31 de outubro de 2006

inocente

Era um homem tão inocente, mas tão inocente, que a guilhotina se encravou de remorsos.

30 de outubro de 2006

27 de outubro de 2006

abertura

Há (muito poucos) dias assim.
Obrigado, Braga, e a quem em nome da cidade conseguiu oferecer ao país este magnífico Teatro.

caminho

Ao princípio tive esperança. Teria preferido mil vezes que me não vissem, que não dessem por mim, que me deixassem cosido contra o acrílico, disfarçado de nada.
Mas depois, quando a histriónica rapariga do rouco riso e o excitado rapaz das rotas roupas me vieram recordar o fedor do vomitado que sempre se segue ao coktail de águas de colónia, after-shaves e espumas de cabelo, não pude resistir.
Num ápice, arrumei as tralhas, levantei-me, desembainhei o guarda-chuva e com ele abri, entre a multidão raivosamente divertida, o caminho por onde fui a pé a para casa.

26 de outubro de 2006

fauce

FILOCTETES

Ó aves rapaces e feras
de olhar flamejante, que habitais
os montes desta região,
nunca mais da minha gruta vos acercareis
para logo fugirdes. Já não tenho nas mãos,
como dantes, a força dos meus dardos.
Oh! como sou desgraçado agora!
Livre fica este lugar,
não mais é temível para vós
Vinde, que a altura agora é bela
para saciar a gosto as fauces vingadoras
na minha carne corrompida.
Em breve deixarei a vida.
Donde me virá subsistência?
Quem pode de brisas nutrir-se,
quando já não possui nada
de quanto produz a terra fecunda?

Sófocles, Filoctetes (tradução, introdução e notas de José Ribeiro Ferreira). Lisboa. Edições 70, 2005 [v. 1146-1162].

25 de outubro de 2006

b)

- Sei, e pronto.

Eu ainda a duvidar, mas tu sem o sorriso com que te davas por vencida das outras vezes.

- Tens razão, se calhar sou mesmo hipocondríaca.
- Áh, mas não tenhas dúvidas.

em que no final nos abraçávamos e eu para te tranquilizar te dizia, desde o tempo em que nos amávamos, que não ia deixar que te acontecesse nada

- Dá-me um abraço, deixa-me abraçar-te.

Desta vez sem esse sorriso, só

- Sei, e pronto.

E o olhar preso na televisão onde recomeçara a telenovela, sem uma expressão, sem dor, sem medo, sem nada, só um

- pronto

determinado, um ponto que me dizias final, mas eu ainda baralhado, eu confuso, eu, confesso, ligeiramente irritado por me teres estragado o prazer da vitória, três a zero numa jornada europeia, uma noite histórica, uma noite mágica

- Uma noite mágica!

como disse o comentador desportivo, como amanhã sairá em todos os jornais, como eu diria se tu não, com essa conversa que alguém

- Quem é que te meteu isso na cabeça?
- Ninguém. Sei e
- Pronto, não se fala mais nisso. Vou dormir até amanhã.

Lembro-me como se fosse hoje.

24 de outubro de 2006

cartazes

Um conjunto de silhuetas humanas em contra-luz, no que parece ser um ambiente de festa. A maioria pretas mas cinco, no meio delas, vermelhas, atingidas por raios da mesma cor que caem de uma garrafa de espumante suspensa do céu estrelado.
“O álcool está entre nós...”

Uma mesa posta. Uma toalha creme com motivos primaveris bordados a branco no centro de quadrados desenhados a vermelho. Grande plano de um prato raso – porcelana branca com flores pintadas. Garfo, faca, copo e guardanapo de papel nos locais próprios. Dentro do prato, no lugar da comida, uma garrafa de vinho (do produtor), uma garrafa de cerveja e um copo de vidro castanho.
“O álcool não alimenta... mas engorda!”

Troncos e cabeças de jovens (sobretudo rapazes) eufóricos num concerto de música. Foto a preto e branco a partir da frente do palco. Os olhos das pessoas tapados com rectângulos coloridos como as faculdades.
“O álcool queima... Não faças fitas!”

