25 de setembro de 2009

Cícero


A vantagem de ter passado dos trinta anos sem ter lido o que devia é que de vez em quando me surpreendo com descobertas tardias.

Tenho agora nas mãos o Tratado da República, de Cícero. Nele encontro uma das mais belas e simples fundamentações da nobreza da política: “não existe nenhuma ocupação na qual a virtude humana esteja mais próxima da capacidade dos deuses do que fundar novas cidades ou conservar as já fundadas”.

Tal empreendimento há-de pois convocar o melhor de nós. “É que a pátria – escreve ele – não nos gerou e educou na condição de não esperar de nós como que alimento algum (…), mas na condição de ser ela a receber os mais numerosos e melhores recursos do nosso espírito, do nosso engenho e do nosso discernimento, e de conceder, para nosso uso privado, somente o que lhe fosse supérfluo”. Dois mil e sessenta anos e a humildade de quem sabe que há mais mundo para lá do mundo que as fronteiras definem como nosso impelem-me a ler interesse público onde Cícero escreveu “pátria”. Mas não retiram um milímetro à pertinência do princípio.

Tal empreendimento há-de, também, convocar os melhores de nós. Que nem sempre estão disponíveis: “É o caso de dizerem que geralmente singram na carreira política homens que não são dignos de nada de bom, com os quais é sórdido comparar-se e aos quais é deplorável e perigoso fazer oposição, particularmente com a multidão excitada; e que por esse motivo, não é próprio de um sábio tomar as rédeas quando não pode refrear os insanos e indomáveis ímpetos do vulgo, nem próprio de um homem livre confrontar-se com adversários impuros e desumanos e sujeitar-se ao ultraje das afrontas ou expor-se a injúrias insuportáveis para um sábio.” Como se, remata, “para homens bons e fortes e dotados de uma alma grande, houvesse mais justa razão para seguir uma carreira política do que não terem de obedecer a ímprobos nem permitirem que por estes mesmos o Estado seja dilacerado.”

Leio agora homens e mulheres onde Cícero escreveu só homens e poupo-lhe a desfasada crítica. Penso como na verdade é raro que estas pessoas boas e fortes e dotadas de uma alma grande se mostrem disponíveis para a causa pública. Penso na sorte que temos quando se torna possível que elas assumam lugares de relevo. E na necessidade de aproveitar as poucas oportunidades de que dispomos para eleger quem faça a diferença.

Penso, neste mês eleitoral, em José Manuel Pureza e em Catarina Martins. Em tudo o que já fizeram e no mais que podem fazer. Nas qualidades humanas que os distinguem e na generosidade e desapego com que se entregam à(s) causa(s). Nos valores por que se guiam e naquilo que nos oferecem.

Penso, também, no facto assumido de serem meus amigos. Uma fraqueza sua, para felicidade minha.

25 de junho de 2009

O interesse público da criação artística

Nuno Serra e Pedro Rodrigues
Comentário à proposta de programa eleitoral do Bloco de Esquerda (Capítulo 7 - Abrir a sociedade de informação e da cultura), publicado AQUI





Concordando no essencial com a proposta de programa do Bloco de Esquerda no que diz respeito às políticas culturais, consideramos que a sua actual formulação não clarifica suficientemente o interesse público da criação artística. Nem do ponto de vista da sua produção - enquanto garante e manifestação por excelência da liberdade de expressão dos indivíduos mas também do património imaterial da sociedade - nem do ponto de vista da sua recepção por parte dos públicos - enquanto factor de enriquecimento cultural, com consequências no grau de literacia, de cosmopolitismo e de humanismo dos indivíduos.

Encontramos com frequência potenciais contradições entre as afirmações de princípio (que subscrevemos na íntegra) e as medidas práticas preconizadas, umas vezes demasiado ambíguas, outras com tendência para submeter a criação artística a lógicas instrumentais que a ela são alheias - o turismo, a valorização do património histórico, a rentabilização dos equipamentos e dos investimentos públicos.

