5 de dezembro de 2006

enchido

Rosnou no seu íntimo,
como a cadela que rosna ao pé dos seus cachorros
e vê um homem que não conhece e a ele se quer atirar -
assim rosnou Ulisses no seu íntimo por causa das más acções.
Batendo no peito, assim se dirigiu ao próprio coração:

"Aguenta, coração: já aguentaste coisas muito piores,
no dia em que o Ciclope de força irresistível devorou
os valentes companheiros. Mas tu aguentaste, até que
a inteligência te tirou do antro onde pensavas morrer."

Assim falou, interpelando o coração no próprio peito.
E o coração aguentou, mantendo-se em obediência
completa. Ele é que dava voltas e voltas na cama.
Tal como o homem à frente de um grande fogo ardente
revolve um enchido recheado de sangue e gordura
sem parar, na sua ânsia de que asse rapidamente -
assim Ulisses se revolvia na cama, pensando como
haveria de pôr as mãos nos desavergonhados pretendentes,
um homem contra muitos.

Homero, Odisseia [introdução e tradução do Grego de Frederico Lourenço], Lisboa: Livros Cotovia, 2003 (canto XX, vv. 13-30).

29 de novembro de 2006

festa

Diria que na polémica sobre o fim da Festa da Música no Centro Cultural de Belém me parece existirem, pelo menos, dois equívocos e duas mistificações.

O primeiro equívoco (apesar de bem intencionado) é o de incluir o cancelamento da iniciativa, motivado por questões orçamentais, no conjunto dos cortes cegos ao financiamento público da cultura em Portugal. Não é verdade. Neste caso, a decisão até aparece fundamentada: em dois ou três dias, o CCB gastava dois terços da verba de que dispunha para a sua programação anual, o que não é aceitável em nenhuma estratégia de programação de um espaço cultural, independentemente do montante total de que se disponha. Claro que se pode alegar que é a verba global que é baixa e que não é o orçamento da Festa da Música que é exageradamente alto, mesmo que ele represente, por exemplo, o dobro do financiamento do Estado à actividade anual do Teatro da Cornucópia, o triplo do financiamento público à actividade anual do Teatro O Bando ou do Teatro Viriato, oito vezes o financiamento estatal ao Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica e quase 70% da totalidade do apoio sustentado às entidades artísticas de iniciativa não governamental na área da música em Portugal no último ano. Claro que se pode alegar isso, mas então que se alegue isso mesmo. E que se alegue, já agora, que o que é verdadeiramente inacreditável é que o orçamento do Ministério da Cultura tenha perdido (ainda mais) peso no Orçamento Geral do Estado (de 0,6 para 0,4% do PIB entre 2006 e 2007). E que se direccione para esse tema as inusitadas campanhas dos jornais de referência.

O segundo equívoco é o de apontar esta decisão como um erro crasso na programação de Mega Ferreira. Independentemente de concordarmos ou não com ela, o que qualquer iniciado em gestão cultural lhe diria é que anunciar um novo projecto – no caso, “Os Dias da Música”, iniciativa que propõe em substituição da Festa da Música – como se se tratasse de um remendo, de uma coisinha remediada, pobre mas honrada, é condená-la antecipadamente ao fracasso. O principal erro de Mega Ferreira foi, pois, o de não ter conseguido separar as coisas. Decidido o fim da Festa da Música, só teria que anunciar a sua nova programação, mostrando que ela tem pés e cabeça, que é articulada e ambiciosa na medida em que as condições lho permitam, defendendo-a até à exaustão destas polémicas, que apenas menorizam o essencial do que deve ser uma programação cultural: os seus conteúdos artísticos.

A primeira mistificação tem a ver com o carácter providencial atribuído pela generalidade dos comentadores nacionais ao empresário que nos tem vendido o conceito da Festa da Música, René Martin. Não discuto os seus méritos, discuto a desproporção qualitativa e quantitativa do tratamento que lhe foi dado desde o início, chegando agora ao ponto de nos devermos preocupar, enquanto cidadãos portugueses, com a sensibilidade do senhor, eventualmente ferida pela forma como foi conduzido o processo. Para além de ser um caminho sem fim, porque pessoas magoadas na sua dignidade pela forma como são tratadas pelo Estado encontram-se todos os dias, às dezenas, em qualquer serviço público, até parece que o CCB não tem toda a legitimidade para (re)definir anualmente a sua programação e que o modelo proposto por Martin é um cânone inquestionável, como se a Festa da Música fosse o único projecto credível e de qualidade apresentado em Portugal.

A segunda mistificação, que é recorrente mas que mais uma vez ganha notoriedade nesta discussão, é a confusão entre salas cheias e formação de públicos. Nem as primeiras são sinónimo da segunda, nem esta se avalia apenas pelas primeiras. Continua a faltar em Portugal (como de resto noutros sítios) uma avaliação séria dos impactos deste tipo de eventos – mediáticos, envolvendo grande concentração de meios no espaço e no tempo, atraindo grandes “multidões” – na formação de públicos a médio e longo prazo. Sobretudo quando estes esforços (do mesmo tipo das Capitais da Cultura, por exemplo) não são acompanhados por uma aposta consequente nas estruturas que operam e continuarão a operar no terreno e que são obviamente indispensáveis para manter activos os públicos potenciais eventualmente atraídos pela “festa”. Neste sentido, o retrocesso na formação de públicos para a música clássica (ou para as artes de uma forma geral) não é provocado pelo abandono da Festa da Música. Como instrumento que assumia ser desse desígnio, ela podia ser substituída a todo o tempo por outro mecanismo alternativo, eventualmente mais adequado às circunstâncias concretas de cada momento e até eventualmente mais eficaz num novo contexto. O que é verdadeiramente dramático é continuar a desperdiçar os meios apesar de tudo significativos que se têm dispendido nestas grandes iniciativas sem as enquadrar numa estratégia global de desenvolvimento cultural, assente em três eixos fundamentais – financiamento da criação artística, fomento da formação nas artes e em áreas afins (gestão e produção cultural, nomeadamente) e articulação entre criação artística e sistema de ensino, como forma de aumentar, entre os jovens, a sensibilidade para as diferentes formas de expressão artística, o seu sentido crítico e, consequentemente, as possibilidades de que dispõem para formar os seus próprios gostos.

28 de novembro de 2006

xix

- Quanto é?
Só para passar o tempo, porque para quê os queijinhos da serra comprados aqui no meio dos neons, para quê as garrafas de vinho empacotadinhas numa caravela em contraplacado gravado a fogo, para quê o galo de barcelos a embrulhar os ovos moles de Aveiro, as cavacas das Caldas, o chouriço alentejano, as rendas de bilros, para quê.
Só o jornal e um maço de tabaco, a inércia, o automatismo, quase como no quiosque todas as manhãs, eu a atravessar a rua e a dona isilda ou às vezes o senhor joão, menos agora desde que foi operado, portanto quase sempre a dona isilda, sorridente, a tirar-me o jornal de debaixo dos outros e a estender-me o tabaco de tal maneira que eu às vezes quero outro mas não tenho coragem e só
- Bom dia como está muito obrigado
de vez em quando uma observação climatérica, uma pergunta pelo marido ou
- e os filhos estão bem
às quais me retribui sempre, sorrindo, apesar da coluna, da operação do marido, do pai entrevado, no neto sem pai, e desejando-me
- Bom dia, Sr. Rodrigo.
Um pouco automática, é certo, mas seguramente menos metalizada do que a outra
- Gostei muito de o servir
e apesar de tudo mais sincera do que esta agora
- Muito obrigado, senhor. E boa viagem.

