23 de outubro de 2010

humanizar



O Bolaño anda há meses a matar mulheres na minha mesa de cabeceira. A coisa percebe-se melhor lendo as reportagens da Alexandra Lucas Coelho que saíram no Público no verão passado, mas ainda assim. Ele e eu somos um deserto demasiado árido e foi preciso dar umas escapadelas para descobrir outros sentidos.
Por altura do Santo António, fiz com que me chegasse às mãos o mais novo livro do Abel Neves. A capa, divertida, engana. O primeiro conto prega-nos uma partida e percebemos só depois que é afinal um aviso.
Entramos em "Aliança" como quem está de férias. Por várias páginas nos deixamos ficar na praia, ora invejando a iniciativa de Beatriz, ora partilhando a surpresa de Tiago. É muito lentamente que o mar se encrespa e que, com ele, nos vamos acinzentando.
Poucas vezes li o Abel assim. Sempre tão optimista e luminoso, tão valorativo das pequenas coisas e dos pêssegos e dos pássaros e das cores, deixa-nos desta vez sozinhos com uma tília que já nem abrigo é capaz de dar.
Culpa dele? Culpa nossa, habituados a encontrar no cinema e na literatura a dose diária recomendada de desgosto que nos faz sentir ligados ao mundo.
Esta história desestabiliza-nos e faz-nos perder o pé. Pela forma como discretamente se insinua e se vai adensando, pelo confronto de escalas que ambas amplifica, pela serenidade do ambiente em que as coisas acontecem, pela familiaridade de tudo aquilo - o país, a cidade, as personagens, as conversas -, pelo medo e pelo silêncio de que somos feitos cúmplices. Pela demonstração do perto que estamos dos maiores horrores de que somos capazes, pela maneira como afronta estes leitores que, como eu, se permitem achar entediante um inventário de cadáveres mutilados encontrados no deserto.
Eu que desci à Avenida para tranquilamente ver as marchas passar dei por mim a cheirar cactos mexicanos em lugar de mangericos. Fiquei com as mãos em sangue, é verdade, mas já posso voltar ao Bolaño.

10 de outubro de 2010

ifigénia

Ifigénia na Táurida, Teatro da Cornucópia, 2010


Fui ao lado do cu do cristo-rei e alegrei-me com a diversidade dos sotaques. Almada pareceu-me, nessa noite, o local ideal para conhecer uma comovente Ifigénia, que se recusa a matar estrangeiros e acredita até ao fim na força da palavra contra a brutalidade das espadas e a injustiça das leis.
Estranho poder da arte, este que nos faz lembrar de Berlusconi e Sarkozy quando afinal um texto de Goethe e a história na Grécia Antiga. Estranha arte o teatro, capaz ainda de encher salas – novas e grandes e boas – e de ajudar a fazer cidade onde se esperava um subúrbio.
“Ifigénia na Táurida”, agora recriado em português por Frederico Lourenço, será sempre um texto belíssimo. Mas é impossível lê-lo hoje sem que nos detenhamos numa das circunstâncias que anima o seu enredo. Por vontade dos deuses (interpretada pelos homens), os estrangeiros que apareciam na Táurida deviam ser mortos no altar de Diana. Durante uns tempos, Ifigénia (ela própria estrangeira e outrora sacrificada) consegue evitar a chacina, convencendo o rei a poupar-lhes a vida e a limitar-se a deportá-los.
Sabe a pouco, claro, mas Ifigénia tinha apenas compaixão, não se lhe exija grandeza de estadista. Além disso, a Táurida era uma terra de bárbaros e progressos mais ambiciosos na cabeça do rei viriam colocar em causa o seu estatuto, contra os interesses da história do teatro.
O final quase feliz causa, talvez por isso, um ligeiro desconforto. Se a fingir custou tanto o que era óbvio, como consegui-lo cá fora, depois dos aplausos e com Ifigénia recolhida aos camarins? Como consegui-lo se continuamos a descarregar sobre os estrangeiros os males da cidade, imaginando gente “de leste” atrás do disfarce de um assaltante, pondo a mão no bolso se nos cruzamos com um preto, exigindo da escola uma turma diferente para os alunos ciganos? Como consegui-lo se continuamos a agarrar-nos às fronteiras e a achar que temos o direito de decidir quem pode e não pode viver connosco? Como consegui-lo se prosseguimos sem aprender nada com a história?
A resposta surgiu-me já no cacilheiro de regresso, num primeiro andar apinhado de diferenças. Cheio de gente que insiste em exercer o seu direito à cidade e que em breve se misturaria com os faróis vermelhos que, do rio, víamos subir a Rua do Alecrim.
Ingenuidade minha, talvez. Ou um optimismo exagerado, porventura alimentado pelos fumos que deixei que partilhassem comigo nessa viagem. Mas é um princípio de resposta esta vontade que se sente ainda de querer viver em conjunto. Que é melhor aproveitarmos, antes que seja demasiado tarde.

29 de setembro de 2010

insuficiência




Tirando umas horas de pura fraternidade com outros camionistas no terminal de Guarulhos, o meu contacto mais directo com a política brasileira foi tão superficial quanto isto: uma conversa de amig@s com diferentes sotaques num bar da Avanhandava, em que as plásticas eram de mais mas a música era boa e a cachaça era óptima, mas as rodadas foram de mais.
Estávamos a três meses das eleições e a Dilma ainda atrás do Serra nas sondagens. À cabeceira da mesa, um dos anfitriões expunha o seu desencanto com as cedências do governo Lula. Se acabam todos por fazer o mesmo, mais vale que vão rodando, concluía, ameaçando votar na alternativa “viável”.
Eduardo é um saudável provocador e não ignorará a circularidade do raciocínio. Mas o argumento é frequente, quando a esquerda está no poder. Alimentadas a sonhos e injustiças durante anos, as expectativas chegam tão alto que sempre achamos insuficientes as medidas de quem governa, sobretudo (imagino) quando contribuímos para a sua vitória.
Vejo apenas duas maneiras de ultrapassar esta situação: “radicalizar” o voto, procurando nas alternativas um discurso e uma prática de oposição com que nos possamos identificar, ou aceitar a “insuficiência” e contribuir, criticamente, para o exercício de uma espécie de “esquerda possível” (ou “necessária”).
A terceira opção a que aludia o meu amigo implica assumir em definitivo a impossibilidade de mudança e aceitar que só as caras – e não as políticas – podem mudar. Parece-me tão drástica e triste que só uma enorme incompetência dos governantes e de quem está à sua esquerda a poderia justificar.
Entre a primeira (de que ainda hoje li respeitáveis testemunhos) e a segunda, só quem está no terreno pode saber o que fazer em cada momento histórico.
Ainda assim, vistos de um país com a dimensão de Portugal, os números de pessoas que saíram da pobreza no Brasil nos últimos anos (sejam 10, 12 ou 20 milhões) são avassaladores. De tal maneira que, mesmo na semana em que o Presidente agradece a Deus pelo “momento mais auspicioso do capitalismo mundial”, é muito grande a tentação de achar “suficiente” a esquerda de Lula. Sobretudo quando continuamos a encontrar, nos jornais como nas ruas, gente que contesta as políticas sociais porque elas fazem com que as pessoas “não queiram” trabalhar. Gente, afinal, que acha que ele é “demasiado” de esquerda.
Na verdade, vendo a coisa de Portugal, o que eu tenho é inveja de não poder confrontar-me com dilemas destes.

