30 de setembro de 2006

proximidade

Já não te peço que urines sentado porque isso facilita a limpeza, não, mas se não tossisses para cima da comida, se não limpasses o suor com o guardanapo, se não limpasses os pés ao sofá, se não bocejasses como se a culpa fosse minha, se não gritasses da porta da cozinha o que é a palha de cada vez que queres saber o que é o almoço, se não ordenasses o galão como se eu não to tivesse oferecido, se não bebesses tanto, se não insistisses em comer com a boca aberta, se não fizesses questão de me exibir esse teu lado boçal, talvez não me fosse tão difícil segurar as lágrimas.

29 de setembro de 2006

libertado



Prometeu, ao que consta, soltou soluços lamentosos pela ave, sua única companhia em três mil anos e único provento em duas vezes três mil. Hei-de eu comer as tuas setas?, gritou, esquecendo-se que conhecera outro alimento. Saberás tu voar, campónio, com esses teus pés de esterco? E vieram-lhe vómitos causados pelo fedor a estábulo que perseguia Héracles, desde que este limpara os estábulos de Augias, porque o fedor do estrume chegava ao céu. Come a águia, disse Héracles. Mas Prometeu não percebeu o que ele queria dizer.

Müller, Heiner, "A Libertação de Prometeu" (tradução de José Ribeiro da Fonte), in Prometeu 06. Coimbra: A Escola da Noite, 2006.

27 de setembro de 2006

cansado


Há quatro lendas sobre Prometeu. A primeira conta que, por ter traído os deuses junto dos homens, foi agrilhoado ao Cáucaso e os deuses enviavam águias que lhe iam comendo o fígado, que renascia sempre de novo.
A segunda conta que Prometeu, devido às dores provocadas pelos golpes dos bicos, se foi metendo cada vez mais pelo rochedo adentro, até se fundir com ele.
A terceira diz que, ao longo dos milénios, a sua traição foi esquecida, que os deuses esqueceram, as águias também, e até ele próprio.
A quarta conta que todos se cansaram daquilo que se tornara sem fundo. Cansaram-se os deuses, cansaram-se as águias. A ferida fechou de cansaço.
Restou o inexplicável monte rochoso.


Kafka, Franz, "Prometeu", in Parábolas e Fragmentos (selecção, tradução e prefácio de João Barrento). Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.

agrilhoado


PROMETEU

A tuas palavras são altivas e cheias de arrogância, como convém ao lacaio dos deuses. Vós, novos, governais há pouco, e julgais habitar uma cidadela inacessível à dor. Mas não vi eu já, num abrir e fechar de olhos, cairem dois tiranos? Mais vergonhosamente e com maior rapidez hei-de ver cair o terceiro, que agora governa. Parece-te acaso que eu receio e tremo diante dos deuses novos?

Ésquilo, Prometeu Agrilhoado (introdução, tradução do grego e notas de Ana Paula Quintela Sottomayor). Lisboa: Edições 70, 1992.

20 de setembro de 2006

xvi

- Estou.

Eu salvo pelo gong, a chegar-me para o canto, a beber água e a cuspi-la, a tirar a protecção dos dentes, a olhar pela janela, árvores agora e bombas de gasolina, placards publicitários, mulheres e cervejas e férias na praia, o taxista a falar, um ruído de fundo, não quero saber, vou chegar a tempo, não Samuel (estou a ver-te o cartão), não quero saber do teu telefonema, da amázia que tens na outra banda, do teu passado trabalhador, da tua vida emigrado, do apartamento de duas assoalhadas com parabólica na varanda, era o que faltava, não quero saber, quero só que me deixes

- Para o aeroporto, se faz favor.

Não ouviste? Pegas-me, levas-me, largas-me e pronto, nunca mais me ouves, nunca mais nos vemos, nunca mais o xadrez, nunca mais o boxe, nunca por nunca um torneio de sueca, um copo de tinto, a disputar um presunto que o secretário da associação trouxe da aldeia nas férias da Páscoa.
Não, Samuel, não quero saber, quero só que me deixes, continua o telefonema, não quero saber

- Nas partidas, por favor

e não me perguntes

- Então vai para onde?

Porque eu não te respondo, quero lá saber da tua vidinha, por que raio queres saber tu da minha, nunca mais havemos de nos encontrar

- Para França, mas são só três dias

E tu que tens lá uma filha, netos e tudo, mas eu não quero saber, felizmente chegámos, não acabaste o combate, não me puseste ko com a tua historieta

- Ora oito eurozitos.

