29 de novembro de 2006

festa

Diria que na polémica sobre o fim da Festa da Música no Centro Cultural de Belém me parece existirem, pelo menos, dois equívocos e duas mistificações.

O primeiro equívoco (apesar de bem intencionado) é o de incluir o cancelamento da iniciativa, motivado por questões orçamentais, no conjunto dos cortes cegos ao financiamento público da cultura em Portugal. Não é verdade. Neste caso, a decisão até aparece fundamentada: em dois ou três dias, o CCB gastava dois terços da verba de que dispunha para a sua programação anual, o que não é aceitável em nenhuma estratégia de programação de um espaço cultural, independentemente do montante total de que se disponha. Claro que se pode alegar que é a verba global que é baixa e que não é o orçamento da Festa da Música que é exageradamente alto, mesmo que ele represente, por exemplo, o dobro do financiamento do Estado à actividade anual do Teatro da Cornucópia, o triplo do financiamento público à actividade anual do Teatro O Bando ou do Teatro Viriato, oito vezes o financiamento estatal ao Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica e quase 70% da totalidade do apoio sustentado às entidades artísticas de iniciativa não governamental na área da música em Portugal no último ano. Claro que se pode alegar isso, mas então que se alegue isso mesmo. E que se alegue, já agora, que o que é verdadeiramente inacreditável é que o orçamento do Ministério da Cultura tenha perdido (ainda mais) peso no Orçamento Geral do Estado (de 0,6 para 0,4% do PIB entre 2006 e 2007). E que se direccione para esse tema as inusitadas campanhas dos jornais de referência.

O segundo equívoco é o de apontar esta decisão como um erro crasso na programação de Mega Ferreira. Independentemente de concordarmos ou não com ela, o que qualquer iniciado em gestão cultural lhe diria é que anunciar um novo projecto – no caso, “Os Dias da Música”, iniciativa que propõe em substituição da Festa da Música – como se se tratasse de um remendo, de uma coisinha remediada, pobre mas honrada, é condená-la antecipadamente ao fracasso. O principal erro de Mega Ferreira foi, pois, o de não ter conseguido separar as coisas. Decidido o fim da Festa da Música, só teria que anunciar a sua nova programação, mostrando que ela tem pés e cabeça, que é articulada e ambiciosa na medida em que as condições lho permitam, defendendo-a até à exaustão destas polémicas, que apenas menorizam o essencial do que deve ser uma programação cultural: os seus conteúdos artísticos.

A primeira mistificação tem a ver com o carácter providencial atribuído pela generalidade dos comentadores nacionais ao empresário que nos tem vendido o conceito da Festa da Música, René Martin. Não discuto os seus méritos, discuto a desproporção qualitativa e quantitativa do tratamento que lhe foi dado desde o início, chegando agora ao ponto de nos devermos preocupar, enquanto cidadãos portugueses, com a sensibilidade do senhor, eventualmente ferida pela forma como foi conduzido o processo. Para além de ser um caminho sem fim, porque pessoas magoadas na sua dignidade pela forma como são tratadas pelo Estado encontram-se todos os dias, às dezenas, em qualquer serviço público, até parece que o CCB não tem toda a legitimidade para (re)definir anualmente a sua programação e que o modelo proposto por Martin é um cânone inquestionável, como se a Festa da Música fosse o único projecto credível e de qualidade apresentado em Portugal.