22 de novembro de 2006

depois

Lembrar, Jacinta, que te deste a conhecer num concurso televisivo de imitações, constatando esperançoso que é de matéria humana que vós, artistas, sois afinal feitos.

durante

Inebriar-me, anónimo entre a sala cheia, com a presença grave, as cordas contrabaixas, as teclas que percutem, o rouco ritmo e os sibilantes esses desse saxofone que me surpreende em serpentina.

antes

Reouvir-te, rítmica e quente como o copo de vinho que me ajudas a beber, achando-me no direito de cortar o som aos engarrafamentos do regresso a casa, às catástrofes da Austrália e, sobretudo, ao Jornal de Economia.

wikibus

.......... .......... Vale das Flores .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Vale das Flores - Rotunda .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Dom Pedro de Cristo .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Carlos Seixas 2 .......... .......... .......... .......... .......... Daniel de Matos .......... .......... .......... Norton de Matos .......... .......... .......... .......... .......... Rua de Moçambique 1 .......... .......... .......... ..... Rua de Moçambique 2 .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..... Rua de Angola 2 .......... .......... .......... ... Rua de Angola 1 .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Estádio Cidade de Coimbra .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... João de Deus Ramos .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..... Escola Superior de Educação .......... .......... .......... .......... Infanta D. Maria .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..... Avelar Brotero .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Humberto Delgado .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... Combatentes - Acapo .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... .......... ..... Júlio Henriques .......... .......... .......... Arcos do Jardim .......

19 de novembro de 2006

mandamento

"E que solução defendem eles para salvar o planeta? David Marks e Steve Connors, ambos do laboratório de Energia e Ambiente do MIT, foram claros: 'para salvar o planeta a geração futura [representada pela dezena de jovens ali presente] deve escolher a engenharia como profissão'."

Diário de Notícias, 17 de Novembro de 2006, Engenheiros do MIT visitam a Escola da Amadora.

17 de novembro de 2006

sim

duas vezes sim


uma pelo individualismo




outra pela solidariedade

13 de novembro de 2006

anfiteatro

Amphithéâtre, de Jennifer Macklem.

Huile sur toile, 1991, 122 x 114 cm.

9 de novembro de 2006

debate (2)

3. O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais.

Constituição da República Portuguesa, artigo 73º.




2. Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais:

a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio;

b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, nas suas múltiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade;

c) Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum;

d) Desenvolver as relações culturais com todos os povos, especialmente os de língua portuguesa, e assegurar a defesa e a promoção da cultura portuguesa no estrangeiro;

e) Articular a política cultural e as demais políticas sectoriais.

Constituição da República Portuguesa, artigo 78º.




4 - Compete à Câmara Municipal, no âmbito do apoio a actividades de interesse municipal:
(...)

b) Apoiar ou comparticipar, pelos meios adequados, no apoio a actividades de interesse municipal, de natureza social, cultural, desportiva, recreativa ou outra.

Lei nº 169/99
, de 18 de Setembro, artigo 64º.

6 de novembro de 2006

debate

(...) Fazemo-lo agora, antes que seja tarde demais, primeiro porque encontrámos um tradutor. Mais do que qualquer outro, o teatro grego para nós são agora acima de tudo palavras, poesia, e só conseguindo ouvi-las em grego e reinventando-lhes a música no nosso português actual (como fez a Sophia, com quem todos aprendemos a amar a Grécia, quando as traduziu), elas ainda poderão subir ao palco e ser ouvidas e passarão para a alma de actores nossos contemporâneos. Antes do mais fazemos esta tragédia porque o Frederico Lourenço com alegria e generosidade no-la recriou.
Mas fazemo-la sobretudo por uma enorme teimosia, a de não desistir, modestamente é certo, de alguma vontade de intervir com os nossos espectáculos na nossa vida pública. Ainda temos a ilusão de “educar”. Pelo menos de dar que pensar. E temos o prazer de nos entregarmos a esse exercício. Criar aberração. Quisemos confrontar-nos e confrontar-vos com um debate moral que é completamente alheio à superficialidade, ao psicologismo, à imediatez, à irresponsabilidade, à desumanidade, do viver das nossas sociedades civilizadas. Revivendo esta peça distante, gostaríamos de criar algum abismo: há 25 séculos o Homem já foi isto, descobria a sua humanidade, inventava-se com esta consciência moral. E com que limpidez! (...)

Luis Miguel Cintra, sobre Filoctetes, pelo Teatro da Cornucópia


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A decisão do presidente da Câmara do Porto em cortar todos os subsídios pecuniários a fundo perdido atribuídos pela autarquia suscitou um coro de críticas no PS, PCP e Bloco de Esquerda. (...)
Rui Rio fundamentou a sua decisão, que disse destinada a "dar o exemplo" no que toca aos cortes orçamentais, na necessidade de estancar "o preocupante fenómeno de desajustada subsidiodependência".(...)
A deputada do PSD Zita Seabra está completamente de acordo, visto que "há um equilíbrio a conseguir nas autarquias para que não se financiem só iniciativas culturais de pseudovanguarda, sem público duradoiro".

Diário de Notícias, 06/11/2006.



"Será que a cultura é de esquerda?" Esta é uma pergunta frequente, que aliás ainda mostra dúvidas sobre algo que muitos afirmam abertamente: hoje entre nós a cultura é mesmo de esquerda. Basta ler jornais e revistas ou ver programas culturais para o demonstrar. (...)
Considerando com atenção a frase, porém, vê-se que a cultura atribuída à esquerda não é a cultura real. Não se refere à tradição popular, nem sequer à criação genial. "Cultura" aqui é apenas a elite artístico-literata, que pontifica oficialmente para efeitos de almoços, entrevistas e subsídios. Não se trata da civilização que identifica um povo, nem dos génios que marcam uma época. A expressão refere-se apenas aos que fazem profissão das artes e espectáculos, que ganham a vida a produzir objectos supostamente culturais. É só mesmo a massa que lida com o ministério. No fundo trata-se de um particular sector de actividade. Nos sectores é comum haver regiões, etnias e grupos dominantes. Assim, não espanta que a cultura seja de esquerda, como os têxteis são do Norte.

João César das Neves, A cor predefinida da cultura, Diário de Notícias, 06/11/2006.


DC – Para terminar, a política cultural do município tem sido alvo de críticas.
CE – Algumas pessoas são profundamente incongruentes com aquilo que dizem. Tenho impressão de que nunca o projecto cultural foi tão consistente. A recuperação do Centro Histórico é um grande projecto cultural, a candidatura da Universidade a Património Mundial, que apoiamos totalmente, também o é. A criação da área museológica da Universidade, com a constituição de uma fundação, é o maior projecto que Coimbra alguma vez teve nesse domínio.

DC – Mas os agentes culturais mostram-se impiedosos…
CE – Não são os agentes culturais, são as pessoas que recebem subsídios. Há muitas outras pessoas que não os recebem e que têm actividade cultural. Quando se gere a cultura ou qualquer outra coisa, temos que saber qual o universo que é atingido por uma oportunidade que a câmara municipal ou o Estado dá. Não podemos ter pessoas a trabalhar para si próprias ou então para quatro ou cinco amigos. A câmara tem realizado investimentos em bens culturais que depois coloca à disposição dos grupos, mas não tem dinheiro para realizar seis ou oito milhões de investimentos e depois manter a subsidiação aos grupos.

Entrevista a Carlos Encarnação, Diário de Coimbra, 06/11/2006.

4 de novembro de 2006

sonhos

A ele deu resposta a sensata Penélope:
"Estrangeiro, sabes bem que os sonhos são impossíveis
e confusos, nem sempre tudo se cumpre entre os homens.
São dois os portões dos sonhos destituídos de vigor:
um é feito de chifres; o outro, de marfim.
Os sonhos que passam pelos portões de marfim talhado
são nocivos e trazem palavras que nunca se cumprem.
Mas os que saem cá para fora dos portões de chifre polido,
esses trazem coisas verdadeiras, quando um mortal os vê."

Homero, Odisseia [introdução e tradução do Grego de Frederico Lourenço], Lisboa: Livros Cotovia, 2003.

