O Bolaño anda há meses a matar mulheres na minha mesa de cabeceira. A coisa percebe-se melhor lendo as reportagens da Alexandra Lucas Coelho que saíram no Público no verão passado, mas ainda assim. Ele e eu somos um deserto demasiado árido e foi preciso dar umas escapadelas para descobrir outros sentidos.
Por altura do Santo António, fiz com que me chegasse às mãos o mais novo livro do Abel Neves. A capa, divertida, engana. O primeiro conto prega-nos uma partida e percebemos só depois que é afinal um aviso.
Entramos em "Aliança" como quem está de férias. Por várias páginas nos deixamos ficar na praia, ora invejando a iniciativa de Beatriz, ora partilhando a surpresa de Tiago. É muito lentamente que o mar se encrespa e que, com ele, nos vamos acinzentando.
Poucas vezes li o Abel assim. Sempre tão optimista e luminoso, tão valorativo das pequenas coisas e dos pêssegos e dos pássaros e das cores, deixa-nos desta vez sozinhos com uma tília que já nem abrigo é capaz de dar.
Culpa dele? Culpa nossa, habituados a encontrar no cinema e na literatura a dose diária recomendada de desgosto que nos faz sentir ligados ao mundo.
Esta história desestabiliza-nos e faz-nos perder o pé. Pela forma como discretamente se insinua e se vai adensando, pelo confronto de escalas que ambas amplifica, pela serenidade do ambiente em que as coisas acontecem, pela familiaridade de tudo aquilo - o país, a cidade, as personagens, as conversas -, pelo medo e pelo silêncio de que somos feitos cúmplices. Pela demonstração do perto que estamos dos maiores horrores de que somos capazes, pela maneira como afronta estes leitores que, como eu, se permitem achar entediante um inventário de cadáveres mutilados encontrados no deserto.
Eu que desci à Avenida para tranquilamente ver as marchas passar dei por mim a cheirar cactos mexicanos em lugar de mangericos. Fiquei com as mãos em sangue, é verdade, mas já posso voltar ao Bolaño.
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