A segunda mistificação, que é recorrente mas que mais uma vez ganha notoriedade nesta discussão, é a confusão entre salas cheias e formação de públicos. Nem as primeiras são sinónimo da segunda, nem esta se avalia apenas pelas primeiras. Continua a faltar em Portugal (como de resto noutros sítios) uma avaliação séria dos impactos deste tipo de eventos – mediáticos, envolvendo grande concentração de meios no espaço e no tempo, atraindo grandes “multidões” – na formação de públicos a médio e longo prazo. Sobretudo quando estes esforços (do mesmo tipo das Capitais da Cultura, por exemplo) não são acompanhados por uma aposta consequente nas estruturas que operam e continuarão a operar no terreno e que são obviamente indispensáveis para manter activos os públicos potenciais eventualmente atraídos pela “festa”. Neste sentido, o retrocesso na formação de públicos para a música clássica (ou para as artes de uma forma geral) não é provocado pelo abandono da Festa da Música. Como instrumento que assumia ser desse desígnio, ela podia ser substituída a todo o tempo por outro mecanismo alternativo, eventualmente mais adequado às circunstâncias concretas de cada momento e até eventualmente mais eficaz num novo contexto. O que é verdadeiramente dramático é continuar a desperdiçar os meios apesar de tudo significativos que se têm dispendido nestas grandes iniciativas sem as enquadrar numa estratégia global de desenvolvimento cultural, assente em três eixos fundamentais – financiamento da criação artística, fomento da formação nas artes e em áreas afins (gestão e produção cultural, nomeadamente) e articulação entre criação artística e sistema de ensino, como forma de aumentar, entre os jovens, a sensibilidade para as diferentes formas de expressão artística, o seu sentido crítico e, consequentemente, as possibilidades de que dispõem para formar os seus próprios gostos.

28 de novembro de 2006

xix

- Quanto é?
Só para passar o tempo, porque para quê os queijinhos da serra comprados aqui no meio dos neons, para quê as garrafas de vinho empacotadinhas numa caravela em contraplacado gravado a fogo, para quê o galo de barcelos a embrulhar os ovos moles de Aveiro, as cavacas das Caldas, o chouriço alentejano, as rendas de bilros, para quê.
Só o jornal e um maço de tabaco, a inércia, o automatismo, quase como no quiosque todas as manhãs, eu a atravessar a rua e a dona isilda ou às vezes o senhor joão, menos agora desde que foi operado, portanto quase sempre a dona isilda, sorridente, a tirar-me o jornal de debaixo dos outros e a estender-me o tabaco de tal maneira que eu às vezes quero outro mas não tenho coragem e só
- Bom dia como está muito obrigado
de vez em quando uma observação climatérica, uma pergunta pelo marido ou
- e os filhos estão bem
às quais me retribui sempre, sorrindo, apesar da coluna, da operação do marido, do pai entrevado, no neto sem pai, e desejando-me
- Bom dia, Sr. Rodrigo.
Um pouco automática, é certo, mas seguramente menos metalizada do que a outra
- Gostei muito de o servir
e apesar de tudo mais sincera do que esta agora
- Muito obrigado, senhor. E boa viagem.

22 de novembro de 2006

depois

Lembrar, Jacinta, que te deste a conhecer num concurso televisivo de imitações, constatando esperançoso que é de matéria humana que vós, artistas, sois afinal feitos.

durante

Inebriar-me, anónimo entre a sala cheia, com a presença grave, as cordas contrabaixas, as teclas que percutem, o rouco ritmo e os sibilantes esses desse saxofone que me surpreende em serpentina.

antes

Reouvir-te, rítmica e quente como o copo de vinho que me ajudas a beber, achando-me no direito de cortar o som aos engarrafamentos do regresso a casa, às catástrofes da Austrália e, sobretudo, ao Jornal de Economia.

wikibus

.......... .......... Vale das Flores .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Vale das Flores - Rotunda .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Dom Pedro de Cristo .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Carlos Seixas 2 .......... .......... .......... .......... .......... Daniel de Matos .......... .......... .......... Norton de Matos .......... .......... .......... .......... .......... Rua de Moçambique 1 .......... .......... .......... ..... Rua de Moçambique 2 .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..... Rua de Angola 2 .......... .......... .......... ... Rua de Angola 1 .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Estádio Cidade de Coimbra .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... João de Deus Ramos .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..... Escola Superior de Educação .......... .......... .......... .......... Infanta D. Maria .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..... Avelar Brotero .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Humberto Delgado .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Combatentes - Acapo .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..... Júlio Henriques .......... .......... .......... Arcos do Jardim .......

19 de novembro de 2006

mandamento

"E que solução defendem eles para salvar o planeta? David Marks e Steve Connors, ambos do laboratório de Energia e Ambiente do MIT, foram claros: 'para salvar o planeta a geração futura [representada pela dezena de jovens ali presente] deve escolher a engenharia como profissão'."