Consideramos assim que capacitar a cultura enquanto realidade sistémica, conferindo-lhe um sentido estruturado e estruturante e uma materialidade concreta e delimitada em termos de política pública, deverá constituir uma das ideias fortes e centrais do programa do Bloco para o sector. Trata-se, no fundo, de equacionar a adequada relação entre cultura e território, fundada no princípio do direito ao acesso a bens culturais e assente num sistema de recursos, equipamentos, estruturas e projectos, que assume um conceito de rede que não se restringe a lógicas de interacção relativamente efémera entre estruturas e agentes, nem se subsume no conceito de "turismo cultural".



Ambiguidades que subsistem

Apesar de se afirmar que as redes não podem ser "fins em si mesmo" e de se defender "um mínimo de estabilidade" para os pólos em que elas devem assentar, alertando-se para a sua potencial perversidade, a proposta de programa não especifica as formas defendidas para reforçar tais pólos, sejam eles equipamentos físicos, sejam estruturas de criação espalhadas pelo país. Mantém-se uma crença exagerada no efeito descentralizador do conceito de rede (muito à semelhança do que tem sido o discurso dos governos do bloco central, quer em Portugal, quer à escala europeia), sem acautelar as condições em que as zonas mais fragilizadas podem efectivamente participar neste modelo. A defesa de "apoios à itinerância e à descentralização", por exemplo, seria com vantagem substituída pela defesa de orçamentos condignos para os teatros e centros de arte que existem do país, dotando-os de condições para que cumpram a sua missão de serviço público de forma autónoma, responsável e responsabilizável. As redes (e a poupança de custos que permitem - porque é essencialmente para isso que servem) devem ser encaradas como forma de melhorar e complementar um bom funcionamento e nunca como mecanismos para disfarçar - perpetuando-as - fragilidades crónicas.

Por outro lado, o leque de entidades que se supõe deverem integrar o domínio alargado das redes defendido no programa é muito poroso e abrangente, ao atender de modo pouco significativo à necessidade de adequar a natureza das entidades às finalidades de uma política estruturada e coesa de apoio às iniciativas culturais (o que é, por exemplo, o terceiro sector em termos culturais - o que é que ele integra?). Esta amplitude e indefinição pode contribuir perigosamente para a assumpção de um conceito excessivamente difuso de redes, que pouco favorece o objectivo da sua organização sistémica, estruturada e claramente definida.

O reforço do investimento público na criação artística está bem defendido na proposta de programa, mas será necessária uma alteração substancial nos critérios e no modelo de financiamento directo da criação artística, que o texto enuncia sem concretizar. Tal reforço - defendemos - só será eficaz se for acompanhado de uma clarificação dos fins a que se destina o investimento: separando apoios à criação artística de apoios à programação (princípio programático do actual governo objectivamente desrespeitado), bem como distinguindo categorias de beneficiários - estruturas de criação artística consolidadas e com potencialidades comprovadas, estruturas em fase de consolidação, artistas individuais e novos criadores. Todos eles têm um papel específico a desempenhar no sistema artístico nacional, mas têm responsabilidades, encargos e necessidades diferenciados. Devem, por isso, ser objecto de diferentes tipos de contratualização com o Estado e sujeitos a diferentes tipos de avaliação, que tenham em conta as especificidades (de área artística, de dimensão, de ambição, de localização geográfica) de cada caso particular.

De igual modo, a necessária revisão da legislação laboral no sector artístico e em áreas afins verá confirmada a sua ineficácia caso não seja precedida de uma intervenção estatal no mercado "empregador", onde predominam entidades sem fins lucrativos e em regime de mera sobrevivência. O reforço das estruturas de criação (garante da estabilidade do "mercado laboral" neste sector de actividade) afigura-se uma vez mais como indispensável não só para a prossecução dos objectivos de serviço público que devem nortear uma política de esquerda para a cultura, como para a própria garantia dos legítimos direitos dos profissionais da criação artística. No actual panorama da criação artística independente financiada pelo Estado, não é possível defender trabalhadores sem defender os empregadores.



