12 de outubro de 2006

capital

Se eu fosse ministra da cultura e me coubesse iniciar a preparação de uma capital europeia da dita, havia de querer que ela não fosse um mero fogacho de ocasião. Havia de gostar de a articular com uma (ténue que fosse) estratégia de desenvolvimento cultural para o país. Excluídas as duas maiores, havia de seleccionar quatro ou cinco cidades de média dimensão e conversar com os agentes políticos, educativos e artísticos nelas sediados, aferindo dos seus interesses, das suas motivações, das suas potencialidades. Havia também de definir meia dúzia de critérios objectivos, nos quais incluísse variáveis demográficas e económicas, sim, e o património histórico e cultural, também, e o nível de equipamentos disponíveis e a serem disponibilizados, ainda, mas onde a pujança e a sustentabilidade da criação artística local assumisse lugar de destaque. Na hora do anúncio público da escolha que fizesse, havia de fundamentar devidamente a opção tomada e havia de querer envolver a autarquia local desde o início do processo, evitando apanhá-la de surpresa.

Se eu fosse vereadora da cultura da cidade escolhida para capital europeia da cultura para daqui a seis anos e tomasse conhecimento do facto de surpresa numa cerimónia pública, havia de comover-me, sim, mas com a irresponsabilidade dos governantes que adoptam tais comportamentos. Havia ainda assim de me regozijar, naturalmente, e de começar a trabalhar rapidamente com os agentes locais. Antes, porém, havia de exigir ao governo uma clarificação urgente sobre aquilo que pretende com esta iniciativa e qual o grau de comprometimento que está disposto a assumir. Havia de lembrar à senhora ministra que estímulos e prémios simbólicos são bons e agradecem-se mas não pagam rendas de casa.

Se eu fosse presidente de câmara de uma outra cidade média que efectivamente tivesse querido ser, a sério, capital europeia da cultura, havia de começar a trabalhar com uma década de antecedência, assegurando condições mínimas de trabalho aos criadores culturais profissionais, construindo, recuperando e colocando a funcionar equipamentos qualificados, definindo em colaboração com outras entidades um programa de longo prazo, com objectivos claros e ambiciosos. Havia de assumir a cultura como prioridade no desenvolvimento da cidade, havia de escolher para a área um vereador minimamente conhecedor, razoavelmente competente e sobretudo capaz de dinamizar um clima de confiança, co-responsabilidade, motivação e entusiasmo com os agentes culturais locais. Se, somado a isto tudo, tivesse a sorte de ser presidente de câmara numa cidade que tivesse a maior população estudantil do país, que ocupasse uma posição central do ponto de vista geográfico, que tivesse uma das mais antigas e internacionalmente reconhecidas universidades da europa, que possuísse um assinalável património arqueológico, monumental e bibliográfico, que tivesse estruturas de criação e de programação artística (em diversas áreas) de referência a nível nacional, então eu havia de ser capaz de elaborar um projecto que o governo do meu país não pudesse recusar, evitando a triste figura das lamúrias tardias e ressabiadas.

Se eu fosse vereador da cultura numa cidade que tivesse dito (mesmo que tardiamente e de uma forma frouxa e pouco credível) que queria ser capital europeia da cultura e ninguém me perguntasse nada quando se soubesse que o governo tinha escolhido outra cidade, havia de me questionar sobre o que é que eu andava aqui a fazer. Se, nesse caso, o meu próprio presidente constantemente me desautorizasse e me relegasse para quarto ou quinto plano sempre que se falasse de projectos um bocadito maiores na área da cultura, havia de ficar embaraçado.

Se eu fosse vereador da oposição na câmara de uma cidade que tivesse mostrado (por qualquer forma e com qualquer intensidade) que queria ser capital europeia da cultura e tivesse afirmado convictamente, há poucos meses atrás, que os problemas da cultura na cidade se resolviam colocando os criadores a fazer animação de rua na baixa, na hora em que se soubesse da escolha do governo (qualquer que ela fosse), eu havia de me calar e fingir que não era comigo, porque eu desses assuntos não percebo nada.

Se eu fosse profissional da cultura numa cidade que reunisse inúmeras potencialidades para ser uma grande capital da cultura, potencialidades essas que tivessem sido ignoradas, desprezadas, combatidas, ostracizadas e, nos casos mais bem sucedidos, destruídas pelos responsáveis políticos dos últimos vinte anos, no momento em que percebesse que o governo escolhera outra cidade havia de encolher os ombros, sorrir e entreter-me a escrever um texto que desse conta do quão surreal é esta história toda.

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