Diário de Notícias, 17 de Novembro de 2006, Engenheiros do MIT visitam a Escola da Amadora.

17 de novembro de 2006

sim

duas vezes sim


uma pelo individualismo




outra pela solidariedade

13 de novembro de 2006

anfiteatro

Amphithéâtre, de Jennifer Macklem.

Huile sur toile, 1991, 122 x 114 cm.

9 de novembro de 2006

debate (2)

3. O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais.

Constituição da República Portuguesa, artigo 73º.




2. Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais:

a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio;

b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, nas suas múltiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade;

c) Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum;

d) Desenvolver as relações culturais com todos os povos, especialmente os de língua portuguesa, e assegurar a defesa e a promoção da cultura portuguesa no estrangeiro;

e) Articular a política cultural e as demais políticas sectoriais.

Constituição da República Portuguesa, artigo 78º.




4 - Compete à Câmara Municipal, no âmbito do apoio a actividades de interesse municipal:
(...)

b) Apoiar ou comparticipar, pelos meios adequados, no apoio a actividades de interesse municipal, de natureza social, cultural, desportiva, recreativa ou outra.

Lei nº 169/99
, de 18 de Setembro, artigo 64º.

6 de novembro de 2006

debate

(...) Fazemo-lo agora, antes que seja tarde demais, primeiro porque encontrámos um tradutor. Mais do que qualquer outro, o teatro grego para nós são agora acima de tudo palavras, poesia, e só conseguindo ouvi-las em grego e reinventando-lhes a música no nosso português actual (como fez a Sophia, com quem todos aprendemos a amar a Grécia, quando as traduziu), elas ainda poderão subir ao palco e ser ouvidas e passarão para a alma de actores nossos contemporâneos. Antes do mais fazemos esta tragédia porque o Frederico Lourenço com alegria e generosidade no-la recriou.
Mas fazemo-la sobretudo por uma enorme teimosia, a de não desistir, modestamente é certo, de alguma vontade de intervir com os nossos espectáculos na nossa vida pública. Ainda temos a ilusão de “educar”. Pelo menos de dar que pensar. E temos o prazer de nos entregarmos a esse exercício. Criar aberração. Quisemos confrontar-nos e confrontar-vos com um debate moral que é completamente alheio à superficialidade, ao psicologismo, à imediatez, à irresponsabilidade, à desumanidade, do viver das nossas sociedades civilizadas. Revivendo esta peça distante, gostaríamos de criar algum abismo: há 25 séculos o Homem já foi isto, descobria a sua humanidade, inventava-se com esta consciência moral. E com que limpidez! (...)

Luis Miguel Cintra, sobre Filoctetes, pelo Teatro da Cornucópia


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A decisão do presidente da Câmara do Porto em cortar todos os subsídios pecuniários a fundo perdido atribuídos pela autarquia suscitou um coro de críticas no PS, PCP e Bloco de Esquerda. (...)
Rui Rio fundamentou a sua decisão, que disse destinada a "dar o exemplo" no que toca aos cortes orçamentais, na necessidade de estancar "o preocupante fenómeno de desajustada subsidiodependência".(...)
A deputada do PSD Zita Seabra está completamente de acordo, visto que "há um equilíbrio a conseguir nas autarquias para que não se financiem só iniciativas culturais de pseudovanguarda, sem público duradoiro".

Diário de Notícias, 06/11/2006.



"Será que a cultura é de esquerda?" Esta é uma pergunta frequente, que aliás ainda mostra dúvidas sobre algo que muitos afirmam abertamente: hoje entre nós a cultura é mesmo de esquerda. Basta ler jornais e revistas ou ver programas culturais para o demonstrar. (...)
Considerando com atenção a frase, porém, vê-se que a cultura atribuída à esquerda não é a cultura real. Não se refere à tradição popular, nem sequer à criação genial. "Cultura" aqui é apenas a elite artístico-literata, que pontifica oficialmente para efeitos de almoços, entrevistas e subsídios. Não se trata da civilização que identifica um povo, nem dos génios que marcam uma época. A expressão refere-se apenas aos que fazem profissão das artes e espectáculos, que ganham a vida a produzir objectos supostamente culturais. É só mesmo a massa que lida com o ministério. No fundo trata-se de um particular sector de actividade. Nos sectores é comum haver regiões, etnias e grupos dominantes. Assim, não espanta que a cultura seja de esquerda, como os têxteis são do Norte.