22 de setembro de 2010

fracasso



Chuck Connelly, The Broken Ark
2001, 65'' x 96'', oil on canvas




Uma boa parte do meu trabalho consiste em gerir sensibilidades. Quando uma vez me disseram que era bom no que fazia, dei-me ao luxo de ficar contente. O exercício desta função requer um conjunto de qualidades que qualquer pessoa gosta de pensar que tem: disponibilidade para ouvir os outros; capacidade de distinguir, entre aquilo que nos é dito, o essencial do acessório; inteligência na transmissão dos argumentos; intuição apurada quanto ao que os outros pensam e vão pensar. Requer, além disso, a humildade de não impor os nossos pontos de vista e de tentar contribuir para a construção de uma posição comum – entre as sensibilidades em causa, em primeiro lugar, e só eventualmente entre estas e aquilo que defendemos.
Paradoxalmente, esta função implica, por isso mesmo, uma modéstia e uma discrição que, quando bem sucedidas, nos enchem de orgulho. Podemos nem fazer mais nada de relevante, mas realizamo-nos no essencial: a ajudar a que corram bem (ou melhor) as relações humanas entre aqueles que nos rodeiam e de quem gostamos.
O pior é quando se falha. Para além dos efeitos externos – sobre o projecto, a instituição, a família ou o que quer que seja que nos une enquanto colectivo –, o insucesso atinge o mediador na sua base de apoio e atira-o ao chão, inevitavelmente. Não só ele é obrigado a concluir que não possui nenhuma das qualidades que desejava ter como descobre um conjunto de defeitos adicionais com que terá de aprender a lidar. À cabeça, a arrogância de ter pensado que era mais sensato, prudente, clarividente, racional que as partes que se propôs conciliar. Mas também o facto de, tão concentrado que estava em aproximar as sensibilidades dos outros, ter afinal abdicado de aprofundar a sua própria posição.
Tê-lo-á feito por uma boa causa, é certo, mas agora sente a falta de a que se agarrar. As bóias que ofereceu aos seus amigos náufragos estavam sem dúvida furadas e para si não sobrou nenhuma.
Dizia o outro: “try again, fail better”.
Certo. Vejamos então se ainda sei nadar.

5 de setembro de 2010

amplitude


O filme tem dedicatória e não serei eu a menorizá-la. Apenas me parece que ele merece mais do que ficar na história como o filme do António Feio ou que, pior, haja quem evite vê-lo porque os trailers não são particularmente felizes.
Metáfora atrás de metáfora (numa altura em que quem gosta de as usar se arrisca mesmo a levar no focinho), contraluz é antes de mais uma história muito bem contada e isso é meio caminho andado para que nos fique na memória.
Uma história que fala da vida e da morte e do que fazemos com o tempo que temos corre sempre o risco de se transformar numa espécie de catequismo ou manual de bom comportamento. Por isso e por causa dos tais trailers, carregados de céus e de luzes brancas, não evitei o preconceito nem o sobressalto inicial com o (in)oportuno reacender do GPS. Resisti, fiquei na sala e deixei-me surpreender.
É claro que o filme interpela os espectadores a propósito de uma série de coisas e é natural e até provável que no final nos interroguemos: que tipo de relação estabelecemos com os outros (os próximos e os distantes); que importância damos aos sinais que, consciente ou inconscientemente, estes nos dão sobre o estado em que estão; o que estamos dispostos a fazer para os ajudar; que prioridades assumimos na gestão das nossas relações; que grau de auto-conhecimento conseguimos alcançar; que nível de franqueza nos permitimos ter connosco próprios; o que esperamos e o que obtemos da tecnologia e das dezenas de gadgets que, sem darmos por isso, mobilizamos num só dia; que espaço deixamos para a imaginação, para a arte, para o imprevisto, para os sentimentos? Porque temos tantas vezes a sensação de que gostaríamos de voltar atrás? O que faríamos, se o conseguíssemos?
Criando oportunidade para levantar estas e outras questões, o filme evita, contudo, as respostas que poderiam conduzir-nos a um final feliz. E consegue, acredito, tornar-se apetecível tanto para uma pessoa como eu – fervoroso devoto do acaso que se diverte com coincidências – quanto para aqueles que acreditam que tudo está escrito, “lá em cima” ou noutro lado qualquer.
A “mensagem” que o filme apesar de tudo assume ter vem resumida numa frase aberta, que serve a todos: “A vida é curta mas é ampla”.
E agora amanhem-se.

17 de agosto de 2010

vacaciones



Ali onde o norte e o sul se cruzam, ainda que apenas em palavras antigas ou em distantes rastos brancos que rapidamente se esfumam.
Ali onde os azuis se alargam mas o mar não cheira e as belas praias virgens são desfloradas a motor.
Ali, numa espécie de Terceira com os pastos secos, de modo que os muros mais esbatidos, as vacas mais escondidas e as criptomérias diferentes.
Ali com tudo incluído, frios, quentes e cozinha à vista, um vinho de origem incerta e variedades ao fim da noite.
Ali, na melhor companhia, descobrindo que qualquer sítio

Ali, reserva oficial da biosfera, onde se discute se já chega de turistas ou se constrói mais uma ETAR.
Ali, que se circunda num dia, onde mais 800 automóveis não evitaram a ruptura dos rent-a-car.
Ali, comendo paella ao sol das duas com o embalo das ondas, ao som da lady gaga.
Ali, digerindo as tapas da esplanada nos braços envidraçados de um yellow catamaran, olhando as medusas sob veleiros de luxo e placas do FEDER.
Ali, no mar ou em terra, voltando a trocar sorrisos.

Ali, entre pedras com três mil anos, sujeitos ao horário do shuttle.
Ali, com tempo para estar num calendário que voa.
Ali de corpo e alma, entre a praia e a piscina, mas a cabeça fugindo.
Ali, na pura contradição, no equilíbrio possível.
Ali estivemos. Bem.