A instrumentalização da criação artística

Compreende-se e elogia-se o reconhecimento dos efeitos benéficos da criação artística noutras áreas, como o turismo. Poder-se-ia até ir mais longe, reflectindo sobre os estudos que evidenciam o impacto económico das "indústrias criativas". Julgamos, no entanto, não ser este o objectivo de uma política cultural e que não deve ser essa a preocupação do Ministério da Cultura ao definir as suas prioridades - será, talvez, a do Ministério da Economia. Aliás, todas as propostas que possam legitimar processos de "diluição" da cultura no conjunto das políticas públicas, mesmo as propostas bem intencionadas, correm seriamente o risco de perpetuar, e até agravar, a irrelevância a que o sector tem sido sistemática e dramaticamente sujeito nos últimos anos.

Neste sentido, "fomentar a descoberta de novos temas culturais ou de objectos pouco explorados no mercado turístico" constitui uma clara instrumentalização da criação artística - fomentar uns temas significa desvalorizar outros - e é aliás contraditório com o princípio, correctamente enunciado no programa, de que a criação cultural "deve prosseguir fins que lhe são intrínsecos".

Do mesmo modo, não se percebe a tónica colocada na dimensão festiva e nas "artes de rua" ou na "arte pública" como estratégia de valorização dos "sítios culturais e patrimoniais". A que propósito? Porquê a festa? Porquê artes de rua? Porquê, sequer, artes performativas associadas ao património? Do mesmo passo, desacredita-se a capacidade de atracção dos sítios patrimoniais enquanto tal e reduz-se a criação artística ao papel de mera animação cultural. É claro que já todos nós assistimos a concertos memoráveis em castelos medievais e a magníficas peças de teatro em edifícios pombalinos e a exposições muito bem enquadradas em conventos quinhentistas. Mas também todos nós já assistimos a grandes barbaridades, pseudo-artísticas e pseudo-históricas, nos mais belos sítios patrimoniais deste país. Se calhar, até levaram muita gente a conhecer tais sítios e mantiveram-nos animados. Mas é isso que se quer da arte? Também o património tem um valor intrínseco, que deve ser valorizado e dignificado. Cabe a uma política de esquerda recusar abertamente a dicotomia inventada pela direita, que pretende opor património histórico à criação artística contemporânea. Ambos têm necessariamente que co-existir e ser dignamente financiados, sem que seja obrigatório (nem proibido) fazer teatro nas ruínas nem colocar estátuas num espectáculo de dança.

Também não se entende a desproporcionada preocupação com a criação de "novos profissionalismos", nomeadamente na intermediação e na mediação cultural. A distância que separa as criações artísticas (e os seus autores) dos seus públicos (de todos os públicos) tem sido artificialmente empolada por preconceitos que se reproduzem continuamente - na escola, na comunicação social, nos discursos políticos. Existe hoje, de facto, um número razoável de jovens formados em animação cultural, vítimas de uma proliferação não pensada de cursos universitários nesta área. Confrontam-se com sérias dificuldades quanto à sua inserção no mercado profissional, precisamente porque este é deficitário e porque a sua formação é desadequada. Acabam na maior parte das vezes por trabalhar no sector da assistência social (para o qual, aliás, estarão melhor apetrechados), saindo portanto do âmbito da discussão sobre política cultural. Mais importante do que criar estas carreiras, acreditamos, é articular com o Ministério da Educação e com o Ministério do Ensino Superior a criação e a consolidação de cursos nos diferentes graus de ensino (do secundário ao superior) em áreas claramente deficitárias em Portugal: para além das áreas artísticas propriamente ditas, as áreas que a ela estão directamente associadas - técnica de palco, cenografia, produção e gestão cultural, entre outras.



