31 de agosto de 2006

manual

4. Ao contrair o artigo definido feminino sigular "a" com a preposição simples "a", agrave o acento utilizado.
Evitará assim agudizar a impaciência dos seus leitores.

30 de agosto de 2006

arqueologia

Sob as camadas de posts que se vão sucedendo neste blog, é já possível fazer alguma arqueologia e descobrir, quase por acaso, alguns achados interessantes, embrulhados nos comentários.
Para além do lixo, há a sintonia e há os excessos de generosidade próprios das pessoas boas, aos quais é impossível responder sem que se caia na mais das pegadas lamechices.

28 de agosto de 2006

xiv

- Pois é, lá isso.

Ele a fingir que se acalma, consegue meter a terceira, buzinar ao autocarro, insultar um ciclista e posicionar a rainha numa fracção de segundo

- Olhe para isto, o dia inteiro aqui sem fazer nada

a apontar para uns pretos que circulam no passeio, eu a topar a jogada mas sem saber o que fazer, a torre da esquerda, uma só casa e a medo

- Hmm

Ele sem misericórdia, a topar-me inseguro

- Isto agora está cheio deles, qualquer dia

são mais do que nós, eu a antecipar-lhe a jogada mas só me ocorre fugir, desvio a rainha, felizmente o jornal no tabliê, um título que identifico

- Então ele sempre se vai embora?

Ele baralhado, a entreter com um peão, a tentar perceber

- Como diz?

Eu preso no meu bluff, como é que se chama?, a ajeitar um cavalo e com um gesto do queixo

- O treinador. Fala-se disso.

O taxista a topar-me, destes como eu ao pequeno-almoço e a comer-me a rainha com o bispo

- Áh, não sei, isso é lá com eles.

Mas eu a dar luta e a vingar com a torre a rainha morta, eu pedro, o cruel, a papar o bispo pelas costas e a arrancar-lhe o coração

- Áh bom, então somos os dois campeões.

Ele a distrair-se, ainda inebriado pela rainha tombada, um peãozito ao acaso

- Também é do glorioso?
- Pois claro

e a trazer-lhe o outro bispo com um cavalo, mesmo sabendo que depois ele com a rainha, numa luta desigual

- Então e vamos votar?

Ainda penso em fugir, a viagem de avião, não vou chegar a tempo, mas que diabo, um homem ou um rato?, e outro peão, devagar, envergonhado

- Sou só simpatizante, nunca me fiz sócio

Ele sem perdoar, vê o rei ao alcance e com a rainha, outra vez, xeque

- Ora pois isso é que faz mal. Se fôssemos todos sócios ninguém nos parava.

Eu, que remédio, a concordar, a adiar o fim, um passo para o lado

- Pois.

26 de agosto de 2006

pia



Quem nunca derramou pensamentos menos generosos sobre a banca da cozinha que atire a primeira faca.

25 de agosto de 2006

colecção

Deu por si a coleccionar imagens para shopping.
Já tinha duas: automobilistas com um papel na boca a fazer manobras arriscadas na sub-cave e mancebos casadoiros aguardando orgulhosos pelas suas rapariguinhas perfumadas enquanto elas fecham a caixa e descem as persianas das butiques.

xiii

- Isto vai demorar.

chegado de Algés e nem tempo para uma cerveja, logo um pintas de malas aviadas

- Para o aeroporto, se faz favor.

A apetecer-lhe mandar-me à merda, pressinto-o na impaciência com que vai dedilhando o volante, o vidro, a manette das mudanças, logo um pintas de malas aviadas a propor-lhe um serviço que nem dá para o gasóleo. O verde a cair, ganha balanço e alivia o semblante, é a vida, antes isto que um preto a espetar-me uma faca, há-de pensar, e eu consolo-me por não ser preto e pelo alívio que apesar de tudo isso lhe há-de proporcionar.

- Isto é que está um trânsito,

digo, com um

- hã?

esperançado no final da frase para quebrar o gelo, a ver-lhe os olhos irónicos emoldurados pelo crucifixo a fitar-me antes de corresponder

- É verdade, a esta hora
- Já se sabe

Os dois em coro e uma nova pausa, os dois a sabermos que agora é do tempo, falas tu ou falo eu

- E este calor

Foi ele, a duplicar a jogada, eu finjo que não noto e avanço com o cavalo

- Está demais. Uma chuvinha não calhava nada mal.
- Está bom é para quem está na praia.

