26 de fevereiro de 2007

rodapé

Ia vivendo como se percorresse um corredor
não um labirinto
um corredor comprido, iluminado quanto baste mas sem quaisquer indicações para além do rodapé, contínuo, que se alongava à sua frente e à falta de melhor
(não um labirinto, um corredor)
lhe indicava o caminho.
Pudera talvez ter tentado abrir alguma das portas que se lhe ofereciam de um e do outro lado, mas
(não um labirinto, um corredor com um rodapé)
o rodapé parecia-lhe suficientemente seguro de si para que se pusesse com outras derivações.
Seguia em frente, portanto
(não um labirinto, um corredor com um rodapé a guiar-lhe os passos)
e fugindo em crescente aceleração de outras portas que sentia fecharem-se atrás de si e que, de qualquer modo, o impediriam de recuar.

24 de fevereiro de 2007

martini

Benoît A. Côté, Orchestre local

No interior do velho salão de baile, a orquestra tocava ainda, alheada do fim da festa e desouvindo o ruído das máquinas que começavam agora a demolir o tempo.

23 de fevereiro de 2007

surrealismo

Gregor Ziolkowki, Utopie, 2005, 80 x 60 cm.


O Zeca Afonso é quando um homem efectivamente quiser.

22 de fevereiro de 2007

metafísico

Salvador Dali, El Cid, 1971.



Diálogo entre Babieca e Rocinante
SONETO

B. Como estais, Rocinante, tão delgado?
R. Porque nunca se come, e se trabalha.
B. E que é pois feito de cevada e palha?
R. Não me deixa meu amo nem bocado.
B. Andai, senhor, que estais mui malcriado,
pois vossa língua de asno o amo malha.
R. Do berço o é o asno até tomar mortalha.
Quereis vê-lo? Olhai, ei-lo enamorado.
B. É necedade amar? R. Não é prudência.
B. Metafísico estais. R. É que não como.
B. O escudeiro acusai. R. Não é bastante.
Como me hei-de eu queixar nesta dolência,
se o amo e o escudeiro ou o mordomo
são uns rocins iguais a Rocinante?


Miguel de Cervantes, "Ao livro de Dom Quixote de la Mancha", Dom Quixote de La Mancha. Lisboa: Dom Quixote, 2005 [tradução e notas de Miguel Serras Pereira]

saudade

Suzanne Clements, the empty chair, acrylic on canvas, 6"x 12"



É preciso tão pouco para dizer afinal tudo.

21 de fevereiro de 2007

efeméride

Marc Chagall, Birthday, 1915


Agora que falas nisso, lembro-me que cheguei a ter, em tempos, um blog.
Sei que durou pelo menos um ano, porque no dia do seu primeiro aniversário escrevi um post alusivo à efeméride.

20 de fevereiro de 2007

tu


assim como uma espécie de sol que seca a humidade mais entranhada, como uma espécie de nuvem que nos alivia da torreira, como uma espécie de chuva que afaga os campos ressequidos, como uma espécie de vento que nos refresca às três da tarde
assim como um espécie de jazz em dia de burocracia, como uma espécie de música clássica no semáforo à hora de ponta, como uma espécie de harpa no carnaval do Rio, como uma espécie de gaita-de-foles a furar a tristeza
assim como uma espécie de bálsamo que nos excita, como uma espécie de café que nos acalma, como uma espécie de borracha na torneira que pinga, como uma espécie de comporta que se abre na barragem transbordante
assim como tudo isto, assim como tanto mais
assim és tu

12 de fevereiro de 2007

um dia que eu morra

Há frases cujo verdadeiro significado só podemos perceber quando se altera o tempo verbal.