Administração central e autarquias

O programa pretende (e bem) ser o mesmo para as duas eleições que se avizinham - autárquicas e legislativas. A política cultural é um dos domínios onde mais urgente é a articulação entre os dois níveis de governação e isso não é claro na actual formulação do documento.

A proposta de celebração de contratos-programa entre Governo e autarquias para enquadrar a actividade das estruturas de criação (sobretudo as que estão sediadas fora de Lisboa) e o funcionamento dos equipamentos culturais públicos nas principais cidades médias do país parece-nos um exemplo claro dessa articulação. Deve atribuir-se ao Ministério da Cultura uma dotação orçamental específica para este tipo de intervenção, capaz de dar resposta ao papel estruturante e organizador do território que se atribui a tais contratos.

Do mesmo modo, será importante definir e criar mecanismos locais de acompanhamento das políticas autárquicas em matéria cultural, que incluam e estimulem a participação dos agentes das diferentes áreas e intervenham no desenho dos protocolos a celebrar entre o poder local e a Administração Central.



Notas

Deixamos, finalmente, duas sugestões de pormenor que pretendem contribuir para a clarificação do sentido do texto:

- Na primeira frase (pág. 121), sugerimos: "As políticas de igualdade para a cultura assentam em princípios fortes de democracia, liberdade e consolidação do direito universal de acesso à arte e aos bens culturais";

- No primeiro tópico de propostas (pág. 126), em relação à consagração de 1% do OGE, sugerimos que se substitua "à fileira da cultura" por "ao Ministério da Cultura". Exemplos recentes de argumentação do actual Ministro, que procurou justificar os cortes no seu Ministério com uma suposta "transversalidade" do financiamento público ao sector, recomendam que sejamos claros nesta matéria e que não deixemos portas abertas para a desresponsabilização das entidades que têm a obrigação de dirigir as políticas culturais.

4 de abril de 2009

retrocesso

“Isto é completamente asfixiante.
Nós não só não podemos crescer, como
ainda por cima temos que voltar para trás”.

Paulo Ribeiro, Diário As Beiras, 01/04/09.





Paulo Ribeiro, director artístico de um dos exemplos mais bem conseguidos de descentralização cultural do país – o Teatro Viriato (TV), em Viseu – denunciou esta semana o carácter “patético” do actual sistema de financiamento público das artes. Tem toda a razão.

No concurso realizado (que determina o financiamento do Estado entre 2009 e 2012), o TV sofreu um corte de 10% em relação ao que vinha recebendo desde 2002. Essa verba irá subindo ao longo dos próximos quatro anos e, em 2012, o Teatro (equipamento público, co-financiado pelo Ministério da Cultura e pela Câmara Municipal de Viseu) receberá exactamente o mesmo valor que recebia dez anos antes. Há casos similares: a companhia de teatro em que trabalho, por exemplo, receberá em 2009 o mesmo que recebeu no ano da sua fundação, em... 1992. Lembram-se do vosso ordenado há dezassete anos atrás? Experimentem viver com ele em 2009.

Poder-se-ia dizer que os resultados do concurso seriam o reflexo da avaliação do júri. A uma diminuição da qualidade do trabalho corresponderia uma diminuição do financiamento público. Não é verdade: o trabalho do TV foi reconhecido e elogiado pelos especialistas contratados pelo Ministério. Há outros casos caricatos: na Região Centro, a companhia de teatro que vai receber mais dinheiro teve uma classificação mais baixa em todos os critérios que foram avaliados pelo júri do que as que recebem o segundo e o terceiro maior financiamento. O paradoxo explica-se pelo absurdo da fórmula matemática que o Ministério resolveu inventar e que já antes havia sido criticada. Trata-se de um produto de três factores: avaliação do júri (nota de 1 a 100), o montante solicitado (definido pelo orçamento apresentado pelos candidatos) e a “razoabilidade do montante solicitado” (classificada pelo júri numa escala de 1 a 100, à luz de critérios que não foram clarificados). Daqui resulta que um projecto de menor qualidade (segundo a avaliação do júri) possa receber mais dinheiro do que outro que tenha tido melhor nota, desde que o seu orçamento (e correspondente pedido de financiamento) seja mais elevado. Mas resulta, também, que nenhum projecto recebe aquilo que pediu – os outros factores actuam sobre o montante solicitado e diminuem-no sempre. Resulta, portanto, que por melhor que fosse o projecto este nunca iria ter condições para ser bem desenvolvido. Em termos de racionalidade e de eficácia do financiamento público, estamos conversados.