Ele a arriscar, a abrir o jogo, o bispo numa diagonal temerária. Reservo o ataque para mais tarde e continuo a organizar-me, um peão cauteloso

- É, mas para quem cá está a trabalhar é dificil.

Mas ele desabrido, ao quinto semáforo e a rotunda ainda longe, a torre por ali fora

- Isto quem quer trabalhar, trabalha de qualquer maneira. Agora esses calões que para aí andam
Eu a ver o caso mal-parado, ainda nem sequer saímos da avenida, melhor recuar o cavalo

- Pois é, lá isso.

24 de agosto de 2006

amanhã

Antonella Cinelli "Quel gesto quotidiano", 2003
tecnica mista su tela, cm 100X115
Você nunca
se levantou, fez xi-xi, repensou o almoço, tomou banho, se vestiu, deu um beijo, ligou a telenovela, tomou o pequeno-almoço, pôs café a fazer, foi comprar pão, pôs a mesa para o pequeno-almoço, espreitou a telenovela, inspeccionou o frigorífico, limpou a loiça, deu um jeito à sala, deu um beijo a quem sai, fez a cama, pôs a máquina a lavar, montou a tábua, preparou o almoço, pensou o jantar, espreitou a telenovela e à hora do noticiário
- O almoço está pronto, podem vir.
Você nunca
levantou a mesa, lavou a loiça, deu um jeito à sala, tirou comida da arca, pensou hoje ainda é capaz de chover, ligou a telefonia, ligou o ferro, estendeu ainda assim a roupa lá fora, passou a ferro, inspeccionou a despensa, repensou o jantar, fez uma lista de compras, pôs a mesa, espreitou a telenovela e à hora daquele programa
- Quem quer vir lanchar?
Você nunca
levantou a mesa do lanche menos a toalha, se foi aviar ao mini-mercado, se alegrou com a brisa quente que é boa para secar a roupa, poisou os sacos das compras, pôs a panela ao lume, descascou os legumes, pensou o almoço, espreitou o concurso, preparou o jantar, deu um beijo a quem chega, trocou as toalhas, pôs a mesa e à hora do telejornal
- O jantar está pronto, podem vir.
Você nunca
levantou a mesa, ajeitou as cadeiras, limpou a loiça, lavou a loiça, repensou o almoço, pensou o jantar, tirou comida da arca, deu um jeito à cozinha, inspeccionou a roupa estendida, apanhou a roupa, deu um jeito à sala, adormeceu com a telenovela e à hora do filme de acção
- Vou-me deitar, até amanhã.

23 de agosto de 2006

paisagem




"Se quiser, deduza o mundo duma premissa falsa, mas não lhe exija bom senso."

Carlos de Oliveira, Finisterra paisagem e povoamento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003 (ed. original 1978).

22 de agosto de 2006

verdade



"a verdade é mais estranha que a ficção porque não é obrigada a obedecer ao possível"

Rubem Fonseca, "Mandrake e a bíblia da Mogúncia", Mandrake: a bíblia e a bengala. Porto: Campo das Letras, 2006.

