27 de setembro de 2006

cansado


Há quatro lendas sobre Prometeu. A primeira conta que, por ter traído os deuses junto dos homens, foi agrilhoado ao Cáucaso e os deuses enviavam águias que lhe iam comendo o fígado, que renascia sempre de novo.
A segunda conta que Prometeu, devido às dores provocadas pelos golpes dos bicos, se foi metendo cada vez mais pelo rochedo adentro, até se fundir com ele.
A terceira diz que, ao longo dos milénios, a sua traição foi esquecida, que os deuses esqueceram, as águias também, e até ele próprio.
A quarta conta que todos se cansaram daquilo que se tornara sem fundo. Cansaram-se os deuses, cansaram-se as águias. A ferida fechou de cansaço.
Restou o inexplicável monte rochoso.


Kafka, Franz, "Prometeu", in Parábolas e Fragmentos (selecção, tradução e prefácio de João Barrento). Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.

1 comentário:

sb disse...

Hipótese:

A primeira conta que o deus sente: na carne – como os homens – o sofrimento do corpo; e no espírito – como os homens – as contradições da alma. E, assim, o deus se aproxima do homem e o homem entende deus.

A segunda conta que o deus – não podendo contar com a ajuda de ninguém – nem de deuses nem de homens – teve de se voltar para si mesmo, aceitar a dor e cristalizar-se nela.

A terceira diz que o tempo cura todas as dores mas, em paga, cobra uma porção significativa da nossa memória e inteligência.

A quarta conta que, esquecida a memória e embrutecida a inteligência, nada resta.

Só a pedra. (Que a seu tempo se transformará em pó).