectividade dos hóspedes do hotel, com a delicadeza do local (ao lado e à vista da Fonte das Lágrimas e da Fonte dos Amores) e com a marca de “excelência” que os responsáveis defendem existir nesta intervenção, a primeira opção parece muito pouco provável e, francamente, indesejável. Terão pois que existir critérios de escolha, definidos pelos proprietários. No exercício dos direitos que adquiriram com a licença para explorar comercialmente aqueles terrenos, os donos do hotel procurarão, espera-se, que a oferta de espectáculos neste novo recinto sirva para valorizar o empreendimento, alargando o leque de actividades ao dispor dos hóspedes e divulgando o local, atraindo a ele potenciais novos clientes.

A “oferta à cidade” transforma-se, afinal, num serviço que os artistas que lá vão actuar prestam à empresa que gere o estabelecimento hoteleiro, como o dos jardineiros que aparam o campo de golfe, o dos massagistas que trabalham no spa ou o dos cozinheiros que preparam as refeições no restaurante. Por mais bonitos que sejam os jardins da Quinta das Lágrimas, seria um pouco ridículo que eles nos fossem apresentados como uma oferta aos jardineiros da cidade para que estes ali trabalhassem sem ter que pagar. Por que razão há-de ser diferente com a cultura?

Retenho da cerimónia de inauguração uma frase do Presidente da Câmara, fotografado com o dono do hotel no piano onde, mais tarde, tocariam Mário Laginha e Bernardo Sassetti: em momentos destes, “é muito fácil ser presidente de câmara”, reconheceu agradecido.

Na verdade, não é. É até mais difícil e mais exigente, porque lhe cabe distinguir entre interesse público e interesse privado e clarificar o seu próprio papel nesta matéria.

Ele é que não sabe. Ou não quer saber.