Fundo azul. Rodapé de manjericos, cabeçalho com balões de marchas populares. Ao centro, uma banda filarmónica de barro e réplicas dos três santos de junho simulando o beber um copo.
“Festas e álcool? Com conta e medida... (nem os santinhos te valem)”

Foto-montagem em cinco planos. Gruas, lá atrás; chaminés de cerâmicas, logo a seguir; uma fábrica das antigas, daquelas com o telhado aos bicos, a meio; um bloco de apartamentos semi-construído, um pouco mais à frente; dois capacetes de obra no chão, em cima de uma poça de vinho (de sangue?) e dos cacos de uma garrafa partida.
“A (in)segurança está em Ti... (com) sem Álcool”

23 de outubro de 2006

palmilhas

O mais curioso naquela sapataria não era a tabuleta na porta a anunciar concertos em calsado, nem a parede de madeira com sapatos pendurados em pregos exibindo as suas solas de borracha a quem entrava, nem o arco triunfal que deixava perceber a oficina lá atrás, nem o expositor de saltos e tacões oscilando por cima da porta entreaberta para o wc, nem o balcão de madeira com um tampo de vidro estilhaçado, nem as latas de graxa em lugar de destaque na vitrina, nem a senhora de cabelo despenteado a olhar-nos por cima dos óculos como quem diz assim que entramos o que é que este quer agora, nem a voz do marido que ouvimos na oficina, nem os protectores para pisadelas a um euro e meio, nem a paciência da cliente à nossa frente cuja encomenda se ficou pela metade, nem a variedade de sacos imundos em que nos entregam o serviço, nem o aspecto lunático do sapateiro que sobe por fim ao palco, orgulhoso do seu trabalho, nem os dez euros que nos cobram por dois pares de capas minúsculas, nem a inibição que tudo isto nos provoca na hora de pedir recibo.
O mais curioso naquela sapataria era mesmo a gaiola com o canário amarelo, pendurada entre as formas e o rolo de pele curtida com que se fazem as palmilhas.

21 de outubro de 2006

consciência

Tinha a sua consciência tão tranquila, mas tão tranquila, que a deixou adormecer.

a)

- Lá estás tu, que parvoíce!
- Estou-te a dizer.
- E como é que sabes, não me dizes?
- Sei.
- Mas sabes como?
- Sei e pronto.

Como se fosse hoje, uma conversa que não me sai da cabeça, onze anos e é como se fosse hoje, uma terça-feira à noite, tu sentada no sofá, a telenovela a chegar ao intervalo e eu a mudar para o futebol, à espera que reclamasses, que te zangasses na brincadeira, que resmungássemos os dois um bocadinho, amigáveis, conscientes da vida a dois. Mas tu nada, acho até que já nem estavas a prestar atenção à televisão, lembro-me de ter metido conversa.

- Então estes dois agora estão juntos?

E tu não me respondeste, descobri depois que já não estavas interessada naqueles dois, mesmo que as revistas anunciassem que na vida real também, beijos e abraços numa ilha do pacífico, palmeiras, espreguiçadeiras e uma piscina que podia ser nas traseiras de um hotel qualquer em Lisboa mas não, no pacífico, pelo menos dois repórteres a acompanhar o casal para uma capa e quatro páginas a cores em que nos impingiam a felicidade dos recém-namorados.
Tu já não estavas interessada neles como antes fingiste estar, tu a ver a novela só para enganar o tempo, esse que de repente percebeste que te falta, porque

- Sei, e pronto.

portas



O bom dos teatros é que as portas abrem sempre para fora.

Só lá fica quem quer.

19 de outubro de 2006

matéria

estreia hoje, em vila nova de paiva.

lugar

PALAVRAS

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.

Manoel de Barros, Ensaios Fotográficos, São Paulo, Editorial Record, 2000.

18 de outubro de 2006

desejo



GRANDE DESEJO

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
pra chorar, chorar e chorar.
requintada e esquisita como uma dama.

Adélia Prado, Bagagem, Rio de Janeiro: Editorial Record, 2002 (ed. orig. 1976); Lisboa: Livros Cotovia, 2002.

17 de outubro de 2006

ordem



A menina apareceu grávida de um gavião.
Veio falou para a mãe: O gavião me desmoçou.
A mãe disse: Você vai parir uma árvore para
a gente comer goiaba nela.
E comeram goiaba.
Naquele tempo de dantes não havia limites
para ser.
Se a gente encostava em ser ave ganhava o
poder de alçar.
Se a gente falasse a partir de um córrego
a gente pegava murmúrios.
Não havia comportamento de estar.
Urubus conversavam sobre auroras.
Pessoas viravam árvore.
Pedras viravam rouxinóis.
Depois veio a ordem das coisas e as pedras
têm que rolar o seu destino de pedra para o resto
dos tempos.
Só as palavras não foram castigadas com
a ordem natural das coisas.
As palavras continuam com os seus deslimites.

Manoel de Barros, Retrato do artista enquanto coisa. Rio de Janeiro/São Paulo: Editorial Record, 2002 (ed.orig. 1998).

trabalho

- Como diz?
- Digo que o trabalho em produção artística é como o acto sexual: começamo-lo entusiasmados, transpiramos em posições incómodas, e no fim um prazer, forte mas fugaz, seguido do vazio que antecede a próxima excitação.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- Quem se não deixa absorver pelo trabalho poderá apenas fingir os seus orgasmos.
- Como diz?

oráculo



ARTE

Das tripas,
coração.