5 de fevereiro de 2007

desonestidade

Kurt Halsey Frederiksen, Honesty honestly


Um deputado da nação acusou o meu amigo de desonestidade intelectual.
Fê-lo num daqueles debates de província nos quais gosta de participar ao fim-de-semana, exibindo a retórica que se aprende e exercita na capital civilizada. Fê-lo com o ar grave e sério de quem condescende em sentar-se na mesma mesa com seres visivelmente inferiores mas de quem não tolera abusos, libertinagens ou quaisquer faltas de respeito à sua imperiosa posição.
Pouco habituado ao convívio tão próximo com as artes da deputice, fiquei, confesso, embaraçado. Então o meu amigo, que eu até admirava, era, afinal, um "desonesto-intelectual"? Ou seria um "intelecto-desonesto"?
Se fosse só desonesto, a coisa não me afligiria muito. O que me intrigou foi que o acusassem de o ser do ponto de vista intelectual. Pus-me a pensar nos outros tipos de desonestidade. Se, por exemplo, eu me levantasse da cadeira e, fingindo que ia cumprimentar o senhor deputado, lhe desse um murro nos queixos, seria, concerteza, um caso exemplar de "desonestidade física". Se, por outro lado, o senhor deputado pudesse imaginar o que penso dele enquanto o fito e finjo escutar com este notável ar sereno, estou certo que me acusaria de "desonestidade psicológica". Se, cansado da sua oratória, abandonasse a sala para ir à casa de banho, estaria a praticar uma vergonhosa "desonestidade fisológica". E estas voltas no estômago ao ouvi-lo? Serão os primeiros sintomas de uma "desonestidade gástrica"?
Pois que sejam. Naquela acusação, o que contava mesmo era o termo intelectual. Na cabeça do senhor deputado, era aí que se estabelecia a diferença entre ele e o meu amigo.
O meu amigo, desmentindo a acusação de desonestidade, resistiu a responder-lhe na mesma moeda. Na verdade, nunca ninguém poderá afirmar, honestamente, que aquele deputado é um intelectual.

mães

Frida Kahlo, 1932, Henry Ford Hospital


No calor do debate, a senhora do não veio dizer-nos que esta não é uma discussão a preto e branco. Estamos de acordo: esta discussão, como a pergunta a que se conseguiu chegar, é até bastante cinzenta.
Para ser a preto e branco, minha senhora, teríamos que estar a perguntar aos portugueses se concordam com a gravidez obrigatória, se concordam que as mulheres devem ser forçadas a resignar-se ao risco natural de engravidar em cada relação sexual, se alguém tem o direito de impor às mulheres uma maternidade que por qualquer razão não desejam. Se fosse a preto e branco, minha senhora, estaríamos a discutir o papel que ainda hoje a sociedade reserva às mulheres, em particular aquelas que, ao contrário de si, continuam a não ter oportunidade de usufruir do esforço daquelas e daqueles que lutaram (e lutam) pela igualdade de direitos. Se fosse a preto e branco, minha senhora, estaríamos a dizer se achamos que a maternidade deve ser voluntária ou um trabalho forçado pelo azar divino. Se fosse a preto e branco, estávamos a questionar o direito que a senhora tem de se pronunciar sobre a vida, o corpo e a vontade de outras mulheres.
Dizer sim à desconfortável pergunta que nos colocam, minha senhora, é a mais cinzenta das opções. Aceita-se até que o aborto permaneça um crime, como se um pedido da mulher em causa pudesse ser apenas mais uma excepção e não a regra, primeira e fundamental, para a continuação ou descontinuação de uma gravidez. Eu resigno-me, contudo, a esse cinzentismo, pela mais pragmática das razões: apesar de continuarem juridicamente encurraladas, que ao menos possam as mulheres que abortam fazê-lo em condições mínimas de segurança e dignidade. Talvez não seja um grande avanço civilizacional, mas é um passo. Acinzentado, mas um passo.
Já dizer não, minha senhora, é a mais negra das respostas. Porque mantém tudo na mesma, incluindo o rótulo (e as penas) de criminosas para as mulheres que abortam, incluindo os riscos que elas correm nas malhas da clandestinidade, incluindo esta coisa de não conseguirmos pensar numa mulher sem nela ver a mãe - a mãe efectiva, a mãe frustrada, a mãe egoísta, a mãe assassina, mas a mãe, sempre a mãe.
Como se o mundo, minha senhora, fosse composto por homens e... mães.