27 de julho de 2010

casa

Sigo pela Vergueiro aproveitando o sol de sábado. Caminho só e deixo-me levar pelo fluxo, mais do que pela intuição. À saída do centro cultural, sinto-me como uma criança gulosa numa loja de doces a quem puxam pela mão quando ainda só espreitou as primeiras prateleiras.
Vou devagar, portanto, ignorando o relógio e os faróis vermelhos, triste apenas por não poder ajudar o senhor que me pergunta pelo hospital do coração. Uma semana mais e talvez. Ele compreende e prossigo. Por agora o dia é meu e quero aproveitá-lo inteiro. Ainda não sei, mas tomei a direcção oposta à que pensava, mais do que a que queria. Distrai-me das pessoas o nome familiar de uma rua, mas atravesso-a.
As placas dizem-me Vila Mariana e eu vou percorrendo quadras. Viro à direita na Ana Rosa e paro numa banca para comprar o que poderia ser o último maço de derby vermelho. A Folha traz uma sondagem que se antevê histórica e eu hei-de guardá-la, para festejar mais tarde. Simpático, o vendedor surpreende-se com a pergunta mas indica-me o caminho: directo até depois do viaduto. Cruzo de novo a Eça de Queiroz e reparo no que me parece ser a felicidade das pessoas. Na minha, pelo menos.
A meio do viaduto, fotografo mentalmente a vertigem da 23 de Maio. Hesito entre os carros abaixo e os prédios acima, mas continuo sempre, até às árvores da Alameda Santos. Algo me faz virar à direita e descubro por acaso a Martins Fontes. Demoro-me, em minutos e reais, até reiniciar a marcha. Prometera, brincando, que haveria de fazer toda a Paulista. Ficam quatro quarteirões para me obrigar a voltar.
Revejo ao longe o MASP e aproximo-me, pela primeira vez com destino definido. Divirto-me a adiar o Trianon e volto à Cultura, uma semana depois da estreia. Faltavam-me uns discos e saborear a visão de uma livraria gigantesca, a abarrotar de gente.
As horas e os sacos começam agora a pesar-me. Quatro de cada. Percebo ao telefonar a amigos que tenho estado incontactável. Foi sem saber, justifico. E sem querer, garanto.
Junto-me a eles no Arouche, levado por um taxista que me apanha o sotaque e me chama patrício. Deixa-me no Filé do Moraes e eu despeço-me, sei lá porquê, com cumprimentos à família.
À noite, não subi a Augusta. Talvez por causa dos telemóveis. Talvez porque tenha mesmo de ficar para a próxima. Talvez porque São Paulo não seja, afinal, a minha casa.
Mas que podia ser, podia.

24 de julho de 2010

Jardim Suspenso



Abel Neves (Montalegre, 1956) venceu em Outubro de 2009, com a peça “Jardim Suspenso”, a terceira edição do Prémio Luso-Brasileiro António José da Silva, uma iniciativa conjunta do Instituto Camões, do Teatro Nacional D. Maria II, da Direcção-Geral das Artes e da Funarte. Como previsto no regulamento, para além da publicação em livro (Lisboa, Sextante), a peça premiada foi encenada numa co-produção luso-brasileira. O espectáculo estreou em Lisboa a 29 de Abril, na sala-estúdio do Nacional, com encenação de Alfredo Brissos e as interpretações de Carla Chambel, Carlos Oliveira, Cármen Santos, Luciana Ribeiro, Manuel Coelho e Simone de Oliveira.
“Jardim Suspenso” é uma história de amor. Um amor não correspondido a que se entrega Luzia, jovem arquitecta que investiu todas as energias na construção de um depurado jardim sem plantas. Ao mesmo tempo, é uma certeira faca (de cozinha) apontada ao coração das verdades que gostamos de dar por adquiridas e das aparências que não ousamos deixar de vestir de cada vez que saímos de casa.
Tal como em “Nunca estive em Bagdad” e em “Este Oeste Éden” (peças ainda por publicar em Portugal), Abel Neves remexe nas relações familiares e no micro-cosmos em que se sustenta, afinal, a nossa (in)felicidade. E confronta-nos com o poder das palavras simples, palavras que saem quase sem darmos por isso e que, à mínima falha ou perante um alvo ocasionalmente mais desprotegido, são lâminas letais. Palavras com que prometemos o impossível e com que defraudamos as expectativas. Palavras que de repente já não nos servem para nada, pela simples razão de que já não há quem as queira ou possa ouvir. E que, por isso, nos condenam ao silêncio.
“Jardim Suspenso” é uma história de amor. O amor do autor pelo humano e pelas pequenas coisas que ainda nos podem diferenciar da máquina. Como uma espécie de apelo para que não desperdicemos essa extraordinária capacidade que nos distingue enquanto seres sensíveis e racionais: a de nos ouvirmos uns aos outros. Mariana, avó de Luzia, tem o enigma resolvido desde cedo. Com a sabedoria que a idade dá, aconselha o filho: “Se ouvirmos bem, respiramos melhor”. Mas ninguém a ouve, em toda a casa.
O espectáculo de Alfredo Brissos registou sucessivas lotações esgotadas ao longo do mês de Maio. A temporada brasileira, inicialmente prevista para Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, ficou-se afinal pela capital federal, com apenas cinco apresentações, entre 23 e 27 de Junho. Mas tudo isto – da atribuição do Prémio à estreia do espectáculo e à digressão no Brasil – passou estranhamente despercebido e foi muito pouco valorizado pelas próprias instituições promotoras. Uma “discrição” (como lhe chamou Abel Neves) que não se compreende, perante as expectativas criadas em redor do Prémio e num contexto em que as iniciativas de cooperação cultural entre Portugal e o Brasil se resumem a isto mesmo.
Abel Neves vive provavelmente um dos mais altos momentos da sua actividade de dramaturgo. Com mais de 15 peças publicadas em Portugal (a que se juntam 10 traduções em Franca, em Espanha, na Alemanha, na Inglaterra, na Roménia e na Hungria), viu estrear, desde o início de 2009, uma dezena de espectáculos a partir de textos seus: “Au-delá les étoiles sont notre maison (Compagnie Ici Londres, Paris), “Je ne suis jamais allé à Bagdad” (Théâtre du Centaure, Luxemburgo, e L’ Arrière Scène, Bruxelas), “A visita” (Teatro Nacional de D. Maria II, Lisboa), “Este Oeste Éden” (A Escola da Noite, Coimbra), “Saloon Yé-Yé, o paraíso à espera” (Teatro do Montemuro, Campo Benfeito), “A mãe e o urso” (LNW Produções Artísticas, São Paulo), “O senhor de La Fontaine em Lisboa” (Lua Cheia/Museu da Marioneta, Lisboa), “Vulcão” (Teatro Nacional de D. Maria II/Teatro do Bolhão, Lisboa). Ainda em 2010, estreará “Clube dos Pessimistas” (Teatroesfera, Lisboa).

texto publicado no cenaberta, 10 - Junho/2010.

