10 de outubro de 2010

ifigénia

Ifigénia na Táurida, Teatro da Cornucópia, 2010


Fui ao lado do cu do cristo-rei e alegrei-me com a diversidade dos sotaques. Almada pareceu-me, nessa noite, o local ideal para conhecer uma comovente Ifigénia, que se recusa a matar estrangeiros e acredita até ao fim na força da palavra contra a brutalidade das espadas e a injustiça das leis.
Estranho poder da arte, este que nos faz lembrar de Berlusconi e Sarkozy quando afinal um texto de Goethe e a história na Grécia Antiga. Estranha arte o teatro, capaz ainda de encher salas – novas e grandes e boas – e de ajudar a fazer cidade onde se esperava um subúrbio.
“Ifigénia na Táurida”, agora recriado em português por Frederico Lourenço, será sempre um texto belíssimo. Mas é impossível lê-lo hoje sem que nos detenhamos numa das circunstâncias que anima o seu enredo. Por vontade dos deuses (interpretada pelos homens), os estrangeiros que apareciam na Táurida deviam ser mortos no altar de Diana. Durante uns tempos, Ifigénia (ela própria estrangeira e outrora sacrificada) consegue evitar a chacina, convencendo o rei a poupar-lhes a vida e a limitar-se a deportá-los.
Sabe a pouco, claro, mas Ifigénia tinha apenas compaixão, não se lhe exija grandeza de estadista. Além disso, a Táurida era uma terra de bárbaros e progressos mais ambiciosos na cabeça do rei viriam colocar em causa o seu estatuto, contra os interesses da história do teatro.
O final quase feliz causa, talvez por isso, um ligeiro desconforto. Se a fingir custou tanto o que era óbvio, como consegui-lo cá fora, depois dos aplausos e com Ifigénia recolhida aos camarins? Como consegui-lo se continuamos a descarregar sobre os estrangeiros os males da cidade, imaginando gente “de leste” atrás do disfarce de um assaltante, pondo a mão no bolso se nos cruzamos com um preto, exigindo da escola uma turma diferente para os alunos ciganos? Como consegui-lo se continuamos a agarrar-nos às fronteiras e a achar que temos o direito de decidir quem pode e não pode viver connosco? Como consegui-lo se prosseguimos sem aprender nada com a história?
A resposta surgiu-me já no cacilheiro de regresso, num primeiro andar apinhado de diferenças. Cheio de gente que insiste em exercer o seu direito à cidade e que em breve se misturaria com os faróis vermelhos que, do rio, víamos subir a Rua do Alecrim.
Ingenuidade minha, talvez. Ou um optimismo exagerado, porventura alimentado pelos fumos que deixei que partilhassem comigo nessa viagem. Mas é um princípio de resposta esta vontade que se sente ainda de querer viver em conjunto. Que é melhor aproveitarmos, antes que seja demasiado tarde.

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