Coreógrafo e director de programação com provas dadas, Paulo Ribeiro defende ainda: estruturas como o Teatro Viriato “já não deviam ir a concurso, deveriam ter uma espécie de contrato-programa”. No falso processo de participação pública que antecedeu esta legislação, houve quem falasse disso, lamentando que o actual governo tivesse retrocedido em relação aos seus planos iniciais. O resultado está à vista: não só não se apoia convenientemente os “novos criadores” como se consegue desestabilizar as poucas estruturas que estavam em vias de consolidação.

25 de março de 2009

demagogias

O anúncio da Antena Um é demagógico. Uma rádio pública não devia promover-se com demagogia.

Por mim, a história acabava aqui. Não vejo neste anúncio mais do que o “chico-espertismo” de um/a publicitário/a que achou graça à brincadeira. Imaginar o gabinete de Sócrates a encomendar um anúncio para “malhar” nos sindicatos ou a administração da RTP a lamber assim as botas do Governo é coisa que, perdoem-me a ingenuidade, não consigo.

Por outro lado, se a mensagem é demagógica é porque vai ao encontro daquilo que é mais provável que as pessoas pensem. A par do mau gosto, quem teve esta ideia demonstrou, afinal, que está atento/a à “voz do povo”: anda de autocarro, vai a barbearias, ouve as conversas no café e as opiniões dos ouvintes nos programas de rádio. A chalaça do anúncio é politicamente incorrecta, mas reproduz os lugares comuns e os preconceitos que ouvimos diariamente na rua. Por isso é comercialmente atractiva.

Muito mais do que um/a publicitário/a armado em parodiante e uma empresa pública esquecida do seu estatuto, incomoda-me a falsa ideia de respeito pelos direitos dos outros que alastra em Portugal. Defendemos o direito à greve e às manifestações, mas à primeira escola ou rua fechada desvalorizamos as razões de quem protesta. Lembremo-nos, por exemplo, da conotação da expressão “funcionário público” ou das reacções descabeladas perante a ameaça de uma greve aos exames por parte dos professores. As razões para o protesto são, em primeira instância, individuais. A maior parte das lutas faz-se da conjugação de várias questões individuais, unidas pelo mesmo denominador comum. São solidárias do ponto de vista interno (porque a percepção de que a união faz a força é imediata), mas nem sempre para o exterior: o bancário com excesso de trabalho reclama com o funcionário público que sai às cinco e ainda se queixa, o desempregado fabril protesta com o professor que não quer é trabalhar, o taxista despreza o motorista dos autocarros, que ao menos tem ordenado certo. Um país em luta não é necessariamente um país mais solidário.

Às vezes, ser solidário é tão simples quanto aceitar o protesto dos outros, mesmo que isso custe uma hora no trânsito ou uma ida em falso ao exame da escola. O anúncio da Antena Um não o é. E o país?


Admiro o trabalho de Eduarda Maio há vários anos. Dois dos seus actuais programas – a Antena Aberta e o Conselho Superior – são particularmente exigentes quanto à isenção e à resistência à demagogia. Nunca ouvi ninguém criticar o seu trabalho jornalístico. São muito injustos os comentários que visam diminuir a sua credibilidade profissional, procurando ligar a locução neste anúncio ao facto de ter escrito a biografia de José Sócrates e a uma suposta proximidade com o PS ou com o Governo. Mesmo que esta proximidade (ou simpatia, ou o que for) seja verdade (o que não é evidente), ninguém tem nada a ver com isso. Pelo contrário, o seu profissionalismo deve ser ainda mais realçado: ela não mistura as coisas. Não as misturemos nós também.