16 de julho de 2010

descentrar



Nos museus, tenho muitas vezes o problema de não conseguir lidar com a quantidade de informação que me é oferecida. Para evitar frustrações, procuro identificar uma sensação ou uma ideia forte que me permita relembrar a visita e que, nos bons casos, faça com que eu queira voltar lá voltar.
No Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, essa ideia surgiu-me na voz off de um dos vídeos que compõem a exposição: “todos os dias, 180 milhões de pessoas acordam [no Brasil] a pensar em português”. Alguns deles, como bem demonstra o Museu, são até poetas, daqueles capazes de inventar palavras como “comigar” ou “distansiânsia”. Não há como manter uma língua aprisionada “nas normas” com um universo destes. O Museu, e sobretudo a exposição temporária que habita por estes dias o primeiro piso, brinca com isso. E tem sobre os portugueses um interessantíssimo efeito descentrador que só pode fazer-nos bem.
Desse ponto de vista, acho até que o Museu é bem mais estimulante para os portugueses do que para os brasileiros. Nós ganhamos em alargamento de perspectiva; eles perderam uma extraordinária oportunidade para olhar de frente para a África lusófona, por exemplo, ou para perceber o que foi acontecendo ao “português europeu” ao longo dos últimos 500 anos. Concentrado na diversidade interna do “português do Brasil” e na riqueza, na diversidade e no dinamismo dessa língua própria, o Museu acaba por reduzir-se à legitimação institucional da variação aceitável introduzida pelo “uso popular” da língua. Bem sei que são 180 milhões e que não adianta nem faz qualquer sentido considerá-los analfabetos. Mas são 180 milhões (números por baixo, que as estatísticas mais recentes acrescentam-lhes pelo menos mais 10 milhões) que vivem num mundo apesar de tudo mais vasto, uma razoável parte do qual partilha com eles uma capacidade fantástica: a de nos entendermos à primeira, sem precisar de mediações.
Problema deles, dir-se-ia; problema nosso, acho eu. Porque esta maneira “capelista” (nem todos podemos ser Guimarães Rosa...) de fazer as coisas, virada para o umbigo, mantém as portas fechadas e empobrece-nos a todos. Portugal quer também agora fazer o seu próprio Museu da Língua e eu estou capaz de apostar que vai cometer o mesmo erro. Nem que seja para tentar “equilibrar” as coisas. Eu proponho uma alternativa: transferir para Lisboa a Estação da Luz (tal como está) e plantar a “capela” portuguesa em São Paulo.
Já que não somos capazes de cooperar a sério, ao menos que nos provoquemos mutuamente. E que percebamos que o mundo, a língua e a humanidade têm pelo menos tantos centros quantas as cabeças que o concebem.

29 de junho de 2010

corte

O corte de 10% nos contratos do Ministério da Cultura
(texto da Plataforma das Companhias)



O Governo decidiu cortar em 10%, para o ano de 2010, todos os financiamentos à criação artística que resultam dos contratos assinados entre o Ministério da Cultura e os agentes culturais.

Trata-se, nas palavras da própria Ministra, que o aceita e justifica, de um “corte cego”, indiferente à altura do ano em que é anunciado, ao grau de execução das actividades a que os criadores se haviam comprometido com o Governo, e às diferentes realidades – estruturais, organizativas, em matéria de responsabilidades e encargos assumidos – que o Ministério da Cultura teria obrigação de conhecer e de distinguir entre aquilo que designa por “artistas independentes”. A notícia deste corte veio encontrar reunidas em Coimbra, no Festival que anualmente organizam, as seis companhias de teatro profissional que integram a Plataforma das Companhias, uma estrutura informal de intercâmbio, debate e reflexão.

No seu conjunto, estas seis companhias empregam nos seus quadros, em permanência, mais de uma centena de pessoas – têm, em média, 17 colaboradores permanentes. Todas são financiadas pelo Ministério da Cultura, ao abrigo de contratos pluri-anuais que resultam de candidaturas aprovadas por júris nomeados pela Direcção-Geral das Artes, com valores que variam entre os 200 e os 320 mil Euros/ano. Este corte significará uma perda entre os 20 e os 32 mil Euros nas receitas previstas até ao final do ano, que inevitavelmente se reflectirá em perda de postos de trabalho, em cancelamento de produções e em paralisação da actividade. Falamos de estruturas profissionais organizadas, com custos permanentes e responsabilidade social: salários, segurança social, contratos com fornecedores já celebrados, etc.

Perante tão sérias consequências e após rasgar os contratos que connosco assinara, a Ministra pede-nos, num e-mail enviado no passado sábado, “solidariedade” com o “esforço nacional”. Reconhece as “dificuldades endémicas associadas a esta área”, “lamenta” a situação e manifesta-nos a sua própria “solidariedade”.

No âmbito da Plataforma das Companhias e noutros foruns de discussão, estas seis companhias vêm desde há muito chamando a atenção dos sucessivos Governos, Ministros da Cultura e Directores-Gerais para as tais “dificuldades endémicas” do sector. A primeira das quais – a falta de financiamento público – foi aliás reconhecida pelo Primeiro- Ministro José Sócrates. Em campanha eleitoral, é certo. Em campanha eleitoral, ainda por cima – naquela altura em que é suposto os governantes assumirem compromissos com os eleitores e clarificarem o que se propõem fazer.

Em vários documentos publicados e enviados aos titulares de cargos com responsabilidades na definição e na concretização de políticas culturais, temos apresentado propostas concretas para a definição de uma estratégia nacional neste domínio, capaz de dotar o sector de uma sustentabilidade mínima, que lhe permitisse funcionar devidamente em alturas normais e sobreviver a uma situação de crise, como a que actualmente atravessamos. Propostas que visavam a racionalidade na distribuição dos dinheiros públicos, a consolidação das estruturas de criação existentes, a criação de condições para uma circulação regular dos espectáculos financiados pelo Estado, a existência de apoios mínimos para a internacionalização, a regulamentação do estatuto profissional dos artistas, um real incentivo ao mecenato cultural, a complementaridade entre o investimento público nacional e os fundos comunitários, a definição de um quadro que regulasse a articulação entre Estado Central e autarquias, entre outros.

Todos estes contributos foram sendo ignorados e continuamos até hoje com a mais perversa das formas de política cultural: a que promove uma espécie de assistencialismo aos tais “artistas independentes” com os quais a Ministra agora se solidariza. Uma “política cultural” que convive de forma acrítica, resignada e cúmplice com o mais feroz ataque feito pelo Estado à criação artística nacional nas últimas décadas.

Nas “explicações” que procura dar aos agentes culturais, a Ministra deixa claro a forma como pensa o sector: um conjunto de projectos avulsos, que se fazem ou não se fazem consoante haja dinheiro, ou que podem dimensionar-se e redimensionar-se, de um momento para o outro, ao sabor da disponibilidade orçamental que o Governo decide ter. É a permanência desta maneira de encarar a criação artística, que o Ministério da Cultura tem estimulado em vez de contrariar, que permite a um Ministro das Finanças tomar decisões tão danosas e arbitrárias como esta.

Recusamo-nos a aceitar a desculpa da crise. Todos sabemos que as verbas que agora nos pretendem retirar – aquelas de que depende a nossa sobrevivência – são, no conjunto do défice, verbas irrisórias que nada resolvem. Além disso, ao longo dos últimos anos, o orçamento dedicado à cultura vem sofrendo sucessivos cortes, ao arrepio dos discursos e dos anúncios oficiais e dos programas eleitorais e de governo apresentados pelos responsáveis políticos. As referências às “medidas similares” na “maioria dos outros países da Europa dos 27”, com as quais a Ministra tenta atenuar o impacto deste corte, são por isso deslocadas: esquecem que o investimento feito em anos anteriores e a solidez do sector (incluindo a protecção social aos trabalhadores afectados pela crise) são radicalmente diferentes. Não podemos pretender ser europeus nos cortes quando não o somos nos orçamentos.