21 de agosto de 2006

urbano

Você nunca amanhou uma terra, nunca podou uma vinha, nunca deu calda às macieiras, nunca apanhou as batatas, nunca embraçadou as cebolas, nunca viu o vizinho a roubar-lhe fruta, nunca foi apanhar a camioneta à estrada, nunca fugiu do violador da motorizada, nunca sentiu o calor do incêndio, nunca enfeitou a capela, nunca fez um funeral a pé, nunca foi beber café ao salão aos domingos, nunca chorou pelos filhos a partir, nunca chorou pelos filhos a chegar mesmo que só no natal e no agosto, nunca lavou roupa na ribeira, nunca pôs as camisolas a corar na várzea, nunca foi fechar as galinhas, nunca regou os feijões de madrugada, nunca mondou um alfobre, nunca foi só ali apanhar uns repolhos, nunca foi ao mato, nunca encheu uma saca de pinhas, nunca foi dar comer ao porco, nunca ouviu o guincho do bácoro a correr na calçada fugindo da faca, nunca sentiu o cheiro da manhã dentro de um palheiro, nunca foi mordomo da festa de nossa senhora, nunca amassou nem tendeu nem beliscou nem cozeu no forno comunitário a broa de milho, nunca foi ao médico à casa do povo, nunca fez encomendas ao carteiro, nunca confundiu a buzina do padeiro com a do peixeiro antes de se lembrar que hoje afinal é quarta-feira, nunca fez queijo de cabra, nunca aprendeu que borregos não são só os filhos da ovelha, nunca fez sopa numa panela de três pernas, nunca enxotou o gato do fumeiro, nunca amaldiçoou a borboleta mais o escaravelho mais o míldio, nunca chamou nomes ao senhor da cooperativa, nunca pediu favores ao taxista, nunca deixou o seu nome na venda, nunca discutiu as extremas com os vizinhos, nunca deixou a serventia, nunca criticou quem deixa a terra de relva, nunca contou na taberna que ontem à noite sabem quem vi ali no meio do milho, nunca assistiu ao fecho da escola primária, nunca festejou o alcatroamento da estrada, nunva viu chegar a luz eléctrica, nunca soube onde é a captação da água, nunca deixou a chave na porta, nunca partilhou arraiais estivais com políticos em campanha, nunca fez excursões ao hospital ou à maternidade com paragem no hipermercado, nunca, você nunca, vossa mercê é um urbano.

20 de agosto de 2006

sugestão

À cidadã ou ao cidadão que entrou neste blog porque procurou no google com a seguinte chave "mensagem para telemóvel de melhoras", tomo a liberdade de sugerir a seguinte:
"AS MELHORAS".

18 de agosto de 2006

xii

- Nada a fazer.

Sendo assim desisto, ajeito a correia da mala, que pesada que está, e continuo a andar. Paragens de autocarro, buracos no passeio, semáforos, sinais de trânsito, copos para moedas, colchões e cobertores de cartão, lixos vários, sarjetas abertas, uma cidade imunda à custa dos ares-condicionados que plastificam o ambiente asséptico dos prontos-a-vestir, dos prontos-a-comer, dos prontos-a-emprestar.

- Liquidação total

ou até

- Rebajas

para quando a camioneta que quase me atropelava parar, o guia a dizer-lhes

- Rossio, Rua Augusta, Praça da Figueira, Castelo de São Jorge, daqui a trinta minutos no autocarro, trinta minutos.

E afinal vão todos para a pastelaria comprar bolinhos e chocolates em caixas douradas enquanto aguardam a sua vez para ir à casa de banho.
Eu também na fila, três pessoas à minha frente que entram zangadas para o taxi que travou em cima delas, sou o próximo e entretenho-me a decidir se no banco da frente ou de trás, decisão difícil, hesito e nem dou pelo Mercedes que se aproxima, pelo senhor que já me leva as malas para o porta-bagagens e o fecha com estrondo, agora sim, pela porta de trás

- Para o aeroporto, se faz favor

Responde-me o crucifixo pendurado no retrovisor, a acenar com os solavancos da primeira, da segunda, uma aceleração brusca que termina no primeiro semáforo da avenida, um lençol de carros à nossa frente e eu a pensar isto vai demorar.

16 de agosto de 2006

xi


maquinal, já esquecido de mim, mais um gajo sozinho, se soubesses, minha querida, a quantidade de gente sozinha que vai lá ao café, tu nem imaginas. Ele para a mulher, imagino-o a chegar a casa

- Esta coluna, está cada vez pior

Os filhos já criados, formados, engravatados a trabalhar na agência, a gastar a hora do café com loiras platinadas enquanto espiam a porta de entrada e a passar cheques sorrateiros como trocavam cigarros atrás dos pavilhões novos na escola secundária.
Eu sem loiras, sem cheques, sem filhos e contudo a espiar a porta de entrada por onde acabo de sair, carregado de malas e a enfrentar o calor e as gentes, as vozes, o chiar dos autocarros, raspando nas paredes sujas, a querer fundir-me nelas e ficar ali, atrás da caixa das comunicações, dentro do mupi que anuncia iogurtes dietéticos, num sítio qualquer onde ninguém me visse, no máximo uma vez por semana uns senhores a alimentar-me, a tirar o iogurte e a tapar-me com um refrigerante, tons tropicais, saúde, alegria, agitação, energia, eu quase sem ela, a desviar-me dos outros em sentido contrário, telemóveis, jornais, sacos de compras, a fazer que não vejo o pedinte, o cãozinho, o moço do inquérito a propor-me o primeiro andar

- Tem cinco minutos?

