Diria que na polémica sobre o fim da Festa da Música no Centro Cultural de Belém me parece existirem, pelo menos, dois equívocos e duas mistificações.
O primeiro equívoco (apesar de bem intencionado) é o de incluir o cancelamento da iniciativa, motivado por questões orçamentais, no conjunto dos cortes cegos ao financiamento público da cultura em Portugal. Não é verdade. Neste caso, a decisão até aparece fundamentada: em dois ou três dias, o CCB gastava dois terços da verba de que dispunha para a sua programação anual, o que não é aceitável em nenhuma estratégia de programação de um espaço cultural, independentemente do montante total de que se disponha. Claro que se pode alegar que é a verba global que é baixa e que não é o orçamento da Festa da Música que é exageradamente alto, mesmo que ele represente, por exemplo, o dobro do financiamento do Estado à actividade anual do Teatro da Cornucópia, o triplo do financiamento público à actividade anual do Teatro O Bando ou do Teatro Viriato, oito vezes o financiamento estatal ao Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica e quase 70% da totalidade do apoio sustentado às entidades artísticas de iniciativa não governamental na área da música em Portugal no último ano. Claro que se pode alegar isso, mas então que se alegue isso mesmo. E que se alegue, já agora, que o que é verdadeiramente inacreditável é que o orçamento do Ministério da Cultura tenha perdido (ainda mais) peso no Orçamento Geral do Estado (de 0,6 para 0,4% do PIB entre 2006 e 2007). E que se direccione para esse tema as inusitadas campanhas dos jornais de referência.
O segundo equívoco é o de apontar esta decisão como um erro crasso na programação de Mega Ferreira. Independentemente de concordarmos ou não com ela, o que qualquer iniciado em gestão cultural lhe diria é que anunciar um novo projecto – no caso, “Os Dias da Música”, iniciativa que propõe em substituição da Festa da Música – como se se tratasse de um remendo, de uma coisinha remediada, pobre mas honrada, é condená-la antecipadamente ao fracasso. O principal erro de Mega Ferreira foi, pois, o de não ter conseguido separar as coisas. Decidido o fim da Festa da Música, só teria que anunciar a sua nova programação, mostrando que ela tem pés e cabeça, que é articulada e ambiciosa na medida em que as condições lho permitam, defendendo-a até à exaustão destas polémicas, que apenas menorizam o essencial do que deve ser uma programação cultural: os seus conteúdos artísticos.
A primeira mistificação tem a ver com o carácter providencial atribuído pela generalidade dos comentadores nacionais ao empresário que nos tem vendido o conceito da Festa da Música, René Martin. Não discuto os seus méritos, discuto a desproporção qualitativa e quantitativa do tratamento que lhe foi dado desde o início, chegando agora ao ponto de nos devermos preocupar, enquanto cidadãos portugueses, com a sensibilidade do senhor, eventualmente ferida pela forma como foi conduzido o processo. Para além de ser um caminho sem fim, porque pessoas magoadas na sua dignidade pela forma como são tratadas pelo Estado encontram-se todos os dias, às dezenas, em qualquer serviço público, até parece que o CCB não tem toda a legitimidade para (re)definir anualmente a sua programação e que o modelo proposto por Martin é um cânone inquestionável, como se a Festa da Música fosse o único projecto credível e de qualidade apresentado em Portugal.
A segunda mistificação, que é recorrente mas que mais uma vez ganha notoriedade nesta discussão, é a confusão entre salas cheias e formação de públicos. Nem as primeiras são sinónimo da segunda, nem esta se avalia apenas pelas primeiras. Continua a faltar em Portugal (como de resto noutros sítios) uma avaliação séria dos impactos deste tipo de eventos – mediáticos, envolvendo grande concentração de meios no espaço e no tempo, atraindo grandes “multidões” – na formação de públicos a médio e longo prazo. Sobretudo quando estes esforços (do mesmo tipo das Capitais da Cultura, por exemplo) não são acompanhados por uma aposta consequente nas estruturas que operam e continuarão a operar no terreno e que são obviamente indispensáveis para manter activos os públicos potenciais eventualmente atraídos pela “festa”. Neste sentido, o retrocesso na formação de públicos para a música clássica (ou para as artes de uma forma geral) não é provocado pelo abandono da Festa da Música. Como instrumento que assumia ser desse desígnio, ela podia ser substituída a todo o tempo por outro mecanismo alternativo, eventualmente mais adequado às circunstâncias concretas de cada momento e até eventualmente mais eficaz num novo contexto. O que é verdadeiramente dramático é continuar a desperdiçar os meios apesar de tudo significativos que se têm dispendido nestas grandes iniciativas sem as enquadrar numa estratégia global de desenvolvimento cultural, assente em três eixos fundamentais – financiamento da criação artística, fomento da formação nas artes e em áreas afins (gestão e produção cultural, nomeadamente) e articulação entre criação artística e sistema de ensino, como forma de aumentar, entre os jovens, a sensibilidade para as diferentes formas de expressão artística, o seu sentido crítico e, consequentemente, as possibilidades de que dispõem para formar os seus próprios gostos.