3 de novembro de 2006

c)

Lembro-me todos os dias, a cada manhã que começo, a estranhar ainda o ter que aquecer o café com leite, o comer sozinho, o fechar a porta sem ter a quem
- Até logo.
o não ter que explicar o atraso para o jantar, o não ter quem me ouça as diatribes do patrão, o não ter a quem pedir o frasquinho do sal, a jarra da água, o não ter com quem disputar a lavagem da louça, a limpeza do pó, o pagamento das contas.
Lembro-me todos os dias e a todas as horas, quando toca o telefone, uma campainha no peito que me aperta e me sustém a respiração, que só volta quando do outro lado outra coisa que não
- Lamentamos muito.
Como imagino que um dia destes, eu na mesa quatro a atender turistas alemães e o ucraniano a chamar-me aturdido do balcão
- É para ti.

2 de novembro de 2006

xviii

- Vamos ver as montras.
Como no teatro do Abel, como o meu pai a fingir-se simpático e a antever o decote dos manequins primavera-verão, como a minha mãe a fingir-se contente
- Vamos
um sonho, uma alegria, a família inteira junta, um domingo sem futebol, uma tarde inteira a
- Vamos ver as montras
num centro comercial sem escadas rolantes nem ar-condicionado nem macdonalds nem casa das sandes só o snack-bar onde o meu pai no intervalo das montras
- Uma fresquinha!
E a minha mãe a medo
- uma meia de leite
e a minha irmã de olho no corneto, no epá
- um gelado de laranja
e eu só, se quero um também, eu só
- pode ser.
Quando na verdade não queria nada, só ir-me embora, como agora, de bilhete na mão
PARIS EH LINDO
E a ver as montras, os jornais, as revistas, os recuerdos de um país que já não me parece o meu
- Quanto é?

1 de novembro de 2006

amares

m.



amares
o minho
a ferro e pedra
e água

31 de outubro de 2006

inocente

Era um homem tão inocente, mas tão inocente, que a guilhotina se encravou de remorsos.

30 de outubro de 2006

27 de outubro de 2006

abertura

Há (muito poucos) dias assim.
Obrigado, Braga, e a quem em nome da cidade conseguiu oferecer ao país este magnífico Teatro.

caminho

Ao princípio tive esperança. Teria preferido mil vezes que me não vissem, que não dessem por mim, que me deixassem cosido contra o acrílico, disfarçado de nada.
Mas depois, quando a histriónica rapariga do rouco riso e o excitado rapaz das rotas roupas me vieram recordar o fedor do vomitado que sempre se segue ao coktail de águas de colónia, after-shaves e espumas de cabelo, não pude resistir.
Num ápice, arrumei as tralhas, levantei-me, desembainhei o guarda-chuva e com ele abri, entre a multidão raivosamente divertida, o caminho por onde fui a pé a para casa.

26 de outubro de 2006

fauce

FILOCTETES

Ó aves rapaces e feras
de olhar flamejante, que habitais
os montes desta região,
nunca mais da minha gruta vos acercareis
para logo fugirdes. Já não tenho nas mãos,
como dantes, a força dos meus dardos.
Oh! como sou desgraçado agora!
Livre fica este lugar,
não mais é temível para vós
Vinde, que a altura agora é bela
para saciar a gosto as fauces vingadoras
na minha carne corrompida.
Em breve deixarei a vida.
Donde me virá subsistência?
Quem pode de brisas nutrir-se,
quando já não possui nada
de quanto produz a terra fecunda?

Sófocles, Filoctetes (tradução, introdução e notas de José Ribeiro Ferreira). Lisboa. Edições 70, 2005 [v. 1146-1162].

25 de outubro de 2006

b)

- Sei, e pronto.

Eu ainda a duvidar, mas tu sem o sorriso com que te davas por vencida das outras vezes.

- Tens razão, se calhar sou mesmo hipocondríaca.
- Áh, mas não tenhas dúvidas.

em que no final nos abraçávamos e eu para te tranquilizar te dizia, desde o tempo em que nos amávamos, que não ia deixar que te acontecesse nada

- Dá-me um abraço, deixa-me abraçar-te.

Desta vez sem esse sorriso, só

- Sei, e pronto.

E o olhar preso na televisão onde recomeçara a telenovela, sem uma expressão, sem dor, sem medo, sem nada, só um

- pronto

determinado, um ponto que me dizias final, mas eu ainda baralhado, eu confuso, eu, confesso, ligeiramente irritado por me teres estragado o prazer da vitória, três a zero numa jornada europeia, uma noite histórica, uma noite mágica

- Uma noite mágica!

como disse o comentador desportivo, como amanhã sairá em todos os jornais, como eu diria se tu não, com essa conversa que alguém

- Quem é que te meteu isso na cabeça?
- Ninguém. Sei e
- Pronto, não se fala mais nisso. Vou dormir até amanhã.

Lembro-me como se fosse hoje.

24 de outubro de 2006

cartazes

Um conjunto de silhuetas humanas em contra-luz, no que parece ser um ambiente de festa. A maioria pretas mas cinco, no meio delas, vermelhas, atingidas por raios da mesma cor que caem de uma garrafa de espumante suspensa do céu estrelado.
“O álcool está entre nós...”

Uma mesa posta. Uma toalha creme com motivos primaveris bordados a branco no centro de quadrados desenhados a vermelho. Grande plano de um prato raso – porcelana branca com flores pintadas. Garfo, faca, copo e guardanapo de papel nos locais próprios. Dentro do prato, no lugar da comida, uma garrafa de vinho (do produtor), uma garrafa de cerveja e um copo de vidro castanho.
“O álcool não alimenta... mas engorda!”

Troncos e cabeças de jovens (sobretudo rapazes) eufóricos num concerto de música. Foto a preto e branco a partir da frente do palco. Os olhos das pessoas tapados com rectângulos coloridos como as faculdades.
“O álcool queima... Não faças fitas!”

Fundo azul. Rodapé de manjericos, cabeçalho com balões de marchas populares. Ao centro, uma banda filarmónica de barro e réplicas dos três santos de junho simulando o beber um copo.
“Festas e álcool? Com conta e medida... (nem os santinhos te valem)”

Foto-montagem em cinco planos. Gruas, lá atrás; chaminés de cerâmicas, logo a seguir; uma fábrica das antigas, daquelas com o telhado aos bicos, a meio; um bloco de apartamentos semi-construído, um pouco mais à frente; dois capacetes de obra no chão, em cima de uma poça de vinho (de sangue?) e dos cacos de uma garrafa partida.
“A (in)segurança está em Ti... (com) sem Álcool”

23 de outubro de 2006

palmilhas

O mais curioso naquela sapataria não era a tabuleta na porta a anunciar concertos em calsado, nem a parede de madeira com sapatos pendurados em pregos exibindo as suas solas de borracha a quem entrava, nem o arco triunfal que deixava perceber a oficina lá atrás, nem o expositor de saltos e tacões oscilando por cima da porta entreaberta para o wc, nem o balcão de madeira com um tampo de vidro estilhaçado, nem as latas de graxa em lugar de destaque na vitrina, nem a senhora de cabelo despenteado a olhar-nos por cima dos óculos como quem diz assim que entramos o que é que este quer agora, nem a voz do marido que ouvimos na oficina, nem os protectores para pisadelas a um euro e meio, nem a paciência da cliente à nossa frente cuja encomenda se ficou pela metade, nem a variedade de sacos imundos em que nos entregam o serviço, nem o aspecto lunático do sapateiro que sobe por fim ao palco, orgulhoso do seu trabalho, nem os dez euros que nos cobram por dois pares de capas minúsculas, nem a inibição que tudo isto nos provoca na hora de pedir recibo.
O mais curioso naquela sapataria era mesmo a gaiola com o canário amarelo, pendurada entre as formas e o rolo de pele curtida com que se fazem as palmilhas.

21 de outubro de 2006

consciência

Tinha a sua consciência tão tranquila, mas tão tranquila, que a deixou adormecer.

a)

- Lá estás tu, que parvoíce!
- Estou-te a dizer.
- E como é que sabes, não me dizes?
- Sei.
- Mas sabes como?
- Sei e pronto.

Como se fosse hoje, uma conversa que não me sai da cabeça, onze anos e é como se fosse hoje, uma terça-feira à noite, tu sentada no sofá, a telenovela a chegar ao intervalo e eu a mudar para o futebol, à espera que reclamasses, que te zangasses na brincadeira, que resmungássemos os dois um bocadinho, amigáveis, conscientes da vida a dois. Mas tu nada, acho até que já nem estavas a prestar atenção à televisão, lembro-me de ter metido conversa.