Assumimos naturalmente as nossas responsabilidades e desejamos contribuir para o combate à crise. Sabemos, até, que temos um papel importante a desempenhar, enquanto criadores, na construção de uma sociedade mais culta, mais esclarecida, mais cosmopolita, mais solidária, mais justa, mais humana. Mas recusamo-nos, por isso mesmo, a servir de pretexto para oportunismos cínicos ou de areia atirada para os olhos da opinião pública por responsáveis políticos que parecem mais interessados em assegurar o seu próprio lugar do que em cumprir as funções para as quais foram nomeados.

As companhias de teatro profissional financiadas pelo Estado ao abrigo de contratos pluri-anuais, entre as quais se encontram estas seis estruturas, representam a esmagadora maioria do teatro que é feito em Portugal. É através delas que o Estado assegura, em complemento ao trabalho feito pelos dois Teatros Nacionais, a prestação do serviço público de criação teatral. Colocar em risco a sua sobrevivência e condená-las a um sufoco ainda maior do que aquele em que já vivem é ameaçar todo o sistema teatral português. Fazê-lo desta forma, quebrando compromissos assumidos em contratos (na base dos quais elas assumiram encargos e responsabilidades com pessoas e entidades terceiras) é mais do que uma irresponsabilidade. É a demonstração evidente de que a actividade de criação artística é, para este Governo, algo que o país pode dispensar.

Não aceitamos esta “inevitabilidade”. E expressamos, apesar do contexto adverso em que o Governo insiste em colocar-nos, a nossa disponibilidade para debater com o Ministério as nossas propostas, tanto no que diz respeito à estruturação do tecido teatral e do sistema de financiamento da criação artística, como na procura de outras soluções para lidar com a crise que não sejam estes cortes “cegos”.

Coimbra, 28 de Junho de 2010.

A Escola da Noite (Coimbra)
ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve
CENDREV – Centro Dramático de Évora
Companhia de Teatro de Braga
Teatro das Beiras (Covilhã)
Teatro do Montemuro (Campo Benfeito, Castro Daire)

9 de junho de 2010

desejo

Creio que é bem mais do poder amar do que do ser amado que provém a felicidade.
É também só isso que podemos esperar de quem gostamos: que nos deixe gostar de si, que ouça sem desdém as mais belas palavras que conseguimos dizer-lhe, que ocasionalmente aceite o nosso abraço e nos devolva um sorriso. Que nos não culpe pelo sentimento involuntário e inexplicável que em nós cresceu e nos permita, enfim, ser felizes nesse amor que lhe dedicamos.
Se, por acaso ou vontade divina, encontramos alguém cujo sentimento é recíproco, a vida afigura-se-nos perfeita. Mas talvez não seja por sermos amados. Talvez seja apenas porque, ao naturalmente deixarmos que a outra pessoa demonstre o que sente por nós, a fazemos feliz. E isso é tudo o que queremos para aqueles de quem realmente gostamos.
O raciocínio é lógico: está para além da nossa vontade conseguir que alguém nos ame. Não vale por isso a pena esperá-lo ou desejá-lo. Quando acontece é bom - e que flua!; quando não acontece é pena - mas paciência.
É por isto que a saudade dói. Porque, na ausência física de alguém que amamos, ficamos condenados a falar para as paredes ou a figurar olhares em notações sintácticas. E porque a voz invisível ou as palavras mudas que nos chegam do outro lado são sempre insuficientes para nos garantir que continuamos a ser deixados amar.
Mas é também por isto que o ciúme é estúpido. Paradoxalmente, ele diz muito mais acerca dos nossos sentimentos do que dos supostos sentimentos da outra pessoa em relação a nós. Só se tem ciúmes de quem já não se gosta ou de quem, afinal, nunca se gostou. Tal como não adianta desejar que alguém nos ame, também não faz qualquer sentido lamentar que quem um dia nos amou tenha deixado de o fazer. E se, nestas circunstâncias, essa pessoa for hoje mais feliz, o nosso amor por ela (e a felicidade que dele nos vem) só podem sair reforçados.
O desejo é outra coisa.

21 de abril de 2010

Quatro ensaios para uma política teatral *



Editado pela Cotovia no final de 2009, “Quatro ensaios à boca de cena”, de Fernando Mora Ramos, Américo Rodrigues, José Luis Ferreira e Manuel Portela, com prefácio de José Gil, dá um relevante contributo para a discussão sobre as políticas culturais em Portugal, salientando a centralidade da criação artística e dissecando o que tem sido (e o que pode ser) a actuação do Estado nesta matéria. A internacionalização, em particular no espaço da lusofonia, é um dos aspectos em análise.

Partindo das suas experiências profissionais, os autores reflectem sobre o papel da criação artística em Portugal, começando por elencar vários equívocos da política cultural em Portugal: a desvalorização da figura da companhia de teatro (e do seu papel de transmissão inter-geracional, de formação, de contexto e de “fermento” para a inovação), a desconsideração das diferenças entre projectos profissionais de criação artística e projectos de animação cultural (F. M. Ramos); a ficção que é a “Rede de Teatros” do país, face à falta de condições orçamentais e de critérios que definam a sua missão de serviço público (A. Rodrigues); a valorização absoluta dos “cruzamentos disciplinares” em detrimento do aprofundamento de e em cada área artística (J. L. Ferreira); e “a absorção das práticas artísticas no conjunto das indústrias culturais”, que implica “a erosão da [sua] função crítica e emancipatória” (M. Portela).
Neste contexto, avançam algumas propostas concretas. Encenador e director do “Teatro da Rainha”, Fernando Mora Ramos defende a criação de “uma primeira rede de serviço público teatral”, assegurando a cobertura da globalidade do território nacional. Sugere a identificação de um conjunto de 12 a 15 “regiões dominantes”, onde, com as estruturas de criação aí sediadas e as autarquias, sejam instalados “pólos culturais determinantes” que funcionem como “um factor de dinamização geral”. Algo de que se aproxima José Luis Ferreira, coordenador do Departamento de Relações Internacionais do Teatro Nacional de S. João, ao sugerir “um domínio público de estruturas de criação e difusão com pólos de excelência e uma vocação de cobertura territorial”, complementada com a criação de “núcleos mistos” espalhados pelo país – “teatros de dimensão municipal, com projecção regional e ambição nacional e internacional”. O director do Teatro Municipal da Guarda, Américo Rodrigues, salienta a necessidade de que Governo e autarquias assumam as suas responsabilidades no financiamento dos principais teatros do país “de forma solidária”. Manuel Portela, ex-director do Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, reivindica uma atenção particular “à natureza e à qualidade artística” das propostas e à “qualidade da gestão específica” de cada projecto.
Quanto à internacionalização, Mora Ramos escreve que ela permanece dominada pelo “pára-quedismo circunstancial e a acentuação dos factores efémeros” e condenada, por isso, “à inconsequência precária do fortuito”: o que faz mais sentido, defende, é o “desenvolvimento de intercâmbios regulares nos territórios em que o português se fala”. A efectiva internacionalização só será conseguida “num quadro gerador de regularidades e quando a troca é real, isto é, quando a percepção que [os meus anfitriões] tenham do teatro português corresponda a um desejo real de o conhecer e que portanto se gerem projectos específicos, um intercâmbio franco e afectivo baseado nas surpresas das línguas, na universalidade do teatro e na concretização de relações reais, interpessoais e projectuais”.
No prefácio do livro, José Gil revela-se optimista: “ouso esperar que, depois da sua recepção pública, nada será como dantes no mundo do teatro”. Para todos aqueles que têm tentado forçar a porta de um debate sempre recusado, este optimismo talvez pareça exagerado. Mas nem por isso ele deixa de ser necessário.
A par do trabalho diário que vamos fazendo, ele é, aliás, tudo o que nos resta.