Aprendeste depressa, um conto e seiscentos, a fazeres o câmbio mental apesar de seres contra

- Noutros tempos

Antigamente é que era bom, não era, meu fascista de merda, a imaginar-te no mato, a secar a tatuagem à procura de pretos e ainda hoje a gabares-te da emboscada

- Até gemiam, os filhos-da-puta

Isto só eu a ver-te no retrovisor porque tu

- Agora tenho que desligar, até logo.

mesmo antes de

- Ora oito eurozitos

e até sais do carro e me abres o porta-bagagens e me tiras as malas e me

- Uma boa viagem, sim? Obrigado.

aceitas a gorjeta e a despedida, quase um abraço, quase um

- Até breve

quase um

- Até já

um muito sentido

- Obrigado, boa tarde.

16 de setembro de 2006

intenções

Já não é só o facto de encherem o inferno, não, é o facto de elas - as boas intenções - estarem a trazê-lo para a terra.

15 de setembro de 2006

urgências

Talvez fosse por ser Verão e andar dado à nostalgia, mas é verdade que outras vezes quase me parecia estar num parque de campismo, estacionado debaixo daquelas árvores a apreciar o contorno incerto dos arbustos e a receber o eco de vozes filtrado pelas folhagens. Punha-me a imaginar como seria o novo hospital, em construção, e apetecia-me ligar ao arquitecto, a pedir-lhe que não se esquecesse de colocar um jardim na entrada das urgências.

14 de setembro de 2006

corda

Na barbária, aos domingos, o povo juntava-se na praça para praticar uma variante do jogo da tracção à corda: enlaçavam na dita um estrangeiro, previamente caçado no bosque que rodeava a aldeia.
O grupo cuja força se demonstrasse mais bruta banqueteava-se depois, numa orgia canibal realizada ao som do fado de coimbra.

13 de setembro de 2006

xv

- Pois.

E entretanto a avenida, já outra, os túneis a acelerar por cima de nós, um intervalo, cada um para o seu canto, a toalha ao pescoço, meninas de fato-de-banho a dançar no ringue uma música altíssima, uma placa nas mãos

ROUND 2

só que hoje sem árbitro, os dois sozinhos num carro de praça e lá fora a cidade, alheada de nós, um soco ao de leve para mostrar quem manda

- Agora também há os do Leste

depois uma direita, ainda de mansinho

- E os brasileiros

e o golpe nos rins, este já a doer

- Só putas e chulos, é o que é.

Uma vergonha, quase vou ao tapete, não te ficas sem resposta mas só me sai

- Também há gente boa.

Surpreendentemente o taxista encolhe-se um pouco, não me esperava sequer vivo, e eu aproveito, acerto-lhe no queixo

- Antigamente éramos nós, lá fomos para a França, para a Suíça, para o Luxemburgo

pareço um martelo, fraco mas insistente

- a Alemanha, a Inglaterra. E até para o Brasil, para a Venezuela.

Ele já recomposto, a acertar-me num olho

- Não, mas isso era diferente

a levar-me para as cordas

- Nós íamos e trabalhávamos

uma direita

- fazíamos o que eles não queriam fazer

outra direia

- não andávamos lá a arranjar problemas

depois uma esquerda

- comíamos o pão que o diabo amassou.

Eu a agarrar-me às cordas, ensaguentado, a tentar levantar-me e a vê-lo de braço puxado atrás, a preparar-se para um golpe baixo

(hoje sem árbitro, a cidade alheada de nós)

a tirar-me as medidas

- Quer saber

Felizmente o telemóvel, o dele, a servir de gong, a salvar-me da morte, ele no seu canto, a limpar o suor com a toalha e a atender

- Estou.

12 de setembro de 2006

assim

E eu esperava ali, ao pé daquela palmeira que eles deixaram ficar, pela tua mãe. Ficava a ver o anoitecer reflectido na parede do hotel, interrompido pelo quadriculado irregular das janelas dos quartos dos executivos, homens e mulheres, que iam descendo para o jantar. Às vezes pensava se teriam filhos, assim pequenos como tu eras, e em como conseguiam juntar tudo na mesma vida.
E em como é que conseguiam trabalhar, vindos de longe, deixando-os em casa, se calhar alguns também no hospital, indefesos como tu. Perguntava-me como é que se consegue viver assim.

visões

Já vejo o mar a crescer
Onda gigante a varrer
Só vejo corpos a boiar

Vejo a cidade a ruir
E o chão que se está a abrir
Só oiço gente a gritar

Ai, que eu estou a delirar
O que é que eu estou a inventar?
Não vos quis impressionar
São tudo fantasias
que o cinema projectou no meu olhar
São as velhas profecias
que o vidente deixou escrito para assustar

Já vejo a vida a fugir
Da força de resistir
Já não consegue respirar

Do céu eu vejo descer
O fim em cargas a arder
Já ouço a terra estoirar

Ai, que eu estou a delirar
O que é que eu estou a inventar?
Não vos quis impressionar
São tudo fantasias
que o cinema projectou no meu olhar
São as velhas profecias
que o vidente deixou escrito para assustar

Ai, que eu estou a delirar
O que é que eu estou a inventar?
Não vos quis impressionar
São tudo fantasias
que o cinema projectou no meu olhar
São as velhas profecias
que o vidente deixou escrito para assustar

Não vos quis impressionar
Não vos quis impressionar
Impressionar...
Impressionar...

