23 de outubro de 2006

palmilhas

O mais curioso naquela sapataria não era a tabuleta na porta a anunciar concertos em calsado, nem a parede de madeira com sapatos pendurados em pregos exibindo as suas solas de borracha a quem entrava, nem o arco triunfal que deixava perceber a oficina lá atrás, nem o expositor de saltos e tacões oscilando por cima da porta entreaberta para o wc, nem o balcão de madeira com um tampo de vidro estilhaçado, nem as latas de graxa em lugar de destaque na vitrina, nem a senhora de cabelo despenteado a olhar-nos por cima dos óculos como quem diz assim que entramos o que é que este quer agora, nem a voz do marido que ouvimos na oficina, nem os protectores para pisadelas a um euro e meio, nem a paciência da cliente à nossa frente cuja encomenda se ficou pela metade, nem a variedade de sacos imundos em que nos entregam o serviço, nem o aspecto lunático do sapateiro que sobe por fim ao palco, orgulhoso do seu trabalho, nem os dez euros que nos cobram por dois pares de capas minúsculas, nem a inibição que tudo isto nos provoca na hora de pedir recibo.
O mais curioso naquela sapataria era mesmo a gaiola com o canário amarelo, pendurada entre as formas e o rolo de pele curtida com que se fazem as palmilhas.

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