12 de março de 2010

joão

Há mais de um ano que não ia ao Reis.
Voltei lá um dia destes, à hora do jantar, com dois amigos, direitos à sala de cima. Perante a sugestão da petinga com arroz de feijão, um dos meus amigos, timorense, perguntou, a sorrir mas com pouca esperança, se não haveria chanfana. "Lembro-me como se fosse hoje - confidenciou logo a seguir - da primeira vez em que comi chanfana. Foi aqui, nesta sala". O empregado não disse nada, habituado às marcas que o espaço e as pessoas que o frequentam deixam na memória dos seus clientes.
Quando as petingas chegaram, fizemos contas: a chanfana é o prato favorito do meu amigo timorense há 15 anos. Brindámos. À lembrança dessa tarde e do que ela havia permitido, ao reencontro profissional, aos projectos novos, aos desejos de felicidade - os nossos, os dos povos e até os de alguns governantes bem-intencionados.
Uma avaria qualquer na máquina fez com que tivesse de vir pagar cá abaixo. Olhei à volta enquanto aguardava pelo talão do multibanco. Foi aí que vi a fotografia do João pendurada na parede. Ao princípio fiquei chocado. Ao lado do João, mais cinco ou seis fotografias de clientes habituais do restaurante, numa composição de gosto discutível. Depois sorri. O João, o mais vivo e bem-disposto dos meus amigos, haveria de rir-se muito apenas de imaginar que alguém colocaria assim, ali, uma fotografia sua. Por fim, chorei. Porque a foto é uma homenagem a um amigo da casa, porque o João havia de reconhecê-lo e deixá-la ficar por simpatia, porque a foto não ri nem fala nem abraça, só lembra.
Lembra-me, por exemplo, de que foi naquele mesmo restaurante que tive os primeiros jantares com o João, mais ou menos pela altura em que o Zé provava a chanfana. Lembro-me como se fosse hoje, posso também dizer, das intermináveis conversas que eu sorvia como se não houvesse amanhã. Lembro-me de ele fazer perguntas, de se interessar pelo que nós, uns putos, tínhamos para dizer. Acho que devo ao Tó-Zé a participação nesses jantares. Íamos para a sala do fundo, salvo erro às quartas-feiras, e saíamos de lá tardíssimo, com as injustiças do mundo por resolver, é certo, mas mais seguros do que podíamos fazer, cada um de nós e em conjunto, para lutar contra elas.
Generoso como era, o João achava graça à nossa ingenuidade. E incentivava-nos a testá-la, a acreditar no que dizíamos, a experimentar aquilo em que acreditávamos. Mas não ficava só a ver. Ia connosco, aparecia, perguntava, ouvia, respeitava, participava. E tinha sempre o tempo todo para toda a gente, fazendo de cada pessoa com quem se cruzava a pessoa mais importante do mundo.

Lembram-me outros bons amigos que faz agora um ano que o João deixou de vir ter connosco. Lembro-me como se fosse hoje de onde e por quem recebi a notícia. De como ela era esperada e de como ainda assim não queríamos acreditar. Lembro-me, porque ainda hoje me custa tantas vezes acreditar e dou por mim a ter de fazer um esforço para me convencer de que não, o João não pode vir jantar ao Reis nem acabar a noite no Botânico.
Não me lembro do que comíamos naqueles jantares nem sei sequer se o João gostava, mas o que me apetecia mesmo hoje era comer uma chanfana.
Com ele.

1 comentário:

Natc disse...

Tâo comovente, Pedro, este seu belo texto!
Sabe que o que me dói mesmo são assim essas pequenas grandes coisas que patilhávamos: a conversa os almoços ou jantares em companhia do João com a alegria serena,tranquila de quem estava ali para sempre...