Visões-Ficções (Nostradamus)
António Variações



Je Vos Salue, Maria

11 de setembro de 2006

actualização

O povo às vezes engana-se nos seus ditados, maz não faz mal - a gente cá está para lhe actualizar a sabedoria.
À quarta é de vez, vais ver, à quarta é de vez.

7 de setembro de 2006

ibiza

Lembras-te de quando éramos adultos e brincávamos ao regresso ao trabalho?
Arregaçávamos as mangas e
- Estás queimadinho, hã
- E tu também, hã
com sorrisos amarelos. Levávamos as máquinas digitais para encher de inveja os colegas, durante uma semana só areia e chapéus de sol e mar azul e filas de carros, a fingir interesse pela alegria dos outros mas no fundo a pensar a minha ibiza é melhor que a tua.

6 de setembro de 2006

escamas

- Como diz?
- Digo que as escamas são reaccionárias: alojam-se no ralo do lava-loiça e ali ficam, coladas, impedindo que a água prossiga o seu caminho.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- O crivo que as segura é um colaboracionista.
- Como diz?

5 de setembro de 2006

outono

Grandfather mountain in fall
Egidio Antonaccio, oil on linen, 24x36
Antonaccio Fine Art Gallery


A terra saúda-me só porque está em festa e eu passo de carro debaixo da faixa branca e das flores de papel penduradas nos postes da EDP.
A consciência pesa-me porque não mereço a saudação e porque descubro na regularidade com que agora lá vou um novo sentido para a expressão "uma vez por festa".
Depois comovo-me. Com a altura das cerejeiras que ajudei a plantar, em filas alinhadas com um baraço e o avô ainda
- Isso não está direito
a reclamar, autoritário, não absorto no canto do lar como agora, sem nos reconhecer, à espera do lanche e a incomodar-se com a visita
- O que é que estão aqui a fazer
Comovo-me com os castanheiros, carregados de ouriços de um verde que a mão humana ainda não consegue reproduzir, castanheiros que também plantei, a lembrar-me a avó que me levava às castanhas que depois cozia, os cartuchos de figos secos que cortávamos a meias para as broas de natal, sem pensar nos avc, na cegueira, na cadeira de rodas, só na alegria com que me recebia de três em três meses e na saudade com que se despedia do carro até ele dar a curva e eu me virar finalmente para a frente.
Comovo-me com a perfeição das macieiras, mais antigas, agora podadas pela família alargada que felizmente conseguimos que se conhecesse. Comovo-me com o silêncio da terra à hora de almoço, com o check-sound para o grandioso baile com o famoso agrupamento, com o bacalhau e a chanfana da avó que não quero perder.
Depois vejo um avião a desenhar um risco branco por cima do monte que o incêndio cobriu de mato e percebo tudo.
Quase tudo.

3 de setembro de 2006

musgo

- Como diz?
- Digo que o musgo é um reformista: aproveita uma minúscula nesga de terra e vai crescendo. Quase sem darmos por ele, acaba por tapar as pedras. Depois segura a terra que vem com a chuva e as sementes que o vento traz e acolhe as ervas. Cada vez maiores, estas começam a reproduzir-se e a segurar mais terra, mais sementes, até cobrirem por completo a calçada à portuguesa.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- O jardineiro que o apanha é um contra-revolucionário.
- Como diz?

2 de setembro de 2006

iogurte

- Nunca menosprezes - disse o velho enquanto atiçava o lume com a ponta da bengala - aquilo que um iogurte tem para te dizer. Nunca o menosprezes.
- Sobretudo - acrescentou o avô enquanto lambia mais uma tampa metalizada - quando ele é puro pedaços Morango vindo do RIBATEJO. Sobretudo quando.

Isto foi o que o velho disse, mesmo antes de cair para a fogueira, antes dos gritos, da ambulância, da autópsia e do registo oficial da causa da morte:
"envenenamento por fermentos lácticos, corante natural (carminas) e conservante da fruta (E-202); iliteracia poética na interpretação da frase 'Alimenta a Vida'".

1 de setembro de 2006

unworldly

"Na sua passagem pelos Estados Unidos, [Grigori Perelman] tinha ganho fama de homem de poucas palavras, afastado do mundo - «a kind of unworldly person», como disse depois ao New York Times o matemático Robert Greene, da Universidade da California, em Los Angeles."
Actual, 26/08/2006.


- Será grave, doutor?
- O quê?
- Esta minha mania de me apaixonar pelas palavras.