Adélia Prado, Oráculos de Maio. São Paulo: Editorial Siciliano, 1999.

14 de outubro de 2006

culpa

Uma imprevista dedicatória, a propósito de culpas, espirros, arrotos, tolerâncias e outras dores.



De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Foi assim desde menina
Das lésbicas concubina
Dos pederastas, amásio
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques de ginásio
Mas também dá-se amiúde
Aos velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir:
"Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni"

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme Zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do Zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo: "mudei de idéia
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniqüidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir"
Essa dama era a Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela prisioneiro
Acontece que a donzela
E isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
"Vai com ele, vai, Geni
Vai com ele, vai, Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni"

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nesta noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu Zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou pro lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
"Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni"


"Geni e o zepelim"
(Chico Buarque de Hollanda)

12 de outubro de 2006

capital

Se eu fosse ministra da cultura e me coubesse iniciar a preparação de uma capital europeia da dita, havia de querer que ela não fosse um mero fogacho de ocasião. Havia de gostar de a articular com uma (ténue que fosse) estratégia de desenvolvimento cultural para o país. Excluídas as duas maiores, havia de seleccionar quatro ou cinco cidades de média dimensão e conversar com os agentes políticos, educativos e artísticos nelas sediados, aferindo dos seus interesses, das suas motivações, das suas potencialidades. Havia também de definir meia dúzia de critérios objectivos, nos quais incluísse variáveis demográficas e económicas, sim, e o património histórico e cultural, também, e o nível de equipamentos disponíveis e a serem disponibilizados, ainda, mas onde a pujança e a sustentabilidade da criação artística local assumisse lugar de destaque. Na hora do anúncio público da escolha que fizesse, havia de fundamentar devidamente a opção tomada e havia de querer envolver a autarquia local desde o início do processo, evitando apanhá-la de surpresa.

Se eu fosse vereadora da cultura da cidade escolhida para capital europeia da cultura para daqui a seis anos e tomasse conhecimento do facto de surpresa numa cerimónia pública, havia de comover-me, sim, mas com a irresponsabilidade dos governantes que adoptam tais comportamentos. Havia ainda assim de me regozijar, naturalmente, e de começar a trabalhar rapidamente com os agentes locais. Antes, porém, havia de exigir ao governo uma clarificação urgente sobre aquilo que pretende com esta iniciativa e qual o grau de comprometimento que está disposto a assumir. Havia de lembrar à senhora ministra que estímulos e prémios simbólicos são bons e agradecem-se mas não pagam rendas de casa.

Se eu fosse presidente de câmara de uma outra cidade média que efectivamente tivesse querido ser, a sério, capital europeia da cultura, havia de começar a trabalhar com uma década de antecedência, assegurando condições mínimas de trabalho aos criadores culturais profissionais, construindo, recuperando e colocando a funcionar equipamentos qualificados, definindo em colaboração com outras entidades um programa de longo prazo, com objectivos claros e ambiciosos. Havia de assumir a cultura como prioridade no desenvolvimento da cidade, havia de escolher para a área um vereador minimamente conhecedor, razoavelmente competente e sobretudo capaz de dinamizar um clima de confiança, co-responsabilidade, motivação e entusiasmo com os agentes culturais locais. Se, somado a isto tudo, tivesse a sorte de ser presidente de câmara numa cidade que tivesse a maior população estudantil do país, que ocupasse uma posição central do ponto de vista geográfico, que tivesse uma das mais antigas e internacionalmente reconhecidas universidades da europa, que possuísse um assinalável património arqueológico, monumental e bibliográfico, que tivesse estruturas de criação e de programação artística (em diversas áreas) de referência a nível nacional, então eu havia de ser capaz de elaborar um projecto que o governo do meu país não pudesse recusar, evitando a triste figura das lamúrias tardias e ressabiadas.

Se eu fosse vereador da cultura numa cidade que tivesse dito (mesmo que tardiamente e de uma forma frouxa e pouco credível) que queria ser capital europeia da cultura e ninguém me perguntasse nada quando se soubesse que o governo tinha escolhido outra cidade, havia de me questionar sobre o que é que eu andava aqui a fazer. Se, nesse caso, o meu próprio presidente constantemente me desautorizasse e me relegasse para quarto ou quinto plano sempre que se falasse de projectos um bocadito maiores na área da cultura, havia de ficar embaraçado.