Tenho mas não lhos dou, tenho mas não lhos quero dar, preciso deles, é nestes cinco minutos que eu vou aproveitar para

- Cuidado!

Pressinto o autocarro atrás de mim, encostado ao passeio, se me virasse percebia que afinal uma excursão, uma camioneta espanhola e nem sequer é semana santa mas eu a aproveitar, é agora, a vigiar-lhe o avanço por cima do ombro e depois aproveitava, no momento certo, uma fracção de segundo, a desequilibrar-me, a fingir que me desequilibrava

- Um acidente, coitado.

A deixar-me cair, a estragar-lhes as férias, o condutor sem tempo para se afligir, só o pé no travão mas tarde demais, a pancada seca, as rodas por cima do meu corpo, esmagado pelo peso da camioneta, e de repente uma roda de gente, gritos, a cidade parada, o mundo parado, só a ambulância que o senhor do quiosque mandou chamar, deixem-no respirar, deixem-nos trabalhar, deixem-me viver, deixem-me.

- Nada a fazer.

manual

3. Ao terminar o seu banho numa banheira em relação à qual não tenha a certeza de ser o único utilizador, retire do ralo os cabelos e eventuais secreções que o seu corpo tenha higienicamente libertado.
Evitará assim que outros tenham que fazê-lo por si.

15 de agosto de 2006

cessar

Um cessar-fogo é sempre uma boa notícia.
Tão boa, que eu não me atrevo a estragar o momento, perguntando a todos aqueles que defenderam a necessidade da guerra do líbano (agora que Israel deu a ofensiva por terminada) o que é que se ganhou com isto.

13 de agosto de 2006

prótese

Foi quando descobriu que os seus amigos se contavam pelos dedos de uma mão mutilada que resolveu comprar a prótese.

x

- A conta, por favor.

Enquanto ela não vem a televisão, o sindicalista a arrumar os papéis, a apresentadora a arrumar os papéis, tudo resolvido, amanhã despachamos a crise nas pescas, depois os prognósticos para o campeonato, o mundo às postas, gavetas que se abre, remexe e volta a fechar, insuportável se assim não fosse.
Ao meu lado, na gaveta, na mesa, do canto, um casal de turistas louros descobre nos papéis o melhor caminho para a Torre de Belém, podia ajudá-los, dizer-lhes esta estação de metro em obras, mais vale apanhar o eléctrico, very typical, mas não me apetece. Além disso podiam levar a mal, tirar-lhes assim o prazer do imprevisto, chegar a casa e não ter nada para contar

- Que aventura, nem imaginas

E em vez disso

- Um estúpido qualquer, a querer ajudar-nos, vê lá só. Nunca dês ouvidos a estranhos.

Por isso não vou lá, têm tempo para se perder, quero lá saber. Lá ao fundo a dar nas vistas um homem engravatado, funcionário de banco, era capaz de apostar, gasta a hora do café com uma loura platinada, a fazer beicinho, de certeza a pedir-lhe

- Quando é que lhe contas

e a desviar o cabelo, amuada, das mãos trémulas do delegado de informação médica

- Sabes que não posso viver sem ti

O vendedor de seguros cada vez mais nervoso, a olhar para o relógio, a vigiar a porta do café, a certificar-se que nas outras mesas ninguém

- E além disso os miúdos.

Ela um beicinho, ele um beijinho, um segredinho, um sorrisinho. Ele um agente imobiliário a tirar a carteira, a passar um cheque. A sua desgraça.
O empregado discreto traz-me então

- Ora cá está.

Eu com o dinheiro já em cima da mesa, a juntar as malas, a receber o troco.

- Boa tarde, obrigado.