24 de março de 2009

cidadões



O fenómeno não é recente e estará, suponho, suficientemente estudado. Mas não deixa de fazer novas vítimas. Em política, determinados conceitos são tão gastos que deixam de ter significado.

Um dos exemplos é o “desenvolvimento estratégico”. Atrevo-me até a pedir aos candidatos autárquicos na minha cidade que, nas próximas eleições, resistam a utilizar esta expressão e evitem denunciar a “falta de estratégia” dos adversários. Os termos foram utilizados com tanta frequência em ocasiões anteriores, referindo-se a ideias concretas tão diferentes, que se banalizaram e tornaram irrelevantes. Hoje, já ninguém sabe o que querem dizer e, provavelmente, já não querem dizer nada.

Há dias, sentado numa loja do dito, ocorreu-me que se passa o mesmo com o conceito de “cidadão”. Independentemente do percurso histórico da palavra, lembro-me bem da primeira vez que me confrontei a sério com ela. Estava em plena adolescência, num país onde os partidos falavam para “eleitores”, uns, ou para “trabalhadores”, outros. Eu, que era estudante e não tinha idade para votar, deixei-me facilmente seduzir pela radicalidade com que a Política XXI se dirigia aos “cidadãos” e os defendia informados e participativos em relação aos processos de governação.

Numa perspectiva optimista, diria que muita coisa mudou desde então em matéria de participação pública em Portugal. E que o contributo da Política XXI para essa mudança, apesar dos resultados que obteve nas únicas eleições a que concorreu em nome próprio (as europeias de 1994), está até hoje por avaliar. Não há hoje nenhum partido que não defenda a necessidade de uma maior proximidade entre governantes e governados; há mecanismos de participação popular a ser testados e aplicados em vários contextos por todo o país; as rádios e as televisões oferecem grandes tempos de antena aos seus auditórios; as novas tecnologias proporcionam múltiplos mecanismos de expressão pessoal e colectiva. A opinião pública tornou-se, sem dúvida, mais pública (ainda que não necessariamente mais informada ou mais democrática).

Nos corredores do moderno edifício onde aguardava a minha vez, com a senha 42 na mão e rodeado de cartazes a publicitar o “cartão do cidadão”, inclinei-me, contudo, para a versão pessimista. O Estado apoderou-se do conceito e burocratizou-o. “Cidadão”, com loja própria e cartão próprio e senhas próprias e filas próprias, é hoje apenas um rótulo para designar um tipo específico de consumidor: um consumidor de bens e serviços essenciais, como a água, a luz, a protecção social, o emprego. Com direitos, sim, mas um mero consumidor.

A cidadania de sala de espera que se vende nestas repartições é, na melhor das hipóteses, uma versão muito empobrecida da ideia que me entusiasmou há 15 anos atrás. E enganadora: ela disfarça o caminho que falta fazer, oferecendo-nos cartazes com pessoas sorridentes, cartões plastificados e cadeiras alinhadas. Agora, temos ainda mais uma tarefa: a de inventar uma nova palavra para designar o que queremos.

17 de março de 2009

criação

[texto originalmente publicado no amplo e inédito debate promovido pelo Bloco de Esquerda]



Quanto mais alargados forem os mecanismos para a prática e a fruição artísticas, mais informada, mais crítica, mais participativa, mais cosmopolita será a comunidade e mais justo e democrático será o seu desenvolvimento. Aqui reside o interesse público da criação artística e se fundamenta a intervenção do Estado.
Iniciada com décadas de atraso em relação a outros países europeus, a actuação do Estado português neste domínio tem sido envergonhada nos propósitos e limitada nos recursos, assentando numa contradição que continua por sanar: ao mesmo tempo que destina verbas para financiar a criação artística, o próprio Estado alimenta práticas e discursos que menorizam público e criadores.