Se eu fosse vereador da oposição na câmara de uma cidade que tivesse mostrado (por qualquer forma e com qualquer intensidade) que queria ser capital europeia da cultura e tivesse afirmado convictamente, há poucos meses atrás, que os problemas da cultura na cidade se resolviam colocando os criadores a fazer animação de rua na baixa, na hora em que se soubesse da escolha do governo (qualquer que ela fosse), eu havia de me calar e fingir que não era comigo, porque eu desses assuntos não percebo nada.

Se eu fosse profissional da cultura numa cidade que reunisse inúmeras potencialidades para ser uma grande capital da cultura, potencialidades essas que tivessem sido ignoradas, desprezadas, combatidas, ostracizadas e, nos casos mais bem sucedidos, destruídas pelos responsáveis políticos dos últimos vinte anos, no momento em que percebesse que o governo escolhera outra cidade havia de encolher os ombros, sorrir e entreter-me a escrever um texto que desse conta do quão surreal é esta história toda.

11 de outubro de 2006

botas

De tanto deixar que lhe lambessem as botas, já quase andava de sandálias.

10 de outubro de 2006

argumentos

Guarda para ti mesma, se os não tens melhores, os argumentos de merda com que me feridas a razão.

silêncio


Tens razão, Sónia: na maior parte das vezes, só o silêncio nos serve.
A dor o medo o ódio a tristeza o remorso a decepção a angústia a culpa a resignação a força o esforço a fraqueza a vingança a esperança a raiva a humilhação o desespero o frio a fome a frustração a desilusão a sede a ilusão a vontade a fúria a impotência a vida a morte e o resto não cabem numa só palavra em nenhuma língua do mundo.

9 de outubro de 2006

curral


Rasga-me as carnes
como se foram placas de gelo
Enlameia-me a garganta
como se fora a neve derretida
Quebra-me a espinha
como se fora um tronco seco
Penetra-me sôfrego
como se foras um cão
que eu branca cá dentro
voarei como só os pássaros
pretos que me pareceram
abutres que me pareceu
rirem-se da europa civilizada

5 de outubro de 2006

república


- Como diz?
- Digo que a república é como o ar que respiramos: habituamo-nos a ela, não a sentimos a alimentar-nos, deixámos de a festejar e, mesmo viciada e corrompida, já não saberíamos viver sem ela.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- Os povos que a não defendem podem morrer sufocados.
- Como diz?

4 de outubro de 2006

rentrée

Vozes hormonais e risos nervosos antecipavam o suor da cerveja, ribombantes nos vidros do autocarro, amplos e generosos

- Quebrar em caso de emergência

mas demasiado afastados.

3 de outubro de 2006

xvii

Um

- Obrigado, boa tarde

já de fugida, ele a dar a curva, a pôr o cinto, a repegar o telemóvel, eu

- Abre-te Sésamo

a brincar com a porta automática e a entrar na babilónia, metais, cromados, vidros, espelhos, luzes, neons, anúncios coloridos, música de fundo, passadeiras rolantes, mármores e a pensar

- Cheguei

antes mesmo de partir, antes mesmo do bilhete, afinal tão fácil, à distância de uma corrida de taxi, atrás de uma porta que a gente

- Abre-te Sésamo

e ela a fazer-nos a vontade, a oferecer-nos o novo mundo sem necessidade de barcas, naus ou caravelas, a mostrar-nos o universo sem foguetões nem naves espaciais, a mostrar-nos o paraíso sem purgatório, nem missas nem mandamentos, tudo tão fácil.
Eu um menino na loja de brinquedos, aquele carro, aquela bola, aquele jogo, aquela máquina, e em simultâneo na loja de doces, aquele pastel, o de feijão também, os rebuçados, os chupa-chupas, os chocolates, o balde das pipocas, fixado no monitor azul onde o menu das viagens, os pratos do dia

- Frankfurt, Istambul, Sidney, Madrid, Boston, São Paulo

me pareceu tentador.
Mas eu Paris, a confirmar no papel, cheguei cedo demais, tempo para fazer como quando ao domingo

- Vamos ver as montras

2 de outubro de 2006

solano

Um vento calmo e sufocante que vem do leste.
Um vento maldito que enlouquece as pessoas e alimenta os moinhos.
Uma aragem seca e quente, que se insinua primeiro e que depois nos arromba os poros, nos invade, nos consome devagarinho e nos resseca as entranhas até que só palha, só forma, só estalidos cada vez mais ténues, até que por fim a desintegração total no turbilhão dos elementos e uma espécie de felicidade derramada em poeira na planura da mancha.

vento

Pára com isso, Raimunda, que eu desato a chorar.
E os fantasmas não choram.