O primeiro equívoco (apesar de bem intencionado) é o de incluir o cancelamento da iniciativa, motivado por questões orçamentais, no conjunto dos cortes cegos ao financiamento público da cultura em Portugal. Não é verdade. Neste caso, a decisão até aparece fundamentada: em dois ou três dias, o CCB gastava dois terços da verba de que dispunha para a sua programação anual, o que não é aceitável em nenhuma estratégia de programação de um espaço cultural, independentemente do montante total de que se disponha. Claro que se pode alegar que é a verba global que é baixa e que não é o orçamento da Festa da Música que é exageradamente alto, mesmo que ele represente, por exemplo, o dobro do financiamento do Estado à actividade anual do Teatro da Cornucópia, o triplo do financiamento público à actividade anual do Teatro O Bando ou do Teatro Viriato, oito vezes o financiamento estatal ao Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica e quase 70% da totalidade do apoio sustentado às entidades artísticas de iniciativa não governamental na área da música em Portugal no último ano. Claro que se pode alegar isso, mas então que se alegue isso mesmo. E que se alegue, já agora, que o que é verdadeiramente inacreditável é que o orçamento do Ministério da Cultura tenha perdido (ainda mais) peso no Orçamento Geral do Estado (de 0,6 para 0,4% do PIB entre 2006 e 2007). E que se direccione para esse tema as inusitadas campanhas dos jornais de referência.
O segundo equívoco é o de apontar esta decisão como um erro crasso na programação de Mega Ferreira. Independentemente de concordarmos ou não com ela, o que qualquer iniciado em gestão cultural lhe diria é que anunciar um novo projecto – no caso, “Os Dias da Música”, iniciativa que propõe em substituição da Festa da Música – como se se tratasse de um remendo, de uma coisinha remediada, pobre mas honrada, é condená-la antecipadamente ao fracasso. O principal erro de Mega Ferreira foi, pois, o de não ter conseguido separar as coisas. Decidido o fim da Festa da Música, só teria que anunciar a sua nova programação, mostrando que ela tem pés e cabeça, que é articulada e ambiciosa na medida em que as condições lho permitam, defendendo-a até à exaustão destas polémicas, que apenas menorizam o essencial do que deve ser uma programação cultural: os seus conteúdos artísticos.
A primeira mistificação tem a ver com o carácter providencial atribuído pela generalidade dos comentadores nacionais ao empresário que nos tem vendido o conceito da Festa da Música, René Martin. Não discuto os seus méritos, discuto a desproporção qualitativa e quantitativa do tratamento que lhe foi dado desde o início, chegando agora ao ponto de nos devermos preocupar, enquanto cidadãos portugueses, com a sensibilidade do senhor, eventualmente ferida pela forma como foi conduzido o processo. Para além de ser um caminho sem fim, porque pessoas magoadas na sua dignidade pela forma como são tratadas pelo Estado encontram-se todos os dias, às dezenas, em qualquer serviço público, até parece que o CCB não tem toda a legitimidade para (re)definir anualmente a sua programação e que o modelo proposto por Martin é um cânone inquestionável, como se a Festa da Música fosse o único projecto credível e de qualidade apresentado em Portugal.
A segunda mistificação, que é recorrente mas que mais uma vez ganha notoriedade nesta discussão, é a confusão entre salas cheias e formação de públicos. Nem as primeiras são sinónimo da segunda, nem esta se avalia apenas pelas primeiras. Continua a faltar em Portugal (como de resto noutros sítios) uma avaliação séria dos impactos deste tipo de eventos – mediáticos, envolvendo grande concentração de meios no espaço e no tempo, atraindo grandes “multidões” – na formação de públicos a médio e longo prazo. Sobretudo quando estes esforços (do mesmo tipo das Capitais da Cultura, por exemplo) não são acompanhados por uma aposta consequente nas estruturas que operam e continuarão a operar no terreno e que são obviamente indispensáveis para manter activos os públicos potenciais eventualmente atraídos pela “festa”. Neste sentido, o retrocesso na formação de públicos para a música clássica (ou para as artes de uma forma geral) não é provocado pelo abandono da Festa da Música. Como instrumento que assumia ser desse desígnio, ela podia ser substituída a todo o tempo por outro mecanismo alternativo, eventualmente mais adequado às circunstâncias concretas de cada momento e até eventualmente mais eficaz num novo contexto. O que é verdadeiramente dramático é continuar a desperdiçar os meios apesar de tudo significativos que se têm dispendido nestas grandes iniciativas sem as enquadrar numa estratégia global de desenvolvimento cultural, assente em três eixos fundamentais – financiamento da criação artística, fomento da formação nas artes e em áreas afins (gestão e produção cultural, nomeadamente) e articulação entre criação artística e sistema de ensino, como forma de aumentar, entre os jovens, a sensibilidade para as diferentes formas de expressão artística, o seu sentido crítico e, consequentemente, as possibilidades de que dispõem para formar os seus próprios gostos.
2 comentários:
Apoiado.É preciso ser preciso.
.. :-)...
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