João César das Neves, A cor predefinida da cultura, Diário de Notícias, 06/11/2006.


DC – Para terminar, a política cultural do município tem sido alvo de críticas.
CE – Algumas pessoas são profundamente incongruentes com aquilo que dizem. Tenho impressão de que nunca o projecto cultural foi tão consistente. A recuperação do Centro Histórico é um grande projecto cultural, a candidatura da Universidade a Património Mundial, que apoiamos totalmente, também o é. A criação da área museológica da Universidade, com a constituição de uma fundação, é o maior projecto que Coimbra alguma vez teve nesse domínio.

DC – Mas os agentes culturais mostram-se impiedosos…
CE – Não são os agentes culturais, são as pessoas que recebem subsídios. Há muitas outras pessoas que não os recebem e que têm actividade cultural. Quando se gere a cultura ou qualquer outra coisa, temos que saber qual o universo que é atingido por uma oportunidade que a câmara municipal ou o Estado dá. Não podemos ter pessoas a trabalhar para si próprias ou então para quatro ou cinco amigos. A câmara tem realizado investimentos em bens culturais que depois coloca à disposição dos grupos, mas não tem dinheiro para realizar seis ou oito milhões de investimentos e depois manter a subsidiação aos grupos.

Entrevista a Carlos Encarnação, Diário de Coimbra, 06/11/2006.

4 de novembro de 2006

sonhos

A ele deu resposta a sensata Penélope:
"Estrangeiro, sabes bem que os sonhos são impossíveis
e confusos, nem sempre tudo se cumpre entre os homens.
São dois os portões dos sonhos destituídos de vigor:
um é feito de chifres; o outro, de marfim.
Os sonhos que passam pelos portões de marfim talhado
são nocivos e trazem palavras que nunca se cumprem.
Mas os que saem cá para fora dos portões de chifre polido,
esses trazem coisas verdadeiras, quando um mortal os vê."

Homero, Odisseia [introdução e tradução do Grego de Frederico Lourenço], Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

3 de novembro de 2006

c)

Lembro-me todos os dias, a cada manhã que começo, a estranhar ainda o ter que aquecer o café com leite, o comer sozinho, o fechar a porta sem ter a quem
- Até logo.
o não ter que explicar o atraso para o jantar, o não ter quem me ouça as diatribes do patrão, o não ter a quem pedir o frasquinho do sal, a jarra da água, o não ter com quem disputar a lavagem da louça, a limpeza do pó, o pagamento das contas.
Lembro-me todos os dias e a todas as horas, quando toca o telefone, uma campainha no peito que me aperta e me sustém a respiração, que só volta quando do outro lado outra coisa que não
- Lamentamos muito.
Como imagino que um dia destes, eu na mesa quatro a atender turistas alemães e o ucraniano a chamar-me aturdido do balcão
- É para ti.

2 de novembro de 2006

xviii

- Vamos ver as montras.
Como no teatro do Abel, como o meu pai a fingir-se simpático e a antever o decote dos manequins primavera-verão, como a minha mãe a fingir-se contente
- Vamos
um sonho, uma alegria, a família inteira junta, um domingo sem futebol, uma tarde inteira a
- Vamos ver as montras
num centro comercial sem escadas rolantes nem ar-condicionado nem macdonalds nem casa das sandes só o snack-bar onde o meu pai no intervalo das montras
- Uma fresquinha!
E a minha mãe a medo
- uma meia de leite
e a minha irmã de olho no corneto, no epá
- um gelado de laranja
e eu só, se quero um também, eu só
- pode ser.
Quando na verdade não queria nada, só ir-me embora, como agora, de bilhete na mão
PARIS EH LINDO
E a ver as montras, os jornais, as revistas, os recuerdos de um país que já não me parece o meu
- Quanto é?

1 de novembro de 2006

amares

m.



amares
o minho
a ferro e pedra
e água