12 de agosto de 2006

azeite

- Eu já não sei nada
disse-me depois de te ver e tu, o que passará pela tua cabeça de menina de seis anos a quem trocaram um fígado imprestável por um pedaço da tua mãe e aparentemente colou, está a funcionar, a natureza (a natureza?) é isto mesmo, mas agora a vesícula, essa puta que não pára de pingar um azeite
- Parece azeite
um azeite viscoso que a gente deixa cair num pano branco e faz uma auréola como se fosse azeite
- Parece azeite
que pinga da tua vesícula por um tubinho a que chamam dreno, os doutores.

aguentar

Cá estamos, querida, cá estamos, do lado de fora da janela que quiseste fechar, cá estamos.
Ainda um sobressalto a cada toque do telefone, ainda a expectativa à chegada de quem te foi ver
- Como é que ela está?
E os mensageiros cansados, olheirentos, a acenar que sim, receosos de que não e eles, e nós, sem dar por nada, com medo de que de repente, a história do gato escaldado.
Ainda que por enquanto os telefones só
- Como é que ela está?
e nós sem saber bem, na verdade, mas a acreditar que sim, a querer que sim e a encolher os ombros
- Lá está.
Outros a perguntar por todos, a receitar paciência e força e fé, tomar de oito em oito horas, nós a enganar o boticário e a tomar tudo às colheradas em todos os minutos que estamos à tua espera
- Temos que se aguentar.

10 de agosto de 2006

ix

O que é que preferes? Sei que vou lembrar-me do D’Artagnan, não, do Dartacão, e dos cavalos a galopar na calçada molhada, a cidade adormecida, as arcadas, a fazer travagens bruscas naqueles enormes pátios, o que achariam da pirâmide onde me vou deixar fotografar por uma turista japonesa. Mais os três mosqueteiros, o gordo, o poeta e o sensato, todos te estranhando, D’Artagnan, não, Dartacão, todos te estranhando ao princípio mas rapidamente (uma rixa, um duelo, uma prova de virilidade) se submetendo ao teu carisma, amigos para sempre, fieis para sempre, sim, um por todos e todos por um, sim, como queiras, D’Artagnan, não, Dartacão.
Só a Julieta se fazia difícil, mulher decidida, se bem me recordo. Dumas criou mulheres assim, boas ou más
(confesso-te agora, sempre amei Milady, uma atracção irresistível)
mas fortes, decididas, insubmissas. Deve ser gira a França, ou pelo menos paris. Estátuas douradas brilhando ao sol, barcos achatados por baixo das pontes, ena tantas!, arquitectura socialista nos subúrbios, escolas enormes, hospitais imponentes, a rápida passagem da aristocracia, do império, para a social-democracia decadente. O que vem a seguir?
Rue de la Paix, Place de la Concorde, mas também a coluna na Place Vendôme, os canhões capturados aos vencidos alimentando o luxo dos vencedores, a Sorbonne sitiada, vi-a ontem na televisão, o centro do Mundo, um vulcão a acordar e nós a achar que é uma questão legislativa, o governo recua e fica tudo bem, tudo como dantes, tudo bem.
Les Boulevards, Les Magasins
Les Invalides

Bom, vou para lá. Adeus país, adeus Lisboa, que por agora é só você, senhor fardado a quem peço

- A conta, por favor.

9 de agosto de 2006

tragédia


Medeia
Recriação Poética da Tragédia de Eurípides
Tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen
Prefácio de Frederico Lourenço
Lisboa, Editorial Caminho, 2006.



Quanto mais o mundo avança, mais me apetece ler os gregos.

manual

2. Ao voltar a pôr no sítio o carrinho das compras no estacionamento do hipermercado, escolha uma fila que ainda não esteja a transbordar para a faixa de rodagem - são só mais dois passos.
Evitará assim a criação e o desenvolvimento de engarrafamentos, mediáticos choques em cadeia e, até, a deterioração do património das multi-nacionais da distribuição.

8 de agosto de 2006

brincadeira

Tudo começou como uma brincadeira inocente, uma troca de posts com mimos cifrados.
Depois veio o calor e abalaram os dois. Deixaram a casa, a família, as mulheres, os filhos e os netos, os empregos e os telemóveis, os carros, os autocarros e os comboios, montaram as suas btt de alumínio e abalaram rumo ao pôr-do-sol até que, do lado de quem os via, não eram já mais do que duas silhuetas, ofegantes mas felizes.

4 de agosto de 2006

viii

O telemóvel ainda em repouso, eu a tomar conhecimento da queda do nasdaq, o psi20 ainda se aguentou mais ou menos, o sindicalista parece preocupado enquanto ouve os cidadãos a insultar o governo mas também os trabalhadores

- Antes do 25 de Abril não havia cá destas coisas.

E aí a apresentadora diz muito obrigado, quer comentar, temos pouco tempo, o jornal das cinco já a seguir, até amanhã. Sempre a sorrir, esquecendo-se do petróleo, das cheias na Hungria, do massacre no Sudão, da greve da função pública.