liberdade, igualdade e criatividade
Como qualquer sector de actividade que implique meios humanos e materiais, a criação artística será sempre financeiramente dependente – do Estado ou do mercado. Cabe a uma política de esquerda reconhecer que só o Estado pode garantir a igualdade de todos no acesso à criação artística, independentemente dos seus recursos económicos ou da zona de residência, e que só o financiamento público pode assegurar a sobrevivência dos sectores da criação em relação aos quais o mercado não responde de forma suficiente. Ao contrário do que se afirma no programa do actual governo, só a intervenção do Estado, contratualizada e transparente, garante a liberdade no sector criativo – é ao Estado que devemos exigir o respeito pela universalidade dos direitos individuais e colectivos e é em relação ao Estado que, numa sociedade democrática, as cidadãs e os cidadãos dispõem dos mais eficazes mecanismos de fiscalização.
A meta simbólica do 1% do Orçamento de Estado, prometida e desrespeitada por sucessivos governos, mantém-se como referência mínima a alcançar com urgência e constitui um sinal político de enorme relevância que um programa de esquerda não pode deixar de concretizar.

transversalidade e irresponsabilidade
Pela natureza da actividade artística e pelos resultados multi-facetados da sua difusão, é frequentemente defendida a necessidade de uma intervenção transversal por parte do Estado. As ligações com outras áreas de governação (a educação, o turismo, a economia) não podem no entanto servir para disfarçar o sub-investimento na criação artística, remetendo-a para uma “terra de ninguém” onde todos são co-responsáveis mas ninguém se responsabiliza. Uma política para a igualdade reforça o papel específico do Ministério da Cultura na gestão da intervenção pública no domínio artístico e encara todas as colaborações com outros sectores como formas de complementar, maximizar e rentabilizar o investimento directo entretanto feito.

as redes precisam de nós
De igual modo, o trabalho em rede não deve ser um fim em si mesmo, num contexto em que os pólos em que tais redes deveriam assentar (os nós que podem sustentá-las e alimentá-las) estão fragilizados e a tentar sobreviver. Sem que esses pólos tenham um mínimo de estabilidade, as redes criadas por decreto transformar-se-ão, perversamente, em mecanismos que acentuam as desigualdades entre estruturas mais e menos consolidadas e entre regiões do país com níveis de desenvolvimento artístico muito diferenciados. Em matéria de descentralização da criação artística (elemento indispensável à descentralização “cultural”), será necessário:
contratualizar com estruturas de criação e criadores individuais estrategicamente distribuidos pelo território contratos-programa que lhes permitam desenvolver o seu trabalho em condições temporais e financeiras razoáveis e que tenham em conta as especificidades locais;
criar um programa específico para o apoio à programação de espaços culturais, tirando partido das infra-estruturas entretanto criadas e rentabilizando o investimento feito na criação artística;
alargar o sector público da criação artística, actualmente limitado a Lisboa e Porto, integrando-o numa lógica de desenvolvimento das principais cidades médias do país.

para além do dinheiro
Uma política para a igualdade no domínio da criação artística vai necessariamente além do reforço orçamental. Reconhecido, de facto, o interesse colectivo desta actividade, compete ao Estado e aos seus responsáveis combater por todos os meios as representações simbólicas que têm ajudado a criar entre a população, como os discursos da subsídio-dependência ou do elitismo. Uma mudança de paradigma (aqui sim) transversal a todas as áreas e escalas de governação, com particular destaque para o papel da educação, assumindo a formação de públicos como um dever colectivo e não como uma responsabilidade dos criadores.
Inclui-se nesta mudança:
a universalização do ensino das várias expressões artísticas desde o ensino pré-escolar e ao longo de todos os níveis de escolaridade;
a disponibilização de meios de informação e divulgação das iniciativas artísticas financiadas pelo Estado nos órgãos públicos de comunicação social.