* texto publicado no cenaberta on-line

17 de abril de 2010

Mais com mais

Não era necessário transformar este segundo momento do ciclo de co-produções entre A Escola da Noite e a Companhia de Teatro de Braga numa trilogia para mostrar o que pretendíamos. Nem foi por isso que o fizemos. A opção surgiu já com o projecto em andamento, em função da riqueza do material que tínhamos em mãos e dos resultados a que fomos conseguindo chegar com o próprio processo de trabalho.
Ainda assim, esta “multiplicação” de espectáculos acaba por ser uma boa imagem da forma como quisemos encarar a colaboração a que nos propusemos. A crise a crise a crise a crise tem, para além de todos, um perigo máximo: o de fazer com que aceitemos, desejemos ou sintamos que temos de abrigar-nos em porto seguro, à espera que a tormenta passe. O perigo de nos fazer concentrar nas fraquezas – nossas e alheias – e de nos convencer de que, se as juntarmos, seremos mais fortes. O perigo de baixar o nível de exigência e o erro de nos querer fazer acreditar que é possível e desejável fazer mais com menos.
Somos dos que resistem a este miserabilismo e dos que não aceitam esta inevitabilidade. A crise a crise a crise a crise é forte, afecta-nos e deixa marcas, mas não impede a escolha. Pelo contrário, torna-a mais decisiva. Encolhermo-nos ou arriscarmos? Estacionar ou subir a fasquia?
Numa época em que tanto se fala de empreendedorismo, talvez fosse bom parar para pensar o que quer isso dizer em matéria de criação artística. A pretexto da crise, os criadores nacionais estão hoje sob uma tremenda, perversa e ilegítima pressão: com maior ou menor subtileza, tem vindo a instalar-se a ideia de que temos de perceber a dificuldade dos tempos. E de encontrar alternativas, construindo projectos financiáveis, enquadráveis, elegíveis, sustentáveis, rentabilizáveis. À custa do que for preciso e em nome de uma suposta capacidade empreendedora, assente no pragmatismo, na maleabilidade, na eficiência de gestão e na compreensão das regras do mercado.
Alguma coisa temos aprendido desta linguagem – palavras novas, afinal, para aquilo que as estruturas de criação desde sempre têm feito e sem o qual o panorama português seria muitíssimo mais pobre. Mas não nos esquecemos nunca de que, em arte, o empreendedorismo que importa é o que move os criadores e os impele a comportar-se como artistas. É aí que a criatividade realmente conta, é daí que surge a novidade, é apenas a partir daí que podemos (e devemos) ser dinâmicos, “pro-activos”, “criativos” na gestão e na produção. Por estranho que pareça, os dias que vamos vivendo aconselham-nos a repetir o que devia ser óbvio: no centro da actividade cultural e das políticas que a regulam tem de estar a criação artística. É esta que lhes dá conteúdo e sentido e que precisamente pode transformá-las num muito poderoso instrumento contra a crise.
As duas co-produções realizadas entre a Companhia de Teatro de Braga e A Escola da Noite – “Sabina Freire” em 2009 e agora a trilogia “1.José 2.Rubem 3.Fonseca” – assentam nestes pressupostos. São uma conjugação das nossas maiores forças e potencialidades para que possamos chegar mais longe do que conseguiríamos sozinhos. Juntámos meios (elencos, equipas técnicas, equipas de produção, orçamentos) para podermos ser ainda mais ambiciosos nos espectáculos a apresentar. Aproveitámos para subir a fasquia, aceitando e partilhando todos os riscos que daí decorrem. O de fazer um texto já quase esquecido na história do teatro português, lutando contra a desconfiança, o preconceito e, sobretudo, contra o desconhecimento; e, agora, o de experimentar a abordagem a todo o universo literário de um autor (não teatral) como Rubem Fonseca, sem um guião definido à partida.
Quando a aposta é convicta e partilhada, há sempre o risco de as coisas correrem bem. Tão bem que, ao fim de três meses e meio de trabalho diário e intensivo, temos não um mas três espectáculos para oferecer aos nossos espectadores – “culpa” do autor, responsabilidade nossa, desafio e oportunidade para o público.
E um sinal claro de que é realmente possível fazer melhor e fazer mais. Com mais.

Coimbra, Abril de 2010.

A Escola da Noite / Companhia de Teatro de Braga
(in programa da trilogia "1.José 2.Rubem 3.Fonseca")

27 de março de 2010

dúvidas

Tracey Emin, "I've Got It All" (2000, ink-jet print, 124x109cm)