- Então estes dois agora estão juntos?

E tu não me respondeste, descobri depois que já não estavas interessada naqueles dois, mesmo que as revistas anunciassem que na vida real também, beijos e abraços numa ilha do pacífico, palmeiras, espreguiçadeiras e uma piscina que podia ser nas traseiras de um hotel qualquer em Lisboa mas não, no pacífico, pelo menos dois repórteres a acompanhar o casal para uma capa e quatro páginas a cores em que nos impingiam a felicidade dos recém-namorados.
Tu já não estavas interessada neles como antes fingiste estar, tu a ver a novela só para enganar o tempo, esse que de repente percebeste que te falta, porque

- Sei, e pronto.

portas



O bom dos teatros é que as portas abrem sempre para fora.

Só lá fica quem quer.

19 de outubro de 2006

matéria

estreia hoje, em vila nova de paiva.

lugar

PALAVRAS

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.

Manoel de Barros, Ensaios Fotográficos, São Paulo, Editorial Record, 2000.

18 de outubro de 2006

desejo



GRANDE DESEJO

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
pra chorar, chorar e chorar.
requintada e esquisita como uma dama.

Adélia Prado, Bagagem, Rio de Janeiro: Editorial Record, 2002 (ed. orig. 1976); Lisboa: Livros Cotovia, 2002.

17 de outubro de 2006

ordem



A menina apareceu grávida de um gavião.
Veio falou para a mãe: O gavião me desmoçou.
A mãe disse: Você vai parir uma árvore para
a gente comer goiaba nela.
E comeram goiaba.
Naquele tempo de dantes não havia limites
para ser.
Se a gente encostava em ser ave ganhava o
poder de alçar.
Se a gente falasse a partir de um córrego
a gente pegava murmúrios.
Não havia comportamento de estar.
Urubus conversavam sobre auroras.
Pessoas viravam árvore.
Pedras viravam rouxinóis.
Depois veio a ordem das coisas e as pedras
têm que rolar o seu destino de pedra para o resto
dos tempos.
Só as palavras não foram castigadas com
a ordem natural das coisas.
As palavras continuam com os seus deslimites.

Manoel de Barros, Retrato do artista enquanto coisa. Rio de Janeiro/São Paulo: Editorial Record, 2002 (ed.orig. 1998).

trabalho

- Como diz?
- Digo que o trabalho em produção artística é como o acto sexual: começamo-lo entusiasmados, transpiramos em posições incómodas, e no fim um prazer, forte mas fugaz, seguido do vazio que antecede a próxima excitação.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- Quem se não deixa absorver pelo trabalho poderá apenas fingir os seus orgasmos.
- Como diz?

oráculo



ARTE

Das tripas,
coração.


Adélia Prado, Oráculos de Maio. São Paulo: Editorial Siciliano, 1999.

14 de outubro de 2006

culpa

Uma imprevista dedicatória, a propósito de culpas, espirros, arrotos, tolerâncias e outras dores.



De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Foi assim desde menina
Das lésbicas concubina
Dos pederastas, amásio
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques de ginásio
Mas também dá-se amiúde
Aos velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir:
"Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni"

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme Zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do Zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo: "mudei de idéia
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniqüidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir"
Essa dama era a Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela prisioneiro
Acontece que a donzela
E isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
"Vai com ele, vai, Geni
Vai com ele, vai, Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni"

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nesta noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu Zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou pro lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
"Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni"


"Geni e o zepelim"
(Chico Buarque de Hollanda)

12 de outubro de 2006

capital

Se eu fosse ministra da cultura e me coubesse iniciar a preparação de uma capital europeia da dita, havia de querer que ela não fosse um mero fogacho de ocasião. Havia de gostar de a articular com uma (ténue que fosse) estratégia de desenvolvimento cultural para o país. Excluídas as duas maiores, havia de seleccionar quatro ou cinco cidades de média dimensão e conversar com os agentes políticos, educativos e artísticos nelas sediados, aferindo dos seus interesses, das suas motivações, das suas potencialidades. Havia também de definir meia dúzia de critérios objectivos, nos quais incluísse variáveis demográficas e económicas, sim, e o património histórico e cultural, também, e o nível de equipamentos disponíveis e a serem disponibilizados, ainda, mas onde a pujança e a sustentabilidade da criação artística local assumisse lugar de destaque. Na hora do anúncio público da escolha que fizesse, havia de fundamentar devidamente a opção tomada e havia de querer envolver a autarquia local desde o início do processo, evitando apanhá-la de surpresa.

Se eu fosse vereadora da cultura da cidade escolhida para capital europeia da cultura para daqui a seis anos e tomasse conhecimento do facto de surpresa numa cerimónia pública, havia de comover-me, sim, mas com a irresponsabilidade dos governantes que adoptam tais comportamentos. Havia ainda assim de me regozijar, naturalmente, e de começar a trabalhar rapidamente com os agentes locais. Antes, porém, havia de exigir ao governo uma clarificação urgente sobre aquilo que pretende com esta iniciativa e qual o grau de comprometimento que está disposto a assumir. Havia de lembrar à senhora ministra que estímulos e prémios simbólicos são bons e agradecem-se mas não pagam rendas de casa.

Se eu fosse presidente de câmara de uma outra cidade média que efectivamente tivesse querido ser, a sério, capital europeia da cultura, havia de começar a trabalhar com uma década de antecedência, assegurando condições mínimas de trabalho aos criadores culturais profissionais, construindo, recuperando e colocando a funcionar equipamentos qualificados, definindo em colaboração com outras entidades um programa de longo prazo, com objectivos claros e ambiciosos. Havia de assumir a cultura como prioridade no desenvolvimento da cidade, havia de escolher para a área um vereador minimamente conhecedor, razoavelmente competente e sobretudo capaz de dinamizar um clima de confiança, co-responsabilidade, motivação e entusiasmo com os agentes culturais locais. Se, somado a isto tudo, tivesse a sorte de ser presidente de câmara numa cidade que tivesse a maior população estudantil do país, que ocupasse uma posição central do ponto de vista geográfico, que tivesse uma das mais antigas e internacionalmente reconhecidas universidades da europa, que possuísse um assinalável património arqueológico, monumental e bibliográfico, que tivesse estruturas de criação e de programação artística (em diversas áreas) de referência a nível nacional, então eu havia de ser capaz de elaborar um projecto que o governo do meu país não pudesse recusar, evitando a triste figura das lamúrias tardias e ressabiadas.

Se eu fosse vereador da cultura numa cidade que tivesse dito (mesmo que tardiamente e de uma forma frouxa e pouco credível) que queria ser capital europeia da cultura e ninguém me perguntasse nada quando se soubesse que o governo tinha escolhido outra cidade, havia de me questionar sobre o que é que eu andava aqui a fazer. Se, nesse caso, o meu próprio presidente constantemente me desautorizasse e me relegasse para quarto ou quinto plano sempre que se falasse de projectos um bocadito maiores na área da cultura, havia de ficar embaraçado.

Se eu fosse vereador da oposição na câmara de uma cidade que tivesse mostrado (por qualquer forma e com qualquer intensidade) que queria ser capital europeia da cultura e tivesse afirmado convictamente, há poucos meses atrás, que os problemas da cultura na cidade se resolviam colocando os criadores a fazer animação de rua na baixa, na hora em que se soubesse da escolha do governo (qualquer que ela fosse), eu havia de me calar e fingir que não era comigo, porque eu desses assuntos não percebo nada.

Se eu fosse profissional da cultura numa cidade que reunisse inúmeras potencialidades para ser uma grande capital da cultura, potencialidades essas que tivessem sido ignoradas, desprezadas, combatidas, ostracizadas e, nos casos mais bem sucedidos, destruídas pelos responsáveis políticos dos últimos vinte anos, no momento em que percebesse que o governo escolhera outra cidade havia de encolher os ombros, sorrir e entreter-me a escrever um texto que desse conta do quão surreal é esta história toda.

11 de outubro de 2006

botas

De tanto deixar que lhe lambessem as botas, já quase andava de sandálias.

10 de outubro de 2006

argumentos

Guarda para ti mesma, se os não tens melhores, os argumentos de merda com que me feridas a razão.

silêncio


Tens razão, Sónia: na maior parte das vezes, só o silêncio nos serve.
A dor o medo o ódio a tristeza o remorso a decepção a angústia a culpa a resignação a força o esforço a fraqueza a vingança a esperança a raiva a humilhação o desespero o frio a fome a frustração a desilusão a sede a ilusão a vontade a fúria a impotência a vida a morte e o resto não cabem numa só palavra em nenhuma língua do mundo.

9 de outubro de 2006

curral


Rasga-me as carnes
como se foram placas de gelo
Enlameia-me a garganta
como se fora a neve derretida
Quebra-me a espinha
como se fora um tronco seco
Penetra-me sôfrego
como se foras um cão
que eu branca cá dentro
voarei como só os pássaros
pretos que me pareceram
abutres que me pareceu
rirem-se da europa civilizada

5 de outubro de 2006

república


- Como diz?
- Digo que a república é como o ar que respiramos: habituamo-nos a ela, não a sentimos a alimentar-nos, deixámos de a festejar e, mesmo viciada e corrompida, já não saberíamos viver sem ela.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- Os povos que a não defendem podem morrer sufocados.
- Como diz?

4 de outubro de 2006

rentrée

Vozes hormonais e risos nervosos antecipavam o suor da cerveja, ribombantes nos vidros do autocarro, amplos e generosos

- Quebrar em caso de emergência

mas demasiado afastados.

3 de outubro de 2006

xvii

Um

- Obrigado, boa tarde

já de fugida, ele a dar a curva, a pôr o cinto, a repegar o telemóvel, eu

- Abre-te Sésamo

a brincar com a porta automática e a entrar na babilónia, metais, cromados, vidros, espelhos, luzes, neons, anúncios coloridos, música de fundo, passadeiras rolantes, mármores e a pensar

- Cheguei

antes mesmo de partir, antes mesmo do bilhete, afinal tão fácil, à distância de uma corrida de taxi, atrás de uma porta que a gente

- Abre-te Sésamo

e ela a fazer-nos a vontade, a oferecer-nos o novo mundo sem necessidade de barcas, naus ou caravelas, a mostrar-nos o universo sem foguetões nem naves espaciais, a mostrar-nos o paraíso sem purgatório, nem missas nem mandamentos, tudo tão fácil.
Eu um menino na loja de brinquedos, aquele carro, aquela bola, aquele jogo, aquela máquina, e em simultâneo na loja de doces, aquele pastel, o de feijão também, os rebuçados, os chupa-chupas, os chocolates, o balde das pipocas, fixado no monitor azul onde o menu das viagens, os pratos do dia

- Frankfurt, Istambul, Sidney, Madrid, Boston, São Paulo

me pareceu tentador.
Mas eu Paris, a confirmar no papel, cheguei cedo demais, tempo para fazer como quando ao domingo

- Vamos ver as montras

2 de outubro de 2006

solano

Um vento calmo e sufocante que vem do leste.
Um vento maldito que enlouquece as pessoas e alimenta os moinhos.
Uma aragem seca e quente, que se insinua primeiro e que depois nos arromba os poros, nos invade, nos consome devagarinho e nos resseca as entranhas até que só palha, só forma, só estalidos cada vez mais ténues, até que por fim a desintegração total no turbilhão dos elementos e uma espécie de felicidade derramada em poeira na planura da mancha.

vento

Pára com isso, Raimunda, que eu desato a chorar.
E os fantasmas não choram.

30 de setembro de 2006

proximidade

Já não te peço que urines sentado porque isso facilita a limpeza, não, mas se não tossisses para cima da comida, se não limpasses o suor com o guardanapo, se não limpasses os pés ao sofá, se não bocejasses como se a culpa fosse minha, se não gritasses da porta da cozinha o que é a palha de cada vez que queres saber o que é o almoço, se não ordenasses o galão como se eu não to tivesse oferecido, se não bebesses tanto, se não insistisses em comer com a boca aberta, se não fizesses questão de me exibir esse teu lado boçal, talvez não me fosse tão difícil segurar as lágrimas.

29 de setembro de 2006

libertado



Prometeu, ao que consta, soltou soluços lamentosos pela ave, sua única companhia em três mil anos e único provento em duas vezes três mil. Hei-de eu comer as tuas setas?, gritou, esquecendo-se que conhecera outro alimento. Saberás tu voar, campónio, com esses teus pés de esterco? E vieram-lhe vómitos causados pelo fedor a estábulo que perseguia Héracles, desde que este limpara os estábulos de Augias, porque o fedor do estrume chegava ao céu. Come a águia, disse Héracles. Mas Prometeu não percebeu o que ele queria dizer.

Müller, Heiner, "A Libertação de Prometeu" (tradução de José Ribeiro da Fonte), in Prometeu 06. Coimbra: A Escola da Noite, 2006.

27 de setembro de 2006

cansado


Há quatro lendas sobre Prometeu. A primeira conta que, por ter traído os deuses junto dos homens, foi agrilhoado ao Cáucaso e os deuses enviavam águias que lhe iam comendo o fígado, que renascia sempre de novo.
A segunda conta que Prometeu, devido às dores provocadas pelos golpes dos bicos, se foi metendo cada vez mais pelo rochedo adentro, até se fundir com ele.
A terceira diz que, ao longo dos milénios, a sua traição foi esquecida, que os deuses esqueceram, as águias também, e até ele próprio.
A quarta conta que todos se cansaram daquilo que se tornara sem fundo. Cansaram-se os deuses, cansaram-se as águias. A ferida fechou de cansaço.
Restou o inexplicável monte rochoso.


Kafka, Franz, "Prometeu", in Parábolas e Fragmentos (selecção, tradução e prefácio de João Barrento). Lisboa: Assírio e Alvim, 2004.

agrilhoado


PROMETEU

A tuas palavras são altivas e cheias de arrogância, como convém ao lacaio dos deuses. Vós, novos, governais há pouco, e julgais habitar uma cidadela inacessível à dor. Mas não vi eu já, num abrir e fechar de olhos, cairem dois tiranos? Mais vergonhosamente e com maior rapidez hei-de ver cair o terceiro, que agora governa. Parece-te acaso que eu receio e tremo diante dos deuses novos?

Ésquilo, Prometeu Agrilhoado (introdução, tradução do grego e notas de Ana Paula Quintela Sottomayor). Lisboa: Edições 70, 1992.

20 de setembro de 2006

xvi

- Estou.

Eu salvo pelo gong, a chegar-me para o canto, a beber água e a cuspi-la, a tirar a protecção dos dentes, a olhar pela janela, árvores agora e bombas de gasolina, placards publicitários, mulheres e cervejas e férias na praia, o taxista a falar, um ruído de fundo, não quero saber, vou chegar a tempo, não Samuel (estou a ver-te o cartão), não quero saber do teu telefonema, da amázia que tens na outra banda, do teu passado trabalhador, da tua vida emigrado, do apartamento de duas assoalhadas com parabólica na varanda, era o que faltava, não quero saber, quero só que me deixes

- Para o aeroporto, se faz favor.

Não ouviste? Pegas-me, levas-me, largas-me e pronto, nunca mais me ouves, nunca mais nos vemos, nunca mais o xadrez, nunca mais o boxe, nunca por nunca um torneio de sueca, um copo de tinto, a disputar um presunto que o secretário da associação trouxe da aldeia nas férias da Páscoa.
Não, Samuel, não quero saber, quero só que me deixes, continua o telefonema, não quero saber

- Nas partidas, por favor

e não me perguntes

- Então vai para onde?

Porque eu não te respondo, quero lá saber da tua vidinha, por que raio queres saber tu da minha, nunca mais havemos de nos encontrar

- Para França, mas são só três dias

E tu que tens lá uma filha, netos e tudo, mas eu não quero saber, felizmente chegámos, não acabaste o combate, não me puseste ko com a tua historieta

- Ora oito eurozitos.

Aprendeste depressa, um conto e seiscentos, a fazeres o câmbio mental apesar de seres contra

- Noutros tempos

Antigamente é que era bom, não era, meu fascista de merda, a imaginar-te no mato, a secar a tatuagem à procura de pretos e ainda hoje a gabares-te da emboscada

- Até gemiam, os filhos-da-puta

Isto só eu a ver-te no retrovisor porque tu

- Agora tenho que desligar, até logo.

mesmo antes de

- Ora oito eurozitos

e até sais do carro e me abres o porta-bagagens e me tiras as malas e me

- Uma boa viagem, sim? Obrigado.

aceitas a gorjeta e a despedida, quase um abraço, quase um

- Até breve

quase um

- Até já

um muito sentido

- Obrigado, boa tarde.

16 de setembro de 2006

intenções

Já não é só o facto de encherem o inferno, não, é o facto de elas - as boas intenções - estarem a trazê-lo para a terra.

15 de setembro de 2006

urgências

Talvez fosse por ser Verão e andar dado à nostalgia, mas é verdade que outras vezes quase me parecia estar num parque de campismo, estacionado debaixo daquelas árvores a apreciar o contorno incerto dos arbustos e a receber o eco de vozes filtrado pelas folhagens. Punha-me a imaginar como seria o novo hospital, em construção, e apetecia-me ligar ao arquitecto, a pedir-lhe que não se esquecesse de colocar um jardim na entrada das urgências.

14 de setembro de 2006

corda

Na barbária, aos domingos, o povo juntava-se na praça para praticar uma variante do jogo da tracção à corda: enlaçavam na dita um estrangeiro, previamente caçado no bosque que rodeava a aldeia.
O grupo cuja força se demonstrasse mais bruta banqueteava-se depois, numa orgia canibal realizada ao som do fado de coimbra.

13 de setembro de 2006

xv

- Pois.

E entretanto a avenida, já outra, os túneis a acelerar por cima de nós, um intervalo, cada um para o seu canto, a toalha ao pescoço, meninas de fato-de-banho a dançar no ringue uma música altíssima, uma placa nas mãos

ROUND 2

só que hoje sem árbitro, os dois sozinhos num carro de praça e lá fora a cidade, alheada de nós, um soco ao de leve para mostrar quem manda

- Agora também há os do Leste

depois uma direita, ainda de mansinho

- E os brasileiros

e o golpe nos rins, este já a doer

- Só putas e chulos, é o que é.

Uma vergonha, quase vou ao tapete, não te ficas sem resposta mas só me sai

- Também há gente boa.

Surpreendentemente o taxista encolhe-se um pouco, não me esperava sequer vivo, e eu aproveito, acerto-lhe no queixo

- Antigamente éramos nós, lá fomos para a França, para a Suíça, para o Luxemburgo

pareço um martelo, fraco mas insistente

- a Alemanha, a Inglaterra. E até para o Brasil, para a Venezuela.

Ele já recomposto, a acertar-me num olho

- Não, mas isso era diferente

a levar-me para as cordas

- Nós íamos e trabalhávamos

uma direita

- fazíamos o que eles não queriam fazer

outra direia

- não andávamos lá a arranjar problemas

depois uma esquerda

- comíamos o pão que o diabo amassou.

Eu a agarrar-me às cordas, ensaguentado, a tentar levantar-me e a vê-lo de braço puxado atrás, a preparar-se para um golpe baixo

(hoje sem árbitro, a cidade alheada de nós)

a tirar-me as medidas

- Quer saber

Felizmente o telemóvel, o dele, a servir de gong, a salvar-me da morte, ele no seu canto, a limpar o suor com a toalha e a atender

- Estou.

12 de setembro de 2006

assim

E eu esperava ali, ao pé daquela palmeira que eles deixaram ficar, pela tua mãe. Ficava a ver o anoitecer reflectido na parede do hotel, interrompido pelo quadriculado irregular das janelas dos quartos dos executivos, homens e mulheres, que iam descendo para o jantar. Às vezes pensava se teriam filhos, assim pequenos como tu eras, e em como conseguiam juntar tudo na mesma vida.
E em como é que conseguiam trabalhar, vindos de longe, deixando-os em casa, se calhar alguns também no hospital, indefesos como tu. Perguntava-me como é que se consegue viver assim.

visões

Já vejo o mar a crescer
Onda gigante a varrer
Só vejo corpos a boiar

Vejo a cidade a ruir
E o chão que se está a abrir
Só oiço gente a gritar

Ai, que eu estou a delirar
O que é que eu estou a inventar?
Não vos quis impressionar
São tudo fantasias
que o cinema projectou no meu olhar
São as velhas profecias
que o vidente deixou escrito para assustar

Já vejo a vida a fugir
Da força de resistir
Já não consegue respirar

Do céu eu vejo descer
O fim em cargas a arder
Já ouço a terra estoirar

Ai, que eu estou a delirar
O que é que eu estou a inventar?
Não vos quis impressionar
São tudo fantasias
que o cinema projectou no meu olhar
São as velhas profecias
que o vidente deixou escrito para assustar

Ai, que eu estou a delirar
O que é que eu estou a inventar?
Não vos quis impressionar
São tudo fantasias
que o cinema projectou no meu olhar
São as velhas profecias
que o vidente deixou escrito para assustar

Não vos quis impressionar
Não vos quis impressionar
Impressionar...
Impressionar...

Visões-Ficções (Nostradamus)
António Variações



Je Vos Salue, Maria

11 de setembro de 2006

actualização

O povo às vezes engana-se nos seus ditados, maz não faz mal - a gente cá está para lhe actualizar a sabedoria.
À quarta é de vez, vais ver, à quarta é de vez.

7 de setembro de 2006

ibiza

Lembras-te de quando éramos adultos e brincávamos ao regresso ao trabalho?
Arregaçávamos as mangas e
- Estás queimadinho, hã
- E tu também, hã
com sorrisos amarelos. Levávamos as máquinas digitais para encher de inveja os colegas, durante uma semana só areia e chapéus de sol e mar azul e filas de carros, a fingir interesse pela alegria dos outros mas no fundo a pensar a minha ibiza é melhor que a tua.

6 de setembro de 2006

escamas

- Como diz?
- Digo que as escamas são reaccionárias: alojam-se no ralo do lava-loiça e ali ficam, coladas, impedindo que a água prossiga o seu caminho.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- O crivo que as segura é um colaboracionista.
- Como diz?

5 de setembro de 2006

outono

Grandfather mountain in fall
Egidio Antonaccio, oil on linen, 24x36
Antonaccio Fine Art Gallery


A terra saúda-me só porque está em festa e eu passo de carro debaixo da faixa branca e das flores de papel penduradas nos postes da EDP.
A consciência pesa-me porque não mereço a saudação e porque descubro na regularidade com que agora lá vou um novo sentido para a expressão "uma vez por festa".
Depois comovo-me. Com a altura das cerejeiras que ajudei a plantar, em filas alinhadas com um baraço e o avô ainda
- Isso não está direito
a reclamar, autoritário, não absorto no canto do lar como agora, sem nos reconhecer, à espera do lanche e a incomodar-se com a visita
- O que é que estão aqui a fazer
Comovo-me com os castanheiros, carregados de ouriços de um verde que a mão humana ainda não consegue reproduzir, castanheiros que também plantei, a lembrar-me a avó que me levava às castanhas que depois cozia, os cartuchos de figos secos que cortávamos a meias para as broas de natal, sem pensar nos avc, na cegueira, na cadeira de rodas, só na alegria com que me recebia de três em três meses e na saudade com que se despedia do carro até ele dar a curva e eu me virar finalmente para a frente.
Comovo-me com a perfeição das macieiras, mais antigas, agora podadas pela família alargada que felizmente conseguimos que se conhecesse. Comovo-me com o silêncio da terra à hora de almoço, com o check-sound para o grandioso baile com o famoso agrupamento, com o bacalhau e a chanfana da avó que não quero perder.
Depois vejo um avião a desenhar um risco branco por cima do monte que o incêndio cobriu de mato e percebo tudo.
Quase tudo.

3 de setembro de 2006

musgo

- Como diz?
- Digo que o musgo é um reformista: aproveita uma minúscula nesga de terra e vai crescendo. Quase sem darmos por ele, acaba por tapar as pedras. Depois segura a terra que vem com a chuva e as sementes que o vento traz e acolhe as ervas. Cada vez maiores, estas começam a reproduzir-se e a segurar mais terra, mais sementes, até cobrirem por completo a calçada à portuguesa.
- Mas nesse caso...
- Diga, diga.
- O jardineiro que o apanha é um contra-revolucionário.
- Como diz?

2 de setembro de 2006

iogurte

- Nunca menosprezes - disse o velho enquanto atiçava o lume com a ponta da bengala - aquilo que um iogurte tem para te dizer. Nunca o menosprezes.
- Sobretudo - acrescentou o avô enquanto lambia mais uma tampa metalizada - quando ele é puro pedaços Morango vindo do RIBATEJO. Sobretudo quando.

Isto foi o que o velho disse, mesmo antes de cair para a fogueira, antes dos gritos, da ambulância, da autópsia e do registo oficial da causa da morte:
"envenenamento por fermentos lácticos, corante natural (carminas) e conservante da fruta (E-202); iliteracia poética na interpretação da frase 'Alimenta a Vida'".

1 de setembro de 2006

unworldly

"Na sua passagem pelos Estados Unidos, [Grigori Perelman] tinha ganho fama de homem de poucas palavras, afastado do mundo - «a kind of unworldly person», como disse depois ao New York Times o matemático Robert Greene, da Universidade da California, em Los Angeles."
Actual, 26/08/2006.


- Será grave, doutor?
- O quê?
- Esta minha mania de me apaixonar pelas palavras.

31 de agosto de 2006

manual

4. Ao contrair o artigo definido feminino sigular "a" com a preposição simples "a", agrave o acento utilizado.
Evitará assim agudizar a impaciência dos seus leitores.

30 de agosto de 2006

arqueologia

Sob as camadas de posts que se vão sucedendo neste blog, é já possível fazer alguma arqueologia e descobrir, quase por acaso, alguns achados interessantes, embrulhados nos comentários.
Para além do lixo, há a sintonia e há os excessos de generosidade próprios das pessoas boas, aos quais é impossível responder sem que se caia na mais das pegadas lamechices.

28 de agosto de 2006

xiv

- Pois é, lá isso.

Ele a fingir que se acalma, consegue meter a terceira, buzinar ao autocarro, insultar um ciclista e posicionar a rainha numa fracção de segundo

- Olhe para isto, o dia inteiro aqui sem fazer nada

a apontar para uns pretos que circulam no passeio, eu a topar a jogada mas sem saber o que fazer, a torre da esquerda, uma só casa e a medo

- Hmm

Ele sem misericórdia, a topar-me inseguro

- Isto agora está cheio deles, qualquer dia

são mais do que nós, eu a antecipar-lhe a jogada mas só me ocorre fugir, desvio a rainha, felizmente o jornal no tabliê, um título que identifico

- Então ele sempre se vai embora?

Ele baralhado, a entreter com um peão, a tentar perceber

- Como diz?

Eu preso no meu bluff, como é que se chama?, a ajeitar um cavalo e com um gesto do queixo

- O treinador. Fala-se disso.

O taxista a topar-me, destes como eu ao pequeno-almoço e a comer-me a rainha com o bispo

- Áh, não sei, isso é lá com eles.

Mas eu a dar luta e a vingar com a torre a rainha morta, eu pedro, o cruel, a papar o bispo pelas costas e a arrancar-lhe o coração

- Áh bom, então somos os dois campeões.

Ele a distrair-se, ainda inebriado pela rainha tombada, um peãozito ao acaso

- Também é do glorioso?
- Pois claro

e a trazer-lhe o outro bispo com um cavalo, mesmo sabendo que depois ele com a rainha, numa luta desigual

- Então e vamos votar?

Ainda penso em fugir, a viagem de avião, não vou chegar a tempo, mas que diabo, um homem ou um rato?, e outro peão, devagar, envergonhado

- Sou só simpatizante, nunca me fiz sócio

Ele sem perdoar, vê o rei ao alcance e com a rainha, outra vez, xeque

- Ora pois isso é que faz mal. Se fôssemos todos sócios ninguém nos parava.

Eu, que remédio, a concordar, a adiar o fim, um passo para o lado

- Pois.

26 de agosto de 2006

pia



Quem nunca derramou pensamentos menos generosos sobre a banca da cozinha que atire a primeira faca.

25 de agosto de 2006

colecção

Deu por si a coleccionar imagens para shopping.
Já tinha duas: automobilistas com um papel na boca a fazer manobras arriscadas na sub-cave e mancebos casadoiros aguardando orgulhosos pelas suas rapariguinhas perfumadas enquanto elas fecham a caixa e descem as persianas das butiques.

xiii

- Isto vai demorar.

chegado de Algés e nem tempo para uma cerveja, logo um pintas de malas aviadas

- Para o aeroporto, se faz favor.

A apetecer-lhe mandar-me à merda, pressinto-o na impaciência com que vai dedilhando o volante, o vidro, a manette das mudanças, logo um pintas de malas aviadas a propor-lhe um serviço que nem dá para o gasóleo. O verde a cair, ganha balanço e alivia o semblante, é a vida, antes isto que um preto a espetar-me uma faca, há-de pensar, e eu consolo-me por não ser preto e pelo alívio que apesar de tudo isso lhe há-de proporcionar.

- Isto é que está um trânsito,

digo, com um

- hã?

esperançado no final da frase para quebrar o gelo, a ver-lhe os olhos irónicos emoldurados pelo crucifixo a fitar-me antes de corresponder

- É verdade, a esta hora
- Já se sabe

Os dois em coro e uma nova pausa, os dois a sabermos que agora é do tempo, falas tu ou falo eu

- E este calor

Foi ele, a duplicar a jogada, eu finjo que não noto e avanço com o cavalo

- Está demais. Uma chuvinha não calhava nada mal.
- Está bom é para quem está na praia.

Ele a arriscar, a abrir o jogo, o bispo numa diagonal temerária. Reservo o ataque para mais tarde e continuo a organizar-me, um peão cauteloso

- É, mas para quem cá está a trabalhar é dificil.

Mas ele desabrido, ao quinto semáforo e a rotunda ainda longe, a torre por ali fora

- Isto quem quer trabalhar, trabalha de qualquer maneira. Agora esses calões que para aí andam
Eu a ver o caso mal-parado, ainda nem sequer saímos da avenida, melhor recuar o cavalo

- Pois é, lá isso.

24 de agosto de 2006

amanhã

Antonella Cinelli "Quel gesto quotidiano", 2003
tecnica mista su tela, cm 100X115
Você nunca
se levantou, fez xi-xi, repensou o almoço, tomou banho, se vestiu, deu um beijo, ligou a telenovela, tomou o pequeno-almoço, pôs café a fazer, foi comprar pão, pôs a mesa para o pequeno-almoço, espreitou a telenovela, inspeccionou o frigorífico, limpou a loiça, deu um jeito à sala, deu um beijo a quem sai, fez a cama, pôs a máquina a lavar, montou a tábua, preparou o almoço, pensou o jantar, espreitou a telenovela e à hora do noticiário
- O almoço está pronto, podem vir.
Você nunca
levantou a mesa, lavou a loiça, deu um jeito à sala, tirou comida da arca, pensou hoje ainda é capaz de chover, ligou a telefonia, ligou o ferro, estendeu ainda assim a roupa lá fora, passou a ferro, inspeccionou a despensa, repensou o jantar, fez uma lista de compras, pôs a mesa, espreitou a telenovela e à hora daquele programa
- Quem quer vir lanchar?
Você nunca
levantou a mesa do lanche menos a toalha, se foi aviar ao mini-mercado, se alegrou com a brisa quente que é boa para secar a roupa, poisou os sacos das compras, pôs a panela ao lume, descascou os legumes, pensou o almoço, espreitou o concurso, preparou o jantar, deu um beijo a quem chega, trocou as toalhas, pôs a mesa e à hora do telejornal
- O jantar está pronto, podem vir.
Você nunca
levantou a mesa, ajeitou as cadeiras, limpou a loiça, lavou a loiça, repensou o almoço, pensou o jantar, tirou comida da arca, deu um jeito à cozinha, inspeccionou a roupa estendida, apanhou a roupa, deu um jeito à sala, adormeceu com a telenovela e à hora do filme de acção
- Vou-me deitar, até amanhã.

23 de agosto de 2006

paisagem




"Se quiser, deduza o mundo duma premissa falsa, mas não lhe exija bom senso."

Carlos de Oliveira, Finisterra paisagem e povoamento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2003 (ed. original 1978).

22 de agosto de 2006

verdade



"a verdade é mais estranha que a ficção porque não é obrigada a obedecer ao possível"

Rubem Fonseca, "Mandrake e a bíblia da Mogúncia", Mandrake: a bíblia e a bengala. Porto: Campo das Letras, 2006.

21 de agosto de 2006

urbano

Você nunca amanhou uma terra, nunca podou uma vinha, nunca deu calda às macieiras, nunca apanhou as batatas, nunca embraçadou as cebolas, nunca viu o vizinho a roubar-lhe fruta, nunca foi apanhar a camioneta à estrada, nunca fugiu do violador da motorizada, nunca sentiu o calor do incêndio, nunca enfeitou a capela, nunca fez um funeral a pé, nunca foi beber café ao salão aos domingos, nunca chorou pelos filhos a partir, nunca chorou pelos filhos a chegar mesmo que só no natal e no agosto, nunca lavou roupa na ribeira, nunca pôs as camisolas a corar na várzea, nunca foi fechar as galinhas, nunca regou os feijões de madrugada, nunca mondou um alfobre, nunca foi só ali apanhar uns repolhos, nunca foi ao mato, nunca encheu uma saca de pinhas, nunca foi dar comer ao porco, nunca ouviu o guincho do bácoro a correr na calçada fugindo da faca, nunca sentiu o cheiro da manhã dentro de um palheiro, nunca foi mordomo da festa de nossa senhora, nunca amassou nem tendeu nem beliscou nem cozeu no forno comunitário a broa de milho, nunca foi ao médico à casa do povo, nunca fez encomendas ao carteiro, nunca confundiu a buzina do padeiro com a do peixeiro antes de se lembrar que hoje afinal é quarta-feira, nunca fez queijo de cabra, nunca aprendeu que borregos não são só os filhos da ovelha, nunca fez sopa numa panela de três pernas, nunca enxotou o gato do fumeiro, nunca amaldiçoou a borboleta mais o escaravelho mais o míldio, nunca chamou nomes ao senhor da cooperativa, nunca pediu favores ao taxista, nunca deixou o seu nome na venda, nunca discutiu as extremas com os vizinhos, nunca deixou a serventia, nunca criticou quem deixa a terra de relva, nunca contou na taberna que ontem à noite sabem quem vi ali no meio do milho, nunca assistiu ao fecho da escola primária, nunca festejou o alcatroamento da estrada, nunva viu chegar a luz eléctrica, nunca soube onde é a captação da água, nunca deixou a chave na porta, nunca partilhou arraiais estivais com políticos em campanha, nunca fez excursões ao hospital ou à maternidade com paragem no hipermercado, nunca, você nunca, vossa mercê é um urbano.

20 de agosto de 2006

sugestão

À cidadã ou ao cidadão que entrou neste blog porque procurou no google com a seguinte chave "mensagem para telemóvel de melhoras", tomo a liberdade de sugerir a seguinte:
"AS MELHORAS".

18 de agosto de 2006

xii

- Nada a fazer.

Sendo assim desisto, ajeito a correia da mala, que pesada que está, e continuo a andar. Paragens de autocarro, buracos no passeio, semáforos, sinais de trânsito, copos para moedas, colchões e cobertores de cartão, lixos vários, sarjetas abertas, uma cidade imunda à custa dos ares-condicionados que plastificam o ambiente asséptico dos prontos-a-vestir, dos prontos-a-comer, dos prontos-a-emprestar.

- Liquidação total

ou até

- Rebajas

para quando a camioneta que quase me atropelava parar, o guia a dizer-lhes

- Rossio, Rua Augusta, Praça da Figueira, Castelo de São Jorge, daqui a trinta minutos no autocarro, trinta minutos.

E afinal vão todos para a pastelaria comprar bolinhos e chocolates em caixas douradas enquanto aguardam a sua vez para ir à casa de banho.
Eu também na fila, três pessoas à minha frente que entram zangadas para o taxi que travou em cima delas, sou o próximo e entretenho-me a decidir se no banco da frente ou de trás, decisão difícil, hesito e nem dou pelo Mercedes que se aproxima, pelo senhor que já me leva as malas para o porta-bagagens e o fecha com estrondo, agora sim, pela porta de trás

- Para o aeroporto, se faz favor

Responde-me o crucifixo pendurado no retrovisor, a acenar com os solavancos da primeira, da segunda, uma aceleração brusca que termina no primeiro semáforo da avenida, um lençol de carros à nossa frente e eu a pensar isto vai demorar.

16 de agosto de 2006

xi


maquinal, já esquecido de mim, mais um gajo sozinho, se soubesses, minha querida, a quantidade de gente sozinha que vai lá ao café, tu nem imaginas. Ele para a mulher, imagino-o a chegar a casa

- Esta coluna, está cada vez pior

Os filhos já criados, formados, engravatados a trabalhar na agência, a gastar a hora do café com loiras platinadas enquanto espiam a porta de entrada e a passar cheques sorrateiros como trocavam cigarros atrás dos pavilhões novos na escola secundária.
Eu sem loiras, sem cheques, sem filhos e contudo a espiar a porta de entrada por onde acabo de sair, carregado de malas e a enfrentar o calor e as gentes, as vozes, o chiar dos autocarros, raspando nas paredes sujas, a querer fundir-me nelas e ficar ali, atrás da caixa das comunicações, dentro do mupi que anuncia iogurtes dietéticos, num sítio qualquer onde ninguém me visse, no máximo uma vez por semana uns senhores a alimentar-me, a tirar o iogurte e a tapar-me com um refrigerante, tons tropicais, saúde, alegria, agitação, energia, eu quase sem ela, a desviar-me dos outros em sentido contrário, telemóveis, jornais, sacos de compras, a fazer que não vejo o pedinte, o cãozinho, o moço do inquérito a propor-me o primeiro andar

- Tem cinco minutos?

Tenho mas não lhos dou, tenho mas não lhos quero dar, preciso deles, é nestes cinco minutos que eu vou aproveitar para

- Cuidado!

Pressinto o autocarro atrás de mim, encostado ao passeio, se me virasse percebia que afinal uma excursão, uma camioneta espanhola e nem sequer é semana santa mas eu a aproveitar, é agora, a vigiar-lhe o avanço por cima do ombro e depois aproveitava, no momento certo, uma fracção de segundo, a desequilibrar-me, a fingir que me desequilibrava

- Um acidente, coitado.

A deixar-me cair, a estragar-lhes as férias, o condutor sem tempo para se afligir, só o pé no travão mas tarde demais, a pancada seca, as rodas por cima do meu corpo, esmagado pelo peso da camioneta, e de repente uma roda de gente, gritos, a cidade parada, o mundo parado, só a ambulância que o senhor do quiosque mandou chamar, deixem-no respirar, deixem-nos trabalhar, deixem-me viver, deixem-me.

- Nada a fazer.

manual

3. Ao terminar o seu banho numa banheira em relação à qual não tenha a certeza de ser o único utilizador, retire do ralo os cabelos e eventuais secreções que o seu corpo tenha higienicamente libertado.
Evitará assim que outros tenham que fazê-lo por si.