- Foi um prazer estar consigo

no mesmo tom em que a outra

- Gostei muito de o servir.

tal e qual como a outra

- Cumprimentos à esposa.

Mas a esposa não está, sem bateria talvez ou então angustiada, a tentar descalçar a bota, sempre quero ver como

POIS EH AMOR, JAH ME ESQ
UECIA. FAZ BOA VIAGEM TE
LEFONA QD CHEGARES.
PARIS EH LINDO.

Já mo tinham dito, sim, creio até que tu, embora prefiras Nova Iorque

- É mais cosmopolita, sei lá.

Agora vou lá eu, depois digo-te o que achei, se não voltar mando-te um postal com a torre eiffel ou com o arco do triunfo, ou com nôtre-dame, sei lá, o que é que preferes?

passos

Ao NS, que me descobriu na blogosfera e cujo som dos passos, mesmo que perdidos na capital, se continua a ouvir nesta província adormecida.



"I say the floor here, now bare, this strip of floor, once was carpeted, a deep pile. Till one night, while still little more than a child, she called her mother and said, Mother, this is not enough. The mother: Not enough? May - the child's given name - May: Not enough. The mother: What do you mean, May, not enough, what can you possibly mean, May, not enough? May: I mean, Mother, that I must hear the feet, however faint they fall. The mother: The motion alone is not enough? May: No, Mother, the motion alone is not enough, I must hear the feet, however faint they fall."

Samuel Beckett, "Footfalls", The Complete Dramatic Works. London: Faber and Faber, 1986.

ganhar

Outras vez as

- BOAS NOTÍCIAS

outra vez eu a querer espalhá-las, a fazer forward dos telefonemas que recebo com

- BOAS NOTÍCIAS

ainda que agora, depois do susto

- Esperemos que tenha sido só

um susto valente, as protejamos com aparentementes e por-agoras e até-veres, nos inquietemos ainda, numa vontade sofrida, nos refugiemos em palavras que não ousamos proferir, não vá o diabo tecê-las.
Um susto valente, um buraquito na estrada que havemos de alcatroar, uma pedra no caminho onde havemos de saltar e correr e jogar à macaca, com as regras que quiseres, a fingir que não vês que eu vejo que tu

- batoteira!

e a rirmo-nos os dois e tu a dizer-me

- Ganhei.

É claro que ganhaste, minha querida, é claro que ganhaste.
Vamos todos ganhar.

2 de agosto de 2006

vii

- O seu cafezinho.

Mais o papelinho, mas isso o empregado não disse, talvez envergonhado, talvez compadecido, talvez a achar-me com cara de quem merecia aquele café, talvez só cansado de ter que parecer simpático aos olhos dos clientes.
A vibração do telemóvel, um apito suave no bolso do casaco e eu sem mais mãos, o café, o cigarro já aceso, igual ao do cow-boy, e o telemóvel que espere até que por fim me decido, uma mensagem tua

HOJE REUNIAO ATE TRD N VOU JANT
AR N ESPERES POR MIM BJ AT AMAN
HA

O telemóvel que espere, o café a arrefecer, apago o cigarro

- Arranjava-me um copo de água, por favor? Obrigado.

E depois a escrever

- Obrigado

depois da água

AMANHA CONCERTO PARIS AVIAO 19.
30 VOU AGORA APANHAR TAXI AT DO
MINGO BJO

Portanto não ia esperar por ti, de qualquer maneira, não ia, não é? Lembras-te agora, até nos despedimos ontem quando cheguei do ensaio e tu já deitada, adormecida ao pé das cópias daquele processo que te anda a atormentar

- E se este gajo não for inocente?

Lá vou tentando acalmar-te, é o teu papel defendê-lo, acreditar nele até prova em contrário, é natural que tenhas dúvidas, é próprio do ser humano, filosofias baratas que destróis rapidamente quando me interrogas

- E se foi ele?

E eu fujo para a garrafa de vinho e insinuo-me ofendido, não sou testemunha, não sou arguido, não sou parte interessada, não sou.
E além disso esqueceste-te de que vou a Paris. E se gostasse, se ficasse por lá? Adivinho o teu remorso no compasso de espera enquanto acendo outro cigarro.
O telemóvel