A entrevista da Ministra da Cultura ao Público da passada quarta-feira é desconcertante.
Por um lado, é bom saber que a responsável pela gestão do serviço público na cultura e na criação artística não embarca acriticamente no discurso das “indústrias culturais” e da rentabilidade do “sector criativo”. As coisas estão de tal maneira que nos apressamos a sublinhar e a recortar, para memória futura, o comentário que faz a mais um estudo sobre o peso da criatividade no PIB: “É preciso manter a cabeça fria e fazer uma leitura inteligente. Se os resultados são tão favoráveis para este sector, a verdade é que são de espectro muito largo, e aquilo que interessa agora é não desviar o enfoque de que o sector nuclear continua a ser a principal preocupação e deve ser o principal objectivo do MC”.
A primeira dúvida instala-se logo a seguir, com o primeiro ensaio de uma tal leitura “inteligente”: “Devemos olhar para essa forma de economia e tirar dela leituras de que precisamos para transformar o outro sector mais nuclear em actividade que contribua também para a riqueza do país”. Ou, mais concretamente, quando afirma que o MC não precisa de ter “um grande orçamento”, uma vez que “já há um mercado que reage positivamente às actividades do sector cultural”. Algo que é reforçado com as duas “linhas de actuação” do seu Ministério que mais desenvolve nesta entrevista: “linhas de crédito para as pequenas e médias empresas no sector cultural” e “linhas de crédito especiais para apoio de pequenas empresas que possam potenciar a manufactura e o artesanato português”. Tudo, claro, através da inevitável “transversalidade interministerial do MC com a Economia e o Turismo”. A “inteligência”, afinal, passa por criar mais uns nichos de mercado para o sector financeiro.
Por outro lado, todos poderemos subscrever frases como “o MC tem que ter a coragem de aplicar melhor as suas verbas e apostar na qualidade”. É verdade que a maioria dos projectos actualmente apoiados não tem condições para “um crescimento sustentado” e que isso coloca em causa a eficácia do investimento público – não em termos da sua rentabilidade financeira, mas sim no que diz respeito ao cumprimento dos objectivos, muitas vezes imateriais, que deveriam justificar este investimento.
As dúvidas surgem quando falamos das soluções para ultrapassar esta realidade. A Ministra opta pela mais fácil: “é preferível apoiar mais e melhor menos intervenientes do que espalhar pouco por muitos”. Atira-se o ónus do problema para a quantidade exagerada de agentes e não para a insuficiência das verbas. “Os fundos são o que são”, afirma. Não, senhora Ministra, os fundos são o que o seu Governo e o seu Ministério querem que sejam. E está por provar que haja artistas a mais em Portugal.
O mais desconcertante da entrevista reside, ainda assim, na forma como classifica a actual relação do Ministério com os agentes culturais que apoia: “tem havido alguma preocupação em satisfazer clientelas”; “vai-se permitindo que cada vez mais entidades entrem no sistema da subsídio-dependência”. Surpreende a ligeireza de tais afirmações e esta estranha aproximação às teses de Rui Rio, Zita Seabra, César das Neves ou Carlos Encarnação. Mas sobretudo choca a irresponsabilidade. Gabriela Canavilhas é livre de pensar o que bem entender. Enquanto Ministra da Cultura, no entanto, não pode limitar-se a constatar a existência de factos desta gravidade. Se os identifica, tem de actuar imediatamente para corrigir a situação, de preferência antes de tornar públicos estados de alma que só servem para desacreditar, junto da opinião pública, o trabalho e a idoneidade dos agentes culturais financiados pelo Estado.
Li a entrevista dando o benefício da dúvida que quase sempre acho que se deve dar a um/a governante em início de mandato. Mas perante uma pessoa que não quer discutir critérios para atribuição de financiamentos públicos (“estão a cargo dos júris”) e que apenas manifesta “vontade de reflectir” sobre ideias feitas (que ainda assim não se abstém de reproduzir e amplificar), a dúvida que me assalta é outra: o que quer esta Ministra?

12 de março de 2010

joão

Há mais de um ano que não ia ao Reis.
Voltei lá um dia destes, à hora do jantar, com dois amigos, direitos à sala de cima. Perante a sugestão da petinga com arroz de feijão, um dos meus amigos, timorense, perguntou, a sorrir mas com pouca esperança, se não haveria chanfana. "Lembro-me como se fosse hoje - confidenciou logo a seguir - da primeira vez em que comi chanfana. Foi aqui, nesta sala". O empregado não disse nada, habituado às marcas que o espaço e as pessoas que o frequentam deixam na memória dos seus clientes.
Quando as petingas chegaram, fizemos contas: a chanfana é o prato favorito do meu amigo timorense há 15 anos. Brindámos. À lembrança dessa tarde e do que ela havia permitido, ao reencontro profissional, aos projectos novos, aos desejos de felicidade - os nossos, os dos povos e até os de alguns governantes bem-intencionados.
Uma avaria qualquer na máquina fez com que tivesse de vir pagar cá abaixo. Olhei à volta enquanto aguardava pelo talão do multibanco. Foi aí que vi a fotografia do João pendurada na parede. Ao princípio fiquei chocado. Ao lado do João, mais cinco ou seis fotografias de clientes habituais do restaurante, numa composição de gosto discutível. Depois sorri. O João, o mais vivo e bem-disposto dos meus amigos, haveria de rir-se muito apenas de imaginar que alguém colocaria assim, ali, uma fotografia sua. Por fim, chorei. Porque a foto é uma homenagem a um amigo da casa, porque o João havia de reconhecê-lo e deixá-la ficar por simpatia, porque a foto não ri nem fala nem abraça, só lembra.
Lembra-me, por exemplo, de que foi naquele mesmo restaurante que tive os primeiros jantares com o João, mais ou menos pela altura em que o Zé provava a chanfana. Lembro-me como se fosse hoje, posso também dizer, das intermináveis conversas que eu sorvia como se não houvesse amanhã. Lembro-me de ele fazer perguntas, de se interessar pelo que nós, uns putos, tínhamos para dizer. Acho que devo ao Tó-Zé a participação nesses jantares. Íamos para a sala do fundo, salvo erro às quartas-feiras, e saíamos de lá tardíssimo, com as injustiças do mundo por resolver, é certo, mas mais seguros do que podíamos fazer, cada um de nós e em conjunto, para lutar contra elas.
Generoso como era, o João achava graça à nossa ingenuidade. E incentivava-nos a testá-la, a acreditar no que dizíamos, a experimentar aquilo em que acreditávamos. Mas não ficava só a ver. Ia connosco, aparecia, perguntava, ouvia, respeitava, participava. E tinha sempre o tempo todo para toda a gente, fazendo de cada pessoa com quem se cruzava a pessoa mais importante do mundo.

Lembram-me outros bons amigos que faz agora um ano que o João deixou de vir ter connosco. Lembro-me como se fosse hoje de onde e por quem recebi a notícia. De como ela era esperada e de como ainda assim não queríamos acreditar. Lembro-me, porque ainda hoje me custa tantas vezes acreditar e dou por mim a ter de fazer um esforço para me convencer de que não, o João não pode vir jantar ao Reis nem acabar a noite no Botânico.
Não me lembro do que comíamos naqueles jantares nem sei sequer se o João gostava, mas o que me apetecia mesmo hoje era comer uma chanfana.
Com ele.

1 de março de 2010

sorte




Mesmo quando ela é grande, procuro sempre resistir à tentação de pensar "se ele vivesse noutro país...".
Pela simples razão de que se ele vivesse noutro país seria outra coisa, não necessariamente melhor nem pior, mas seguramente uma diferente coisa. E portanto não adianta especular sobre a projecção mediática que teria, sobre as multidões de fãs que o perseguiriam, sobre a divulgação planetária do seu trabalho, sobre a atenção com que seria escutado, sobre.
Penso isto de toda a gente, mas com particular intensidade em relação aos artistas, no meio dos quais tenho a sorte de viver desde há dez anos. Eles, que vivem de e para expressar as suas visões do mundo, fazem-no sempre a partir do ponto em que o observam. E são os primeiros a ridicularizar as fronteiras mentais em que insistimos em dividir a humanidade. Únicos e universais, sempre e por definição.
Dir-me-ão "está bem, abelha", mas imagina que o António Pinho Vargas norte-americano ou japonês. Os críticos a cair-lhe aos pés e a elogiar-lhe o génio, a criatividade, a sensibilidade, o romântico e o lúdico, o jazz e a erudição, a lucidez com que fala do sistema de criação e distribuição cultural, a humildade com que se entregou à investigação, a generosidade com que aceitou ser professor, a simplicidade com que se refere ao público. Imagina as sucessivas gerações a reconhecerem que a música dele as ajudou a alargar horizontes, lhes despertou sentimentos, as tornou mais felizes.
Respondo que temos isso tudo. Da "casa de granito no minho" ao "tom waits", do "lindo ramo, verde escuro" a "prelude to june (tabor)", de "cantiga prá maria" a "thelonius skizo sketch". O mundo todo, a arte toda, e mesmo à mão de semear.
Que sorte a nossa, não?

28 de fevereiro de 2010

português

Admito: a minha formação política fez-se a ler, em simultâneo, O Independente e O Combate. Aquilo que podia derivar numa esquizofrenia incurável transformou-se em militância no Bloco de Esquerda e numa grande admiração pelo Miguel Esteves Cardoso.
A crónica em que o Nuno também reparou ajuda a explicar esta coisa. Eu, que a subscrevo toda, limito-me a transcrever o último parágrafo:
"Temos sido estúpidos com os imigrantes que ainda não podem ou querem ser portugueses. Deveríamos seduzi-los em vez de aceitá-los. Deveríamos ser mais abertos. Deveríamos até deixar de exigir que trocassem de nacionalidade. Isso é que seria ser português."

24 de fevereiro de 2010

dilema



Há uns anos, quase me chateei com um amigo meu por causa de uma opção política. Por achar que ele tinha dado por adquirido, depressa demais, que eu subscreveria a posição dele. E porque, considerava eu, a estratégia podia ser outra.
O tempo, e sobretudo o comportamento do meu amigo e dos seus companheiros de opção, encarregaram-se de provar que eu estava errado. Percebi, felizmente ainda a tempo de fazer uma parte da viagem com eles, que quando as boas ideias são defendidas pelas melhores pessoas, não há outra escolha que não seja o seguir em frente, sem pensar nos resultados. Era gente coerente, desinteressada, e incapaz de colocar eventuais projectos ou ambições pessoais à frente do que entendemos como interesse colectivo. Do ponto de vista individual, era, admiravelmente, uma gente sem estratégia nenhuma.
O meu amigo e eu estamos hoje mais maduros. Ele admite que eu pense diferente dele. Eu resisto a pensar que as posições se inverteram e esforço-me para acreditar que ele tem novamente razão. Esforço-me, calejado pela experiência anterior, a tentar perceber onde está o meu erro de avaliação ou de perspectiva.
Já estava difícil. A conjugação de factores que da outra vez acabou por me convencer é muito rara. O que fazer quando não acreditamos nas pessoas que, num confronto de ideias e de projectos políticos, protagonizam o nosso lado?
Agora está mais difícil. Porque apareceu alguém em quem apetece acreditar e que parece do nosso lado, num contexto meio esquinudo.
E no entanto eu gosto disto. Ao contrário do que diz outro amigo, o confronto não é entre “cabeça” e “coração” - há uma e outro em cada lado, como em tantas outras circunstâncias da vida. Dar-nos-emos mal, parece-me, se optarmos em nome de apenas uma destas categorias.
Que estes meus amigos tenham de fazê-lo, eu lamento mas compreendo. Já eu, que não lhes nego um abraço solidário, tenciono apaixonar-me na busca de uma solução racional para o dilema.

15 de fevereiro de 2010

legalize(-it)


O casal ao meu lado repetia insistentemente: "que filme tão idiota". Atrás de mim, uma rapariga: "tão estúpido".
Eu achei graça. E juro que não toco no LSD desde aquela noite em Vilar de Mouros em que o Elton John e o maestro me convenceram a ir com eles nadar nus no rio e a fazer uma serenata ao padeiro às cinco da manhã entoando o "Frère Jacques".
Ao princípio assustei-me com a ameaça - "isto é mais real do que pode imaginar" -, mas vi a ficha técnica até ao fim e lá estava, já só para três ou quatro resistentes, o selo a certificar que os animais não tinham sofrido. Nem o hamster, nem o cachorro, nem as cabras. Tudo a fingir, como convém. As letras passaram demasiado rápido e não posso garantir, mas de certeza que havia selos iguais para a cena da bomba de gasolina e para a tortura dos prisioneiros e para a descrição das armas "não letais". De certeza que havia.
Saí do cinema divertido com a fábula e, só por curiosidade, fui ao site do filme. Vale a pena ler a entrevista com o autor do livro que o inspirou. E, pelo sim pelo não, encomendar umas doses valentes de LSD.

1 de fevereiro de 2010

cliché



Eu que me comovo por tudo e por nada resisto mal ao que de cinematográfico tem um jogo de rugby num estádio cheio.
Resisto mal ao aperto de mão depois de uma placagem e à multidão atrás de um autocarro, como à lágrima nos óculos escuros e ao abraço à empregada lá de casa.
Resisto mal ao pontapé certeiro e ao árbitro que espera que o relógio avance, como ao bar democratizado e ao polícia branco que festeja com o miúdo preto.
Resisto mal às eliminatórias de um campeonato e ao esforço físico dos atletas, como à determinação dos homens quando têm de correr riscos.
Resisto mal às bancadas em coro e às bandeiras levantadas, como a um poema que nos inspira e nos faz aguentar.
Resisto mal à câmara lenta e ao flashback para os dias da prisão.
Eu que me comovo por tudo e por nada dou por mim a pensar que, com actores empenhados e atentos à contra-cena, a nossa vida dava um belo filme.

14 de janeiro de 2010

filosofia





Acusada de não acreditar em nada, Hypatia responde, em Ágora: “acredito na filosofia”. Após uma breve hesitação, o inquisidor encolhe os ombros: “numa altura destas, é mesmo disso que precisamos!”. A Assembleia ri-se, com ele.

Eu lembrei-me de Jaime Gama e de Vera Jardim. Não que ache que eles são obscurantistas, nem pragmáticos, nem utilitaristas, nem dogmáticos. Não que não reconheça os elevados contributos que prestaram já a Nação e que não me curve perante os seus respeitáveis percursos políticos e intelectuais. Não que não respeite os cargos que legitimamente ocupam e para os quais foram democraticamente eleitos. Não que as suas palavras tenham necessariamente de ser interpretadas como uma ofensa aos sociólogos, aos filósofos e aos historiadores e aos linguistas e aos antropólogos e aos artistas e a todos os cientistas sociais e humanos que eles, noutras alturas, civilizadamente elogiam. Não que não perceba que afinal estavam só a brincar quando, numa divertida escalada, trocaram piropos: “não queremos cá sociologias”, diz um; “e muito menos filosofias”, responde o outro.

Limito-me a não achar piada. Talvez porque vivo num país onde a palavra “filósofo” é usada como um insulto, onde as ciências sociais só servem quando legitimam o poder vigente e onde as artes são para decorar paredes e parecer moderno. Talvez seja por isso.

No final, Hypatia morre, sufocada. Amenábar deixa-nos percebê-la quase feliz, olhando o elíptico céu com que os outros nem sequer sonham. Talvez tenha razão. Afinal, ela é quem